36% do eleitorado acreditou no Kit Gay. 35% acreditou que Veja e Folha ganharam milhões pra falar mal de Bolsonaro. 15% acreditou que Haddad defendeu incesto. E Rosa Weber acha que o TSE fez um excelente trabalho combatendo as fake news
Flávia Marreiro, ElPaís
Não há nenhuma surpresa no uso de desinformação em massa como arma política nas eleições brasileiras. É um esperado novo capítulo de um problema global, para a qual as negligentes autoridades brasileiras definitivamente não se prepararam. A situação ganhou proporções que a comissão da OEA (Organização dos Estados Americanos) que monitora as eleições já considera alarmantes, mas só agora começamos a ter algumas réguas para medir seu alcance. Uma pesquisa da consultoria Atlas Político resolveu ir além da simples pergunta se o eleitor usa ou não as redes sociais e aplicativos –ou se admite acreditar no que recebe por meio delas– para tentar rastrear o impacto de mensagens distorcidas, sem comprovação ou claramente mentirosas e injuriosas nesta campanha.
Há quantas pessoas chegou, por exemplo, o boato estimulado pela deputada eleita do PSL de São Paulo, Joice Hasselmann, de que uma “grande revista” havia recebido 600 milhões de reais para falar mal de Jair Bolsonaro? Segundo o monitoramento do Atlas, onