Desde 1994, a eleição só se organiza quando o polo lulista se consolida. Nunca antes isso tinha acontecido tão tardiamente. Como também nunca tinha acontecido antes uma transferência de preferência eleitoral tão rápida e tão massiva como foi a de Lula para Haddad
Marcos Nobre*, Piauí
Em torno de 30% do eleitorado rejeitam o PT de maneira absoluta. Jair Bolsonaro conta com mais da metade da intenção de voto dessa parcela do eleitorado. No outro polo, algo próximo a 30% do eleitorado fecham sem hesitar com uma candidatura lulista. Fernando Haddad conta já com mais da metade da intenção de voto dessa parcela do eleitorado.
Desde 1994, a eleição só se organiza quando o polo lulista se consolida. E foi apenas esta semana que se cristalizou para o eleitorado a candidatura de Haddad como autêntico representante de Lula nesta eleição. Nunca antes isso tinha acontecido tão tardiamente. Como também nunca tinha acontecido antes uma transferência de preferência eleitoral tão rápida e tão massiva como foi a de Lula para Haddad.
Se havia dúvidas, elas se dissiparam, a candidatura de Haddad é dada hoje como certa para uma das vagas no segundo turno. Paradoxalmente, o único acontecimento que pode vir a alterar a situação é se Haddad continuar sua ascensão meteórica e ultrapassar Bolsonaro nas pesquisas a tempo de provocar movimentações eleitorais relevantes. Só um movimento como esse poderia levar o antilulismo a um estado de desespero capaz de provocar abalos no quadro atual.
A eleição finalmente se estruturou. Só que a apenas dezoito dias do primeiro turno.
Que consequências isso tem para o que resta de campanha?
Nas últimas quatro eleições, o momento em que as duas candidaturas líderes se consolidaram foi também o momento de preparar o terreno para o segundo turno. É quando começa a movimentação para derrotar o adversário que já se sabe qual é. Essa preparação de terreno se dá em duas frentes simultâneas, igualmente importantes: a da campanha eleitoral e a da negociação com a elite política e econômica.
Do ponto de vista eleitoral, a preparação para o segundo turno é vista como uma campanha para “baixar a rejeição”. Mas não é exatamente disso que se trata.
A rejeição a Bolsonaro é enorme, proibitiva, na casa de 42%. A rejeição a Haddad é, hoje, bem menor, por volta de 29%. Mas é de se esperar que cresça consideravelmente até o dia da eleição, à medida que se tornar mais conhecido e for identificado a Lula e ao PT. Além disso, segundo turno é outra eleição, como se costuma dizer.
A chave está menos na taxa de rejeição enquanto tal do que no “nem nem”, aquele contingente do eleitorado que não se identifica com nenhum dos polos antagônicos, que rejeita, por assim dizer, a própria polarização. Esse contingente é composto por algo como 40% do eleitorado que estão ensanduichados entre os dois polos. Em números grosseiros, é um eleitorado que, em primeiro turno, costuma se dividir em um grupo “abstenção, branco ou nulo” e em outro grupo que opta por candidaturas alternativas aos dois polos.
Nas últimas quatro eleições, a média de abstenção, brancos e nulos ficou em 27% (a soma deu 29% na eleição de 2014). Isso significa que a parcela do eleitorado “nem nem” a ser conquistada no segundo turno deve ser composta por algo em torno dos 13% de votantes, ainda que a capacidade das candidaturas de mobilizar o eleitorado para ir votar ou para abandonar a opção pelo voto branco ou nulo possa alterar essa porcentagem de maneira relevante. É esse contingente que busca uma “terceira via” em primeiro turno que acaba decidindo quem vence a eleição no segundo turno.
Os dois polos que se consolidam como líderes têm de dedicar o máximo de tempo que puderem a lançar pontes para essa parcela do eleitorado já no primeiro turno. Uma das estratégias mais importantes para atrair o eleitorado “nem nem” é conseguir convencer de que a vitória de sua candidatura não significará governar apenas para seu próprio polo ou para destruir o polo derrotado. Talvez por isso se costume chamar esse movimento de “ir para o centro”, mesmo que recusar a polarização não signifique necessariamente desejar o centro político, seja lá o que isso queira dizer. Ainda mais em uma eleição em que o eleitorado “nem nem” tem uma impressionante quantidade de candidaturas em que se dividir.
É aí que essa frente de preparação para o segundo turno se une à outra. Umas das estratégias utilizadas para conquistar essa parcela que se põe como fiel da balança eleitoral é mostrar capacidade de aplainar resistências junto à elite política e econômica. A capacidade de convencer que uma vitória não significa “virar a mesa” se mostra também como capacidade de negociar com quem tem poder e dinheiro.
Bolsonaro não tem condições de preparar o terreno para o segundo turno. Sua situação de saúde segue delicada. A internação prolongada do capitão-candidato começa agora a pesar seriamente sobre sua candidatura. Em sua pesquisa anterior, de 10 de setembro, o Ibope tinha mostrou que Bolsonaro tinha subido 12 pontos no eleitorado antilulista após o atentado a faca que sofreu em Juiz de Fora. É esse efeito agora que tende a refluir.
Bolsonaro está em uma corrida para não cair tão rapidamente que possa ser ultrapassado por Haddad. Tem de preservar o eleitorado que já tem, tem de se garantir como polo anti-PT. Mas não tem como ir além disso, não pode se dar ao luxo de acenar para o eleitorado “nem nem”, não tem como começar a preparar o segundo turno. Não tem como lançar pontes com a elite financeira e política, tentando convencer de que tem condições de ocupar o lugar reservado até 2014 às candidaturas do PSDB.
O candidato a vice, o general Mourão, já demonstrou não conseguir representar o que Bolsonaro representa para seu eleitorado. Cada vez que abre a boca é um deus nos acuda – para qualquer pessoa que venha a ouvir as barbaridades que diz e para a campanha de Bolsonaro em particular. O general fala barbaridades como se fosse Bolsonaro. Só que não é.
A falta de coordenação que impera na campanha do capitão-candidato após o atentado é grave. Mostra que não existe qualquer estrutura além do próprio Bolsonaro. Para quem acompanha mais de perto a eleição, a falta de coordenação e de previsibilidade da campanha de Bolsonaro chegou a um nível particularmente alarmante no caso de seus planos para a economia do país.
Circula na piauí deste mês o perfil irretocável de Paulo Guedes feito por Malu Gaspar. O já anunciado futuro ministro da Fazenda de um governo Bolsonaro destrói ponte atrás de ponte, é um homem-bomba que não se cansa de se explodir a si mesmo a qualquer coalizão de governo. Não bastasse isso, é de um descompromisso assustador. Ao final da entrevista, a repórter pergunta: “‘Então posso escrever que você desistiu?’ O economista riu, irônico, e respondeu: ‘Esse é o sonho de todo mundo, todo mundo quer foder o Bolsonaro. Mas esse prazer eu não dou. Só depois que ele for eleito.’”
Paradoxalmente, o candidato que chegou mais tarde na disputa é aquele que pode se dar ao luxo de começar a pensar no segundo turno. Haddad está em condições de traçar estratégias para atrair o eleitorado “nem nem” e para estabelecer pontes com a parte da elite política e econômica que tem horror a Bolsonaro e a tudo o que ele representa.
Tudo está contra a candidatura do capitão neste momento. E Haddad tem uma janela de oportunidade única. Se não souber aproveitá-la, se der a Bolsonaro a mais remota chance de se recuperar nas duas frentes de construção do segundo turno, terá arriscado toda a eleição.
A elite já experimentou o desastre da escolha de Fernando Collor em 1989, sabe o que é optar por um candidato outsider sem efetivo aparato de campanha e de governo. Mas não há vácuo na natureza nem na política. Se Haddad não ocupar esse espaço, se não aproveitar a janela para construir uma frente republicana desde já, pode assistir a uma operação de socorro da candidatura de Bolsonaro por aquela parte da elite que considera a volta do PT ao poder pior do que a eleição de um cavaleiro do apocalipse.
Todos os mais recentes movimentos de Haddad indicam que Haddad tem plena consciência do que está em jogo neste momento. A questão agora é saber o quanto a sua campanha como um todo tem a mesma leitura da situação. Disso depende o rumo da eleição.
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*Marcos Nobre é professor de filosofia da Unicamp e autor de Imobilismo em Movimento, pela Companhia das Letras, e Como nasce o novo, pela Todavia.
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