Para tentar consertar uma declaração anterior, General Mourão (vice de Bolsonaro) profere afirmação que não é apenas rasa, mas parte de uma premissa perigosa que pode justificar tudo
Leonardo Sakamoto*
Após as críticas que recebeu por ter declarado, nesta segunda (17), que a partir do momento que a família é dissociada, por ”agendas particulares que tentam impor ao conjunto da sociedade”, ”áreas carentes”, ”onde não há pai e avô”, apenas ”mãe e avó” transformam-se em ”uma fábrica de elementos desajustados” que tendem a ingressar em ”narcoquadrilhas”, o general da reserva Hamilton Mourão afirmou que fez apenas uma ”constatação”. E trouxe mais um preconceito.
”Eu deixei claro que esse atingimento da família é muito mais crucial nas nossas comunidades carentes, onde a população masculina, em grande parte, está presa, ligada à criminalidade ou já morreu, e deixa a grande responsabilidade de levar a família à frente nas mãos de mães e avós”, afirmou.
Ou seja, na tentativa de mostrar que foi criticado gratuitamente pela imprensa, o candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro conseguiu acrescentar outro elemento além do machismo, da homofobia e do preconceito contra mulheres pobres presentes na fala de ontem. Pois, de acordo com essa declaração, grande parte dos homens moradores de comunidades pobres são bandidos, pois estão presos ou ligados à criminalidade. A afirmação não é apenas rasa. Parte de uma premissa perigosa que pode justificar tudo. Inclusive a violência policial ou militar indiscriminada contra as mesmas comunidades.
As taxas de resolução de homicídios são muito baixas no Brasil. Ao mesmo tempo, a maioria esmagadora de furtos e assaltos são resolvidos apenas quando há flagrante policial, porque a investigação também é limitada. É possível traçar perfis de quem cumpre pena e medidas socioeducativas, mas não extrapolar para o universo de uma comunidade carente. O perfil da principal vítima de violência, contudo, é facilmente identificável: jovem, negro e pobre.
Talvez esses preconceitos estejam tão enraizados na visão de mundo do general que ele não perceba que a existência desses problemas não está relacionada com o tipo de família estabelecida, o gênero dos envolvidos na educação e no cuidado com as crianças ou mesmo a classe social. Mas a uma série de responsabilidades do poder público, como a criação de oportunidades aos mais jovens, a presença do Estado através de equipamentos de assistência social, educação e saúde de qualidade, a urbanização de bairros pobres, entre outros, tudo discutido em conjunto com a comunidade.
A experiência tem mostrado que mulheres apresentam um posicionamento mais crítico ao discurso da violência do que os homens (discurso promovido, aliás, pelo próprio cabeça da chapa do general) e são mais racionais e estáveis na gestão dos recursos, tanto que em programas de moradia popular ou de transferência de renda, o registro familiar é feito em nome delas e não deles.
Ao mesmo tempo, o mais lucrativo crime organizado não está nas favelas, mas nos bairros ricos onde moram tanto políticos e empresários que sugam bilhões dos cofres públicos quanto grandes traficantes que são responsáveis pelo comércio internacional de psicoativos ilegais.
Nessas horas, talvez falte um amigo honesto que chegue ao ouvido e explique que ele está sendo criticado não por cobrar que o Estado esteja presente através de creches e escolas integrais, como acertadamente afirmou em seus discursos. Mas por destilar preconceitos e nem se atentar disso.
Em tempo: O Ministério Público Militar pode enumerar dezenas de casos de desvios milionários praticados tanto por praças quanto por oficiais de alta patente. Eles vão da cobrança de propina em contratos a roubo de peças de tanques militares. Mais de uma centena de militares já foi condenada por crimes desse tipo entre 2010 e 2017. Sobre isso, vale a pena ler a reportagem de Leandro Prazeres, do UOL.
Diante desses fatos, afirmar que o Exército é tão corrupto quanto qualquer outra instituição da República e que a ausência de comando faz da instituição uma ”fábrica de elementos desajustados” é preconceito ou apenas uma ”constatação”?
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*Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo
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