Deslumbramento é a turvação da vista causada por excesso de luz, brilho ou por outros fatores (por exemplo, vertigem).
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
“Certa vez uma emissora norte-americana, estarrecida com o fenômeno Trump (que acabara de ser eleito, contra a maioria das pesquisas que colocavam a candidata Clinton como favorita) resolveu ir às ruas em estados e cidades onde tiveram os resultados mais surpreendentes para buscar um melhor entendimento sobre o fato. Durante as entrevistas um novo fato foi estarrecedor: o alto número de imigrantes ou cidadãos de origem latina e do Oriente Médio que assumidamente votaram em Trump e mantiveram um discurso de defesas de seus ‘projetos’ sobre protecionismos nacionalistas, muros e deportações. Ciente deste fato, o entrevistador diante de um cidadão de origem latino-americana indaga de forma enfática: ‘mas o senhor apoia a construção de muros mesmo sendo originário de outro país da América latina?’
E este cidadão retrucou: ‘claro!’.
Então o repórter insistiu: ‘mas você é latino’.
Entretanto, para encerrar o assunto, o entrevistado finalizou: ‘não, agora eu tenho green card’.”
Em outros termos, o entrevistado diz: agora não quero fazer parte dos excluídos, quero fazer parte dos que excluem. Assim, sinto-me fazendo parte de uma maioria que reforça em mim um gozo que pressupõe uma fantasia de dominação.
Inevitavelmente esta reportagem me lembrou a célebre frase de Paulo Freire dizendo que “quando uma educação não é libertadora (em minha interpretação, que possibilite maiores saídas pulsionais sublimatórias) o objetivo do oprimido é se tornar opressor’.
Tais votos, em sua grande maioria, não se referem a projetos econômicos, de investimento e de estrutura social (e nem haveriam de ser). Em sua grande maioria são sobre afetos, pulsões e gozos que encontram vazão e representação em uma narrativa (mais repressiva ou sublimatória).
Cada um vota com o afeto que lhe causa.
Do ponto de vista da perversão, o nacionalismo é uma categoria muito fértil politicamente. Nos USA, a legitimação de aproximadamente 50% para este aspecto do discurso aponta um desejo e gozo social forte.
A qualidade do discurso que legitimas ou que propagas não refletem apenas o conteúdo mais perverso ou sublimatório do discurso, mas revelam ao outro um gozo perverso e um desejo mascarado que encontra refugio e morada no discurso repressivo. Tal fenômeno pode ser reflexo de alguma estrutura psíquica ou apenas da precariedade simbólica e ignorante que se alastra nas sociedades.
Mais do que ver política como o sintoma do povo, podemos vê-la como o gozo do povo. O que nos mostra que se vê o outro ainda como resto a ser descartado. São ações, comentários, discursos e pedidos de intervenção, de repressão e aniquilação do outro que refletem uma demanda social (que mascara um gozo perverso) e assim são legitimadas, que me assustam profundamente. O tipo de política praticada (repressiva/violenta ou mais tolerante) também é sintoma de grande parcela do povo que a legitima.”
O texto acima é de Willian Mac-Cormick Maron, e busca alguma resposta para o movimento fascista desse tempo presente. Valores como xenofobia, preconceito, emulação ao poder, pertencimento a uma ordem injusta e reconhecida como tal, distanciamento do lugar do coração para se vincular a um novo lugar de poder e manifesto consumismo, apenas incidentalmente pode ser respondido pela conjuntura psíquica. Seu imediatismo, sua pulsão, seu desejo oculta uma historicidade camuflada e uma pedagogia que o direciona a esse lugar de incompreensão (para os que não sentem) e de assunção (para os que vivenciam o caminho do empoderamento).
Já deveríamos saber que o desenvolvimento desvincula, afasta, isola o indivíduo da família, da tribo, da comunidade, e o instala num limbo, sempre a espera de ser acolhido por uma nova ordem, em que, eivado de significados novos, de simbolismos desejantes, de um maquinário luminoso, de um relicário divinatório, verá sua heteronomia ser plenamente reconhecida e satisfeita. Por vezes a paga demora mais do que deveria, mas a aliança é sutil e enganadora.
Os valores do desenvolvimento são poucos, na verdade: melhoria de vida, progresso individual, sucesso precário, boa intenção em ajudar o próximo depois que nos encontrarmos num lugar melhor, futuro.
Agni, divindade hindu, está no comando da jornada individual rumo ao futuro do poder. Mas, inadvertidamente, ele é o segundo no poder. O primeiro será sempre Indra, outra divindade do mesmo panteão. E creia-me, quando se trata de poder, o segundo lugar é o último.
Agni é o fogo: “eu louvo Agni, o sacerdote da casa, o ministro divino do sacrifício, o invocador, o melhor presenteador do tesouro.”
Espera-se então que se façam eternos sacrifícios a Agni. Mas os sacrifícios a Agni vão para as divindades, porque ele é um mero mensageiro dos deuses. Para cumprir seu destino, Agni não está sempre no futuro, é imortal.
Aqui a mitologia védica encontra sua melhor manifestação: todo sacrifício que o humano realiza para viver o desenvolvimento, todos os valores que indigesta ou alegremente acolhe, jamais será para nutrir sua prole, mas sempre encontrará os senhores da heteronomia, que vivem distantes das dádivas que seus acólitos esperam.
A psicologia por trás dessa jornada precisa encarar o pacto com Agni. A sua promessa é eternamente adiada, mas seu sacrifício deve ser pago diariamente. A pira onde serão queimados os emolumentos exige distanciamento daqueles que serão incinerados: família, tribo, comunidade. Pois o preconceito, o racismo, a discriminação, em todos os níveis de origem, seja o gênero, a raça, a classe, é parte fundamental dessa devoção.
De fato, isso nada tem a ver com a educação, que será sempre um exercício de desumanização. Não existe educação libertadora, isso é um oximoro.
Mas tem muito a ver com escolhas, as escolhas nos tornam livres. Aliás, é a única possibilidade de liberdade. Então vejamos as contradições dessas escolhas e, portanto, de nosso estado de liberdade.
O pacto oferecido por Agni é justo e preciso: contra a conservação, a mudança; contra o velho, o novo; contra a tradição, a inovação; contra as tribos, as corporações; contra a família, o trabalho bem azeitado; contra a solidão, o Facebook; contra a enxada, o agronegócio; contra a vida, a morte em vida; contra a herança, o sucesso; contra o ócio, o negócio.
Está posta a escolha. Uma vez feita a escolha, a liberdade é o prêmio maior. Ser livre não tem preço. É um sentimento brutal. Pouco importa se essa liberdade é conquistada a custa de sacrifícios na pira de Agni. Uma vez feita a escolha, a recusa será incinerada. A opção negligenciada será incinerada. Os familiares serão incinerados. O que importa é a liberdade incomensurável. E ser aquilo que escolhemos, no dia a dia, força motriz de nossas inclinações momentâneas, realização e máquina, pulsão e memória, passado e futuro, horizonte e profundidade, é pauta da falta perpétua em nome do que somos e ainda seremos no devir de nossas angústias, futuro, presépio, palco diminuto, porém visível, sensível, real.
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O preço dessa liberdade, preço casual, incêndio do pensamento, vibração do pensamento, acasalamento do pensamento, um pensamento sem desvios, um pensamento em trilha, nos trilhos, pensamento que define, que ordena, que controla e que, com sua aura de racionalidade pertinente, se alegra com as conquistas parciais e irrevogáveis e tão distintivas, tão sintomáticas, tão alergênicas, nos exibe em pedestais ovacionantes, admiráveis e toda gente, que também trilham os mesmos pensamentos, cuja forma, veja, cuja forma é idêntica, compartilhada, e que tange certa dose de inveja construtiva, que se pode tranquilamente assumir para o outro, pois é elogiosa também.
O que realmente importa não é a natureza da escolha, mas a escolha em si mesma, escolha que nos torna livres no momento em que a fazemos, memento mori que seja.
O pensamento, leia-se a racionalidade, emite uma onda de sentimentos cimento, sentimentos que pesam, mas que são inerentes à escolha. Esses sentimentos, tesouros que vieram com a escolha, serão então lavrados no íntimo de cada ser livre, construindo as bases para todas as patologias sociais desse tempo.
Chegamos ao ponto máximo da coisificação promovida pelo sistema. O resultado é a completa desumanização do humano. Praticamente todas as patologias sociais são derivadas dos quatro cavaleiros do apocalipse: depressão, ansiedade, vitimização e empoderamento.
A resultante são sentimentos altamente destrutivos como a culpa, a ambição, a arrogância e o ódio. Tenho sugerido quatro atitudes que são ações terapêuticas para enfrentar esse momento, para a reumanização: o autoconhecimento, para diminuir a importância do ego; servir ao humano e não ao poder; a manifestação de palavras mantras aos moldes de Coué, psicólogo francês ativo há cem anos: SÓ ALEGRIA E FELICIDADE, como auto-sugestão contra a mente sofredora; e a masturbação diária, como resgate político do nosso inviolável direito ao orgasmo e ao prazer, pautado exclusivamente na imaginação e não em recursos de pornografia.
O fascismo é parte da escolha que nos conduz para os caminhos da liberdade. Não é fruto de ignorância, de falta de educação, de fragilidade política. É a escolha madura que forja com clarividência a desigualdade entre os homens e os convida a ocuparem o melhor lugar entre os iguais.
Mas afinal quem mesmo quer fazer outras escolhas?
A presunção de que sabemos alguma coisa sobre os outros limita enormemente nossa capacidade de descobrirmos algo sobre nós mesmos que seja minimamente singular.
Uma amiga, Camila Koenigstein, escreveu isso aqui:
“O que temos que aprender com as mulheres kurdas? Tudo! O movimento feminista Kurdo não iniciou agora, ele é fruto de um longo processo e grandes alterações nas velhas estruturas sociais na região de Rojava, Norte da Síria.
Ao compreenderem que mudar o poder de mãos sem alterar a mentalidade patriarcal não era uma solução efetiva, estabeleceram o modelo comunal, a ecologia social e o feminismo, onde a participação ativa das mulheres é premissa para a tomada de qualquer decisão. Foi também entendido que não podia existir hegemonia, com isso todos os grupos têm direito a participarem de reuniões, buscando integração e respeito à pluralidade social e cultural.
O rechaço ao poder Estatal também faz parte do movimento, vez que o Estado é uma face do machismo e consequentemente perpetuação do sistema patriarcal; extirpando tal modelo há mutualidade nas relações e a formação de vínculos mais igualitários.
O trabalho dessas mulheres não tem relação com poder e sim com alteração de sistema, de tolerância e trabalho árduo na quebra da mentalidade machista que sempre dominou a região.
Com isso percebemos que a busca de poder é algo muito mais atrelado ao discurso ocidental que não enxerga via de mudança senão pela separação e destruição do outro.
Alterar o sistema e a mentalidade não é fácil, leva tempo, mas elas mostram para o mundo que é a única forma de construir uma nova sociedade.
Creio que não só os homens, mas muitas mulheres ‘feministas’ querem ignorar esse modelo, que é pouco citado, pois deixa claro que não é possível alterações efetivas dentro do capitalismo, e quem quer abrir mão de viver dentro do sistema?
Ver e reconhecer essas mulheres nos obriga a sair da zona de conforto e repensar tudo que foi aprendido e hoje é reproduzido sem o exercício da reflexão. Poder? Mais do mesmo? Acho que as Kurdas sim representam o feminismo que realmente gera medo”.
Deslumbramento é a turvação da vista causada por excesso de luz, brilho ou por outros fatores (por exemplo, vertigem).
A pós-verdade e a verdade estão se debatendo nesse momento de tanta luz. “Pós-verdade“, inclusive, foi eleita a palavra do ano pelo dicionário Oxford.
Segundo o dicionário, a palavra refere-se a “circunstâncias em que os fatos objetivos têm menos influência sobre a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais“. Na definição da revista The Economist, “apoiar-se em afirmações que parecem verdadeiras, mas não estão baseadas em fatos.”
Os lexicógrafos do Oxford escolhem a palavra do ano como forma de refletir “o ethos, o estado de espírito e as preocupações” de um determinado ano.
É a ponta de um iceberg histórico que dura quase cem anos.
Einstein e Bohr viveram esse dilema entre 1930 e 1935. A síntese da disputa pelo território da física quântica pode ser resumida assim:
“Einstein acreditava que, ao contrário do que diz a física quântica, todas as grandezas físicas de um sistema devem ter um valor bem definido o tempo todo, independentemente de estarem ou não sendo medidas. Ou seja, há uma realidade intrínseca e as medições só a descobrem.
Bohr, em contrapartida, postulou o princípio da complementaridade – para os sistemas na escala atômica, não existe um valor predefinido para as grandezas físicas: são as medições que criam a realidade”.
Em 1964, John Bell conferiu que Bohr tinha razão em seus postulados; em 2015, o físico croata Hrvoje Nikolić diz que Einstein é que tinha razão.
A tradução possível dessa disputa é que para o primeiro, existe uma realidade intrínseca enquanto para o segundo ela é instável e volúvel e só pode ser percebida na singularidade de cada evento.
Ou ainda, a ideia de verdade é enganosa se a cada instante podemos descobrir mundos e a cada olhar vemos uma coisa diferente com olhos diferentes.
A verdade é política, eis a questão.
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*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade do Sul da Bahia, permacultor e colaborou para Pragmatismo Político
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