Desenvolvimento Brasileiro

A transformação do Brasil em uma nova Turquia

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O Brasil pode se tornar uma nova Turquia? Emparedar a Democracia pode ganhar uma batalha, mas o custo histórico pode ser muito alto mais à frente

André Araújo, Jornal GGN

Um País pode ter sua imagem chamuscada por muitos anos em função de projetos de poder de personagens menores que trituram as instituições para abrir caminho para suas ambições.

Países assim se tornam alvos de ataques especulativos do financismo global porque são os animais doentes da manada com reputação enfraquecida e imagem desgastada, presas fáceis de jogadas aparentemente pequenas de mercado que, em circunstâncias normais, não atingiriam um regime sólido e um Pais com instituições respeitadas.

O Brasil, com afastamento do candidato em primeiro lugar nas intenções de voto, entra na linha divisória de Países de imagem arranhada e fragilizada que só vai piorar após as eleições.

A leitura internacional do julgamento, prisão e afastamento de um ex-presidente é a de um processo fabricado para atingir um objetivo politico, opinião que fica cada vez mais clara para os grandes polos mundiais que balizam relações internacionais por sua construção do “rating” público e governamental, por sua influência nas sociedades, academias e chancelarias.

O conceito não pronunciado de “golpe branco” tão repetido na História aparece claro.

Esses polos são especialmente o COUNCIL OF FOREING RELATIONS, de Nova York, o ROYAL INSTITUTE OF INTERNATIONAL AFFAIRS (Chatham House), de Londres, a OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico em Paris, a grande imprensa liberal americana e europeia, New York Times, Washington Post, The Guardian e El Pais, a Secretaria Geral da ONU em Genebra e as múltiplas instancias das Nações Unidas, o Institute of International Finance de Washington, o Parlamento Europeu de Bruxelas, os canais de TV CNN e BBC, RTP (França), TVE (Espanha), Detsche Welle e RAI (Italia), os titulares de Prêmio Nobel cujas declarações e opiniões repercutem nas instâncias acadêmicas e sociais. O consenso internacional não tem dono e maestro, é uma combinação simultânea de atores a captar ondas semelhantes de percepção de um fato politico, cristalizando uma visão geral.

Essas correias de transmissão criam uma espécie de consenso geral sobre um determinado Pais ou regime. O Brasil está entrando no radar por um filtro ruim: um Pais que realiza eleições presidenciais colocando na cadeia um ex-Presidente em primeiro lugar nas pesquisas por causa de um processo de escassa importância e dimensão. Processo claramente fabricado para fins políticos, por uma causa discutível e de pequeno valor ou importância diante de um mandato presidencial de 8 anos, onde esse acusado geriu um PIB acumulado de 16 trilhões de dólares. E atribui-se a ele a corrupção de um apartamento de praia sem glamour em um prédio onde ele tinha uma cota paga. A corrupção seria da reforma da cozinha e do terraço com churrasqueira e de alguns móveis a mais lá colocados. Tudo somado seriam grãos de areia frente ao entorno politico onde se moveu esse personagem, o palco não combina com o ator, uma questão de escala, joga-se o destino de um grande Pais em filigranas legais de uma cozinha na praia.

Está montado o cenário para uma interpretação a mais negativa possível. Para agravar o quadro, o ex-Presidente preso foi extremamente popular no circuito internacional formador de opinião desde sua primeira eleição, dada sua condição rara de operário vindo da não-elite, algo incomum mesmo em países emergentes, o que é pouco usual chama a atenção, como chamou, especialmente porque o fato ocorreu em um grande Pais estratégico.

Testemunhei essa construção do personagem quando acompanhei minha amiga Lally Weymouth, jornalista do The Washington Post, que veio entrevistar Lula logo após sua eleição em 2002. Lally estava entusiasmada com a eleição de um proletário, fez questão de visitar a sede da campanha do PT na Rua Borges Lagoa, almoçou com José Dirceu no Barbacoa e foi a Brasília a convite do Zé, visitando a capital do Brasil que ela não conhecia.

Lally encontrou com Lula em São Paulo para a entrevista de página inteira no The Washington Post, dirigido então pela mãe de Lally e dona do jornal, Katherine Graham. Lally não se limitou a entrevistar Lula, se encontrou na mesma viagem com outras personalidades brasileiras para falar da eleição de Lula, com Delfim Neto, com empresários da FIESP, com acadêmicos e historiadores. Ela fez um roteiro de entrevistas sobre a politica brasileira.

Lally estabeleceu nessa viagem uma amizade com Jose Dirceu a quem Lally ofereceu em Maio de 2005 um jantar de 12 casais da nata do mundo financeiro de Nova York. Presentes ao jantar o Embaixador na ONU, Ronaldo Sardenberg e o Embaixador em Washington, Roberto Abdenur.

