Animais vivos são exportados porque pequena parcela de pecuaristas brasileiros deseja lucrar na base da tortura e sofrimento deles, o que é proibido por lei. País perde empregos e arrecadação
O agronegócio propalado como “tech“, “pop” e “tudo” em cadeia nacional no horário nobre da TV é também cruel. Da mesma maneira que afronta os direitos de indígenas, quilombolas e assentados, atenta contra animais indefesos em latas velhas flutuantes que cruzam os oceanos. É a exportação de gado vivo para abate em países como Turquia, Líbano, Egito e Jordânia entre outros.
O título eufemista de “maior exportador de gado em pé do mundo“, com mais de 600 mil cabeças vendidas todo ano, infla o orgulho dos ruralistas. No entanto, não esconde a associação direta com os maus tratos a animais que já passaram dias na estrada, espremidos em caminhões, mal alimentados, desidratados e muitas vezes machucados.
E que são então colocados em navios cargueiros inadequados, adaptados precariamente para transportar até 25 mil cabeças por viagem. Vale tudo em nome de custos menores e lucros maiores para alguns pecuaristas que não estão preocupados com as condições em que os animais chegarão ao destino – se é que chegarão.
Em muitos casos, a lotação é de 23 bois dividindo 21 metros quadrados. É como se fossem colocados dentro de uma sala medindo 4,5 metros por 4,5 metros, onde deverão permanecer por pelo menos quinze dias, em meio às fezes e urina que se acumulam devido à dificuldade para limpeza.
Em contato com esses dejetos, têm seus cascos fissurados e enfrentam dolorosos processos inflamatórios, que causam hemorragia e geralmente infecções.
Como não há alternativa, senão defecar e urinar uns sobre os outros, a camada que toma conta do couro altera a regulação térmica corporal, o que aumenta ainda mais o estresse já alto pela falta de descanso.
O sistema imunológico é afetado e agrava problemas respiratórios causados pelo ar tomado pela amônia e o metano derivados da urina e dos gases. É quando surge a chamada doença respiratória bovina (BRD, da sigla em inglês), que inclui quadros equivalentes à pneumonia em humanos.
Quebra de protocolo sanitário
Não é de estranhar que no último dia 29 de agosto o Ministério da Saúde da Turquia detectou bovinos com antraz entre os importados do Brasil. Causada pelo Bacillus anthracis, a doença quase sempre letal nos animais pode ser transmitida aos seres humanos pelo contato, inclusive com seus subprodutos. Em alguns casos é grave e pode levar à morte.
O ministro da Agricultura e Pecuária (Mapa), Blairo Maggi, se apressou a abafar o caso e a dar garantias para que os embarques continuassem. Segundo especialistas, o protocolo sanitário de exportação para aquele país não exige que os animais sejam vacinados contra essa e outras doenças bacterianas.
Nesse ambiente insalubre, sem veterinários em número suficiente, muitos animais morrem, são triturados e jogados diretamente no mar, da mesma maneira que os excrementos, geralmente contaminados com bactérias, antibióticos, hormônios e outros agentes capazes de afetar a fauna marinha.
As condições são precárias também no destino. Não são raros episódios como o ocorrido em novembro passado, no Iraque, em que uma pendência burocrática atrasou em seis dias o desembarque. Os 9 mil bois do navio Nabolsi continuaram espremidos, famintos, com sede e sem assistência veterinária por quase uma semana a mais.
Há ainda acidentes e naufrágios. Em 2009, o navio MV Danny F2 naufragou no Líbano, matando os 18 mil bovinos e 10 mil ovelhas a bordo. Em outubro de 2015, em Barcarena, Pará, um navio libanês carregado com 5 mil cabeças que seriam exportadas pela empresa brasileira Minerva Foods naufragou ainda no porto. O desespero tomou conta de muitos animais, que não conseguiram se salvar.
“Animais vivos são exportados no nosso país porque uma pequena parcela de pecuaristas deseja lucrar ainda mais com base na tortura e sofrimento dos animais, o que é vedado pela nossa legislação. Além dos maus tratos e péssimas condições a que são submetidos dentro dos navios, existe um mercado consumidor no Oriente Médio que os importa para abate segundo seus preceitos religiosos“, diz a advogada e ativista paulista Vanice Cestari.
Perversidade
Segundo ela, no método de abate halal, com degola para sangria com o animal consciente, sem a etapa da insensibilização, há uma contradição. Teoricamente, entre as normas básicas a serem seguidas está a saúde do animal, em perfeitas condições físicas. “O que não se aplica na prática da exportação desses animais vivos durante toda a trajetória marítima. Laudos mostram que a crueldade e os maus-tratos são intrínsecos a essa atividade comercial marítima.”
O quadro perverso vai além do relato de defensores dos direitos dos animais. Reportagens, entrevistas e relatos técnicos, como o da médica veterinária Magda Regina, requisitado pela Justiça Federal para subsidiar a análise da Ação Civil Pública impetrada em dezembro pelo Fórum Nacional de Defesa e Proteção Animal, que tramita na 25ª Vara Cível Federal de São Paulo.
No começo de fevereiro, o Fórum obteve liminar do juiz Djalma Moreira Gomes, suspendendo esse tipo de exportação em todo país. Considerando que os animais não são coisas, mas sujeitos de direitos, o magistrado determinou a suspensão de embarques e retorno dos animais à sua origem em todo o país, até que os importadores assinassem acordos para a adoção de práticas de abate compatíveis com o preconizado no Brasil.
A medida afetou a Minerva Foods – a mesma do naufrágio inda no porto, em Barcarena. Maior exportadora do país, a empresa havia voltado a exportar pelo porto de Santos após um período de suspensão da atividade. O navio panamenho Nada estava carregado com 27 mil cabeças com destino à Turquia. A empresa recorreu à Justiça mas não foi atendida.
Maior produtor de soja do país – grão utilizado principalmente na ração animal – o ministro Blairo Maggi acionou a Advogacia Geral da União (AGU), que por sua vez ingressou com ação. Em 5 de fevereiro foi cassada a decisão do juiz da 25ª Vara, liberando as exportações. O embarque da Minerva foi autorizado.
O Fórum contestou a decisão por meio de agravo interno no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), em São Paulo, e já tem cinco votos favoráveis. Dois são contrários. O julgamento, que foi suspenso no dia 9 de agosto com o pedido de vista de um dos desembargadores, está para ser retomado. A expectativa de vitória é grande entre os ativistas.
Projeto em São Paulo
Além disso, tramita na Assembleia Legislativa de São Paulo o Projeto de Lei (PL) 31/2018, do deputado Feliciano Filho (PRP), que proíbe no estado o embarque de animais vivos no transporte marítimo e fluvial, com a finalidade de abate para consumo. Para agradar aos ruralistas, sua votação foi protelada sucessivamente até que no final de julho o presidente da casa, Cauê Macris (PSDB), adiou a votação para depois das eleições. Seu temor é que o PL seja aprovado.
“A articulação política dentro da Assembleia Legislativa com o exercício da cidadania é um fato histórico na causa e que nos orgulha muito, pois conseguimos fazer com que o PL 31 avançasse. Depois de muita luta derrubamos a emenda apresentada pelo deputado Barros Munhoz (PSB) que visava acabar com o PL original. Conseguimos que a urgência do PL fosse votada graças ao apoio da deputada Analice Fernandes (PSDB) quando assumiu a presidência da Assembleia por alguns dias“, diz a advogada Vanice Cestari.
Segundo ela, houve apoio de parlamentares de diferentes partidos, que sinalizaram compreender a importância da luta e a necessidade do projeto. “O interessante é que a nossa luta contribuiu para que projetos de leis importantes de cunho social tivessem andamento, o que sem dúvida foi um momento histórico para o avanço da democracia. O ativismo de rua também têm sido constante em vários estados brasileiros.”
Com a possibilidade de proibição em São Paulo, portos do Rio de Janeiro, especialmente de Itaguaí, estão na mira dos exportadores. Antecipando-se, ativistas fluminenses conseguiram com que o deputado Paulo Ramos (PDT) apresentasse o PL 3921/2018, que proíbe o embarque de animais vivos no transporte marítimo e fluvial com a finalidade de abate para consumo.
No âmbito federal tramita o PL 9464/2018, do deputado Ricardo Tripoli (PSDB-SP), que veda a exportação de gado vivo por transporte marítimo, para toda finalidade, e sob qualquer pretexto.
Os exportadores, que negam os maus tratos, alegam que a atividade é regulamentada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e praticada em todo o mundo. Mas não é bem assim.
