Esquerda

As ilusões da esquerda brasileira em torno da conjuntura política

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A ideia de que os golpistas não aprovariam o impeachment foi a primeira ilusão a cair, a prisão de Lula foi a penúltima. Neste momento, acaba de cair a última ilusão

Aldo Fornazieri*, Jornal GGN

A interdição da candidatura Lula pelo Tribunal Superior Eleitoral representou a queda da última ilusão que setores progressistas e petistas foram construindo desde o início de 2015. A ideia de que os golpistas não aprovariam o impeachment foi a primeira ilusão a cair, a prisão de Lula foi a penúltima e agora veio a última. Algumas outras, a exemplo do “nenhum direito a menos“, ficaram pela estrada devastada pelo golpe como escombros e lições a aprender de como é possível destruir, em pouco tempo, os parcos direitos e avanços sociais conquistados às duras penas. Claro que ainda há recursos contra a decisão do TSE que precisam ser levados até o fim. Mas, no fundamental, o Judiciário, que hoje é o centro do golpe e do Estado de Exceção, já tomou a sua decisão e não vai retroceder.

Agora a quase unanimidade de vozes afirma que já se sabia que a interdição seria o desfecho. Mas há um grave problema nisso. Se esta conclusão era sabida e plausível por que razão a direção do PT apostou, fundamentalmente, na via judicial para tentar garantir o direito de Lula ser candidato e exigir a sua liberdade? É preciso lembrar que dirigentes petistas manifestaram a certeza absoluta de que o nome de Lula estaria nas urnas. A rigor, desde o momento em que se iniciou o martírio da condenação, da prisão e da interdição de Lula, apenas três atos, com alguma importância, foram efetivados: um em Porto Alegre no dia anterior ao julgamento pelo TRF-4; um em São Bernardo, no dia da prisão de Lula e o último em Brasília, na inscrição da chapa.

Então, não há outra conclusão: se o desfecho como interdição era sabido, houve uma clara omissão da direção do PT e, em grande medida, ela foi artífice da derrota de Lula e do Partido. Sim, porque tirar Lula das eleições é uma imensa derrota para o povo brasileiro e para Lula, pois ele está impedido de oferecer o que de melhor tem enquanto político e enquanto ser humano ao Brasil e ao seu povo. Depois desse calvário, desse martírio, dessa perseguição e dessa injustiça, Lula traz não só as marcas da experiência, mas a sabedoria extraída da dor de ver-se injustiçado. E uma sabedoria extraída da dor, orientada pelo humanismo e pelo sentimento de compromisso e de responsabilidade para com o povo e o país, tem condições de edificar coisas grandiosas, de redimir sofrimentos recorrentes. É isto que está sendo negado ao povo, ao Brasil e a Lula. Uma dúzia de togados, envaidecidos de seu poder arbitrário, refestelados com seus privilégios indecentes, decidiu deixar o maior líder político do país, reclamado pelo povo como futuro presidente, no silêncio de sua solidão no cárcere, impedindo-o de doar-se ao país e ao povo. A história não oferecerá tão cedo nova ocasião propícia e fecunda como esta que foi dilacerada, apunhalada e rasgada pelos tiranos de toga.

A outra hipótese de que se pode cogitar em relação à direção do PT é de que ela acreditou na banca de advogados que defendem Lula nas ações penais e na frente eleitoral. Os erros e confusões jurídicas que esses advogados protagonizaram não são poucos. Não venceram nenhuma causa e transformaram a defesa num ninho de intrigas. Não impõem respeitabilidade diante dos juízes, nem pela postura e nem pela evidência de sua competência e de sua experiência. Alguns parecem mais preocupados com os seus ornamentos do que com os seus argumentos. Não uma só vez, parecem se dar uma importância superior a do Lula e a da causa que defendem. Juristas sérios haviam recomendado que o canal internacional ao qual deveria se recorrer era a Corte Interamericana de Direitos Humanos e não ao Comitê da ONU que, efetivamente, ao contrário do que disseram os advogados, não tem poder de impor uma recomendação.

Ademais, se o Brasil está diante de um Estado de Exceção Judicial, como efetivamente está, não são os recursos ao poder excepcional que solucionarão conflitos e estabelecerão as mediações necessárias. Embora se possa recorrer a esse poder para efeito de lula política e jurídica, só há um recurso que pode romper os impasses: o recurso às ruas, o recurso ao povo. Quando o Judiciário se torna parte política do conflito, o que decide é o jogo de forças, a imposição do temor, pois são esses elementos que podem induzir a uma solução negociada do conflito ou a uma conflagração maior. A conclusão que se pode tirar da leitura da conduta do PT, desde 2015, é a de que se trata de um partido que não entende os códigos do poder.

Acrescente-se que o PT é o partido preferido do eleitorado, com 24% a 29% de preferência, tem mais de dois milhões de filiados e presença forte nas instituições políticas, inclusive em governos estaduais. Isto também torna inexplicável o fato de o partido não ter apostado na mobilização popular para defender a liberdade e a candidatura de Lula. O momento político também era favorável às manifestações: Lula liderando e crescendo em todas as pesquisas e os golpistas desmoralizados junto à opinião pública. Essa omissão, sem dúvida, contribuiu para interdição de Lula e para mais essa derrota do povo.

Embora Lula ainda tenha uma imensa capacidade de influência política, força junto ao povo e sua lealdade, a sua exclusão das eleições marca o fim de uma era política para o Brasil e para as esquerdas. Lula, por imposição de um Judiciário arbitrário, por força da pressão militar, por força da perseguição das elites e da grande mídia, foi afastado do protagonismo direto na presidência da República. Somente acontecimentos extraordinários e improváveis poderiam repor essa ocasião.

A partir dessa nova condição do Brasil, a luta política terá que ser outra, as esquerdas terão que ser outras e a organização e a força terão que entrar na ordem do dia para aqueles que querem mudar o país. O povo brasileiro não está apenas anestesiado pela grande mídia, mas está pacificado pelas esquerdas. Ao manter o povo dócil, passivo, sem transformar a indignação em ação, as esquerdas contribuem para manter o Brasil nas mãos dos malvados.

O que se viu na história recente foi Dilma deposta, Lula preso, Lula interditado e o povo quieto, o PT em casa. Há algo de estranho e inaceitável nessa conduta. Essa nova era terá que ser criada a partir da herança que Lula deixa e a partir de novas determinações, de um novo poder que imerja da sociedade, de baixo para cima, um poder constituinte do povo e, se for o caso, contra o Estado, pois este é instrumento de dominação e exploração e carece de sentido universalizante.

Após a decisão do TSE decepando a candidatura Lula, o advogado do PT, Luiz Fernando Casagrande, teria declarado o seguinte aos juízes: “O PT se rende à decisão“. Essa rendição não pode ser aceita. O arbítrio do Judiciário precisa ser combatido nos programas do PT e nas ruas. As eleições sem Lula são ilegítimas e o futuro presidente poderá ter contra si um movimento pela renúncia e por novas eleições. O Judiciário deixou de ser um poder mediador dos conflitos e se tornou o principal promotor da discórdia, do ódio e da degradação constitucional do país.

Em que pese a grave derrota para o povo e para o Brasil que a interdição da candidatura do Lula representa, os ilusionistas não param de criar fantasias mentirosas, vendendo uma falsa sensação de vitória, um triunfalismo imbecilizado. Antes tinham a certeza de que Lula estaria nas urnas e que subiria novamente a rampa do Planalto como presidente. Agora proclamam que os votos de Lula serão todos transferidos para Haddad e que este será o vencedor das eleições. Haddad até pode vencer. Mas não vencerá se acreditar nos ilusionistas. Estes seguem a típica ética da aventura de que fala Sérgio Buarque de Holanda: querem apanhar o fruto sem plantar a árvore. Ao invés de advertir para as dificuldades, preparando o espírito do povo para lutas árduas, tenazes e difíceis, vendem ilusões para colher derrotas. Sem responsabilidade, passam alegremente de uma ilusão a outra enquanto a tragédia brasileira se aprofunda.

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*Aldo Fornazieri é professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).

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