Dirceu então tinha se tornado a cara externa da Presidência Lula, com relações de tal qualidade que a Secretária de Estado Condolezza Rice, quando esteve no Brasil em 2006, já após a queda de Dirceu do cargo de Chefe da Casa Civil, quis com ele almoçar antes de se dirigir ao Palácio do Planalto, porque via nele o elo entre o Partido Republicano e Brasília.

A destruição desse capital politico valioso criado desde a fundamental reunião entre a cúpula do PT e os Republicanos em 2002 em São Paulo, estabelecendo o laço de confiança entre Dirceu e Otto Reich, então Subsecretário de Estado do Governo Bush Jr. vai custar caro ao Brasil que via naquele momento um ponto alto de relações pessoais nas duas Presidências.

Foi um momento excepcional de consolidação de uma aliança adormecida desde 1976 em um nível nunca mais alcançado depois, os anos de ouro foram 2003 a 2005. Hoje diminuiu o peso do Brasil em Washington, está em seu ponto mais baixo desde o fim da Segunda Guerra, só não caiu mais por causa da indestrutível expressão territorial e estratégica do Brasil na América do Sul que nem o pior governo conseguirá implodir.

Washington tem hoje novo parceiro estratégico no continente, a Colômbia, que se agigantou pelo apequenamento estratégico do Brasil, Pais que hoje virou um apêndice de tribunais.

Rating econômico e rating político

Assim como as agências de classificação de riscos dão notas a economias de países baseadas em estatísticas e em uma avaliação subjetiva, o fator REPUTACIONAL da gestão da economia e da estabilidade das instituições chamam a atenção nos centros internacionais de análise geopolítica, nas chancelarias e nos grandes órgãos formadores de opinião em relações internacionais que dão peso a Estados levando em conta sua situação politica, econômica, social, qualidade de suas instituições e estatura de sua liderança politica.

Esse “rating politico” é evidentemente informal, ao contrário dos ratings econômicos, mas ele existe claramente determinado pela média das avaliações desses núcleos de interesse geopolítico, o CONSENSO vai se formando pela soma e confluência de opiniões sobre determinado Pais e suas circunstâncias. No caso do Brasil dois consensos foram se cristalizando de 2016 a 2018 nesses polos irradiadores da visão global:

Primeiro: A queda por via parlamentar da Presidente Dilma foi uma manobra palaciana para a derrubada de um grupo politico, aquele do PT, por outro, o do Vice-Presidente e seus aliados políticos de berço e de ocasião, entre estes o PSDB do Presidente anterior, FHC, a quem foi entregue toda a área econômica do regime resultante dessa operação de tomada de poder.

No inicio e durante o processo do impeachment essa não era a percepção. O consenso internacional comprou pelo valor de face a opinião da imprensa brasileira de que a Presidente Dilma teria praticado graves infrações constitucionais. Essa impressão se dissipou em 2017 e ficou completamente desmoralizada em 2018. A percepção agora é de um golpe parlamentar de perfil paraguaio, diminuindo consideravelmente o prestigio das instituições brasileiras.

Segundo: O processo e prisão do ex-Presidente Lula, cuja popularidade e recall no exterior são um vasto capital politico, em um primeiro momento novamente teve a percepção comprada pelo valor de face a partir da mídia brasileira. Nos últimos meses essa percepção está se esvaindo e a ideia de que Lula praticou um crime comum se nulifica porque trata-se de um processo criminal com provas indiciárias e não provas materiais coroando a fragilidade da condenação com o escasso valor monetário do alegado delito, frente à dimensão do cargo de Presidente de um dos maiores países do mundo. A miudeza do fato choca por si só.

A cristalização de certos consensos são de difícil desfazimento porque são camadas sucessivas de opinião que vão se acumulando. A mídia brasileira parece não estar se apercebendo dessa reavaliação do processo de ataque ao PT que começou com o impeachment de Dilma e termina na prisão de Lula por um processo que mais parece uma montagem de dossiê.

A mídia brasileira se fixou na formalidade do processo do caso Lula para justificar sua regularidade, mas a opinião internacional não compra esse pacote. Os processos de Moscou de 1938 quando Stalin consolidou seu domínio sobre o Partido Comunista da União Soviética também foram formalmente perfeitos, com confissões assinadas, juízes togados, advogados de defesa constituídos, mas na essência tudo era uma montagem para apresentar ao mundo.

Impressionou na avaliação estrangeira a unanimidade das sentenças, sem qualquer dissenso normal em casos de julgamento de políticos, a conclusão foi a de que os juízes pertenciam ao mesmo grupo ideológico atuando como força-tarefa, portanto as confirmações de sentenças ao invés de provocar convencimento aumentaram as dúvidas, não houve divergência de um dia sequer em sentenças de distintos juízes, em Moscou as sentenças também eram idênticas.

O descolamento da mídia brasileira

Um fenômeno novo e raro, a mídia brasileira se descola da corrente principal da mídia liberal dos países centrais, ao contrário do que aconteceu no Estado Novo em 1937-1945 e no regime militar de 1964-1985. No Estado Novo a mídia foi censurada diretamente, inclusive com desapropriação de jornais importantes, como O Estado de São Paulo.

No regime militar de 1964 a mídia teve censura de regularidade e intensidade variáveis, mas com plena solidariedade da mídia liberal estrangeira que apoiava a mídia brasileira apontando a censura e esta sempre se sentiu vinculada à opinião liberal internacional. A mídia brasileira seguia certo eixo ideológico da imprensa internacional, aliando-se à visão ocidental iluminista do mundo. Agora há um dissenso, a mídia brasileira se isolando da opinião mundial ao se abraçar às correntes autoritárias de direita, algo novo, a imprensa brasileira nas suas redações, alma e espirito, era considerada muitas vezes de esquerda e, no mínimo, democrática e progressista.

O fenômeno de bom número de jornalistas de direita e extrema-direita é recente, mesmo no Grupo Globo. No apogeu do regime militar, a Globo abrigava grande número de jornalistas de esquerda, sob proteção e com respeito da direção do grupo. Hoje nas Organizações Globo não se achará um esquerdista nem com lupa de grande aumento.

A Jovem Pan tem um hino fascista “Partiu pra Cima” e seu time jornalístico está à direita de Alessandro Pavolini, o chefe de imprensa de Mussolini. A Band é direita histórica. O Estado de S.Paulo deixou de ser conservador liberal para se agregar à direita raivosa. Ao contrário de 1964, hoje será muito difícil encontrar na imprensa brasileira um veículo que não seja de direita, os veículos progressistas se encontraram apenas na mídia eletrônica e não na grande imprensa.

A crise institucional contratada

Graves violações da vontade popular são crises institucionais contratadas. Democracias maduras não se enredam em situações acidentais de Direito que coloquem em risco os mecanismos maiores de funcionamento das instituições, o sistema central deve prevalecer.

Essa a razão subjacente do indulto ao ex-Presidente Nixon por seu sucessor Gerald Ford. Um processo contra Nixon seria simples vingança e causaria danos ao sistema. Tampouco se judicializou a dúvida real na contagem de votos da eleição de George Bush Jr, contra Al Gore, um confronto judicial colocaria em risco o Sistema com danos incalculáveis ao País.

O conservador ex-Ministro do Exterior do México Jorge Castañeda colocou claramente essa questão em seu artigo de 21 de agosto passado no New York Times, quando diz que não se coloca em risco a Democracia por questões menores de Direito. O ex-Presidente do Supremo Nelson Jobim disse a mesma coisa na entrevista à Globonews do ultimo dia 30. São cérebros de primeira ordem com visão maior de politica e de História. Emparedar a Democracia pode ganhar uma batalha, mas o custo histórico pode ser muito altos mais à frente.

Brasil e Turquia

Sem ser um Pais desenvolvido, a Turquia é um Pais estratégico para o mundo, no que se assemelha ao Brasil, hoje pais central na geopolítica mundial, embora suas elites não tenham consciência dessa posição porque não têm a visão do papel internacional do Pais. As elites brasileiras têm dimensão bem menor do que o Pais onde se abrigam, um processo degenerativo que começou com a República. O Império tinha uma estatura muito maior do que o grupo de coronéis que formaram a Primeira República. Por intervalos inseridos no Século XX, o Brasil alcançou dimensão internacional nos governos Vargas e Kubtscheck, momentos fugidios que logo se esvaneceram, voltando o Brasil a seu provincianismo de aldeia pobre, pobre de homens e de ideias, um Pais anão estratégico se comparado a Rússia, China e Índia, todos países com projeção de poder geopolítico intenso. Esse é o Brasil de 2018.

A deslegitimação da democracia, evidente nas eleições de 2018, algemadas pelo Poder Judiciário, abre caminho para candidaturas que, em condições democráticas plenas, jamais ousariam despontar, permitindo até candidatos diretos dos rentistas patrocinadas por bancos, sem escala na politica, como se o Brasil fosse uma sociedade anônima sem povo, os “mercados” afrontando a soberania popular, o poder sem intermediários. Nem os nazistas ousaram tanto, os industriais do Ruhr não tiveram a audácia de governar a Alemanha.

Único Pais ocidental dentro do grupo dos grandes países continentais, maior Pais católico, maior Pais multiétnico, pais decisivo para as ações sobre o clima, maior exportador de alimentos do planeta, um pais ultra estratégico para o mundo perdido na pequena politica, um Pais de dimensão continental e com tais desafios não pode ser dirigido por sentenças de tribunais, que tem como foco o passado e não o futuro. A função da elite politica é comandar o projeto nacional acima de tudo, o passado não pode governar o futuro, os pequenos rentistas do Leblon e da Faria Lima não representam o Brasil profundo.

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