“A maior empresa exportadora na Austrália foi proibida de forma permanente a exportar animais vivos e a Índia também proibiu a exportação em todos os portos do país. Recentemente, Israel aprovou projeto de lei que prevê eliminação progressiva da importação de animais vivos“, aponta Vanice.
E a regulamentação brasileira é inadequada e contém falhas. “Algo precisa ser feito com urgência, não podemos ficar marcados por um mau exemplo. O Brasil, em particular o Ministério da Agricultura, está devendo regulamentações claras e detalhadas sobre como tratar a questão do bem-estar dos animais de produção nos diferentes cenários (criação, transporte terrestre, transporte fluvial, transporte marítimo, abate, esporte, trabalho e etc.)”, advertiu em manifesto o professor Mateus José Rodrigues Paranhos da Costa, docente de Etologia e Bem-Estar Animal do Departamento de Zootecnia da Unesp de Jaboticabal (SP).
“Evidentemente, estas normatizações devem ser formuladas com base em evidências científicas, tal como recomendado por vários organismos internacionais, inclusive a Organização Mundial de Sanidade Animal (OIE). O Brasil é o celeiro mundial de proteína animal e, portanto, todos os envolvidos (em particular os agentes governamentais) deveriam preocupar-se com os impactos negativos que certos posicionamentos trazem para a imagem das cadeias produtivas da nossa pecuária. Apesar dos desafios que enfrentamos, a situação do Brasil em relação ao bem-estar dos animais de produção é, em geral, muito melhor do que o cenário evidenciado nos últimos acontecimentos no porto de Santos.” O manifesto foi assinado por outros 14 renomados professores da área.
A pressão resultou na publicação, pelo ministério, no início de setembro, da Instrução Normativa (IN) 46, sobre exportação de bovinos, bubalinos, ovinos e caprinos vivos, destinados ao abate ou à reprodução.
Na avaliação da médica veterinária Patrycia Sato, coordenadora de Bem-Estar Animal no Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, a IN é falha. Tem pontos subjetivos e inespecíficos, que dão margem a diferentes interpretações e permissão de condições inadequadas.
“A Instrução Normativa diz que os navios devem ter ‘habilitação para o transporte de animais, com condutores treinados para o transporte de cargas vivas, conduzidos de forma a prevenir danos aos animais e minimizar o estresse de viagem, respeitando as normas estabelecidas para o bem-estar animal e as densidades de carga recomendadas no Anexo 1 desta Instrução'”, diz Patrycia. “Quem dá a habilitação e quem é responsável pela realização e registro do treinamento dos condutores? A IN diz ainda que as embarcações devem ser ‘suficientemente abastecidas de alimento, água potável e medicação’. Mas não especifica o que é suficiente e não menciona material e equipamentos para atendimento veterinário”, questiona.
Ainda segundo a veterinária, a IN permite até 12 horas de transporte sem água e comida entre o estabelecimento de pré-embaque e o ponto de saída do país, não estabelece número mínimo de funcionários e veterinários para assistência aos animais durante a viagem, nem a destinação ou escoagem de dejetos. Tampouco a qualidade do ar, padrões de temperatura e umidade.
De positivo, a instrução estabelece a necessidade de espaços em cada deck ou compartimento destinados a enfermarias para eventual tratamento de animais feridos, extenuados ou enfermos, correspondente a aproximadamente a 1% da capacidade de alojamento, bem como um plano de contingência. E responsabiliza o exportador pelo transporte dos animais até sua chegada ao destino, independentemente de subcontratação.
Com as novas regras para a exportação, o Ministério da Agricultura pretende se adequar às normas da Organização Mundial de Sanidade Animal, segundo a qual os exportadores e importadores são responsáveis pelas condições nas quais os rebanhos são enviados. Até então, tanto o governo como os exportadores lavavam suas mãos em relação ao que acontece após o embarque.
E eu com isso?
Longe de ser uma questão afeita apenas aos defensores dos animais, a exportação de animais vivos para abate é também uma questão ambiental, econômica e de saúde pública. A atividade é problemática também sob o aspecto econômico.
“A ocorrência e disseminação de doenças infectocontagiosas, que podem afetar seres humanos, como antraz e tuberculose, torna-se uma ameaça à saúde pública e um alto risco para os rebanhos em nível internacional, tanto aos países importadores quanto aos situados nas rotas de transporte. Isso aumenta a probabilidade do país exportador sofrer restrições de acesso ao mercado internacional“, destaca a diretora de Educação do Fórum, Elizabeth MacGregor.
Desse modo, perde-se receita de exportação com impacto negativo sobre a geração de renda e emprego. Segundo parecer do Ministério Público Federal “o processamento da carne no território brasileiro agrega muito mais valor social (emprego e renda), a par de tributos, em comparação com exportação de gado vivo“.
E o embargo não se converte em perda, mas no mero fechamento a um determinado modelo de exportação. “Como nação respeitada no cenário internacional do agronegócio, o Brasil deve repudiar esse selo de país inimigo da dignidade animal, até por que briga, essa prática, com princípios constitucionais“, assinala o procurador da República Sérgio Monteiro Medeiros.
Ainda segundo Elizabeth, pela Lei Complementar 87/1996, a tributação de exportação de produtos primários – o caso dos bovinos vivos, que seguem como se fossem matérias primas – deixa de ser aplicável.
“Subprodutos valiosos, como couro e muitos outros, são exportados juntamente com a carne sem gerar valor agregado, além de empregos e renda no país.Tanto é que as associações de frigoríficos são contrárias. Com o aumento das exportações de gado vivo, muitos frigoríficos têm fechado“.
Outra perda econômica está relacionada à redução da qualidade da carcaça. É cientificamente comprovado que o estresse durante o transporte por longas distâncias provoca esgotamento do glicogênio dos músculos, afetando negativamente as características da carne, que se torna mais rígida. Lesões, contusões, hematomas e fraturas causam dor e sofrimento, mas também reduzem o valor do produto final.
Os maus-tratos aos animais trazem consequências também à saúde e ao meio ambiente. O parecer do procurador Sérgio Monteiro Medeiros, sobre as 27 mil cabeças da Minerva no porto de Santos, dá uma ideia da complicação. Conforme aponta, cada caminhão transportando 40 bois deixa um rastro de 500 quilos de esterco.
Como foram 675 caminhões, isso corresponde a 337.500 quilos de esterco despejados pelas estradas e ruas da cidade de Santos. Isso apenas referente ao trajeto entre o embarque no local de quarentena e o terminal portuário.
“Mais de trezentas toneladas de estero, produzidas e distribuídas, em meras dez horas! As consequências serão as piores possíveis, a começar pelas moscas que ao pousarem sobre o esterco poderão disseminar numerosas enfermidades, como tuberculose, brucelose, cólera, verminoses, febre tifoide dentre outras“, anotou.
A poluição atmosférica, segundo ele, também é importante, já que o odor liberado do estrume contém grande quantidade de sulfito de hidrogênio, amônia, dióxido de carbono, monóxido de carbono, metano e outros gases, tornando-se poluidores através da fermentação dos dejetos sobre o solo. Em contato com outros poluentes do ar, podem causar ataques de asma e bronquite.
“Sem se falar no efeito estufa. Claro que tudo isso poderia parecer rematado exagero, não fosse o fato de que as exportações de gado vivo tiverem vertiginoso crescimento desde que se iniciaram, havendo previsão de mais 30% para 2018.” Tanto é que a Prefeitura de Santos multou a Minerva Foods pelo forte odor exalado em toda a orla santista.
Tudo isso sem contar as toneladas de fezes e urina contaminadas com antibióticos, vacinas e hormônios despejadas diretamente no oceano. De acordo com o procurador, há denúncias relativas ao lançamento dos dejetos produzidos pelos animais diretamente no mar. Em confinamento, um boi adulto produz, em média, 23,5 quilos de fezes e 9,1 quilos de urina diariamente.
O transporte de 20 mil cabeças produz pelo menos 560 toneladas de dejetos todos os dias. Em 20 dias de viagem serão 11.200 toneladas. A maior parte das embarcações, conforme denúncias, não consegue armazenar todos esses dejetos, muito menos as carcaças dos animais mortos. A fauna marinha e corais afetados traz prejuízos à pesca e ameaçam a saúde pública.
Elizabeth MacGregor vê grande chance de avanços dos projetos pelo fim dos embarques. “A pressão é muito grande dentro das assembleias legislativas de São Paulo e do Rio e Janeiro. No TRF3 também. Há ainda pressão internacional e o aspecto econômico fala muito alto. O embargo, que é o que o Fórum quer, não se converte em perda, mas no mero fechamento de um determinado modelo de exportação. O respeito que o Brasil tem no cenário internacional do agronegócio não combina com o fato de ser inimigo da dignidade animal.”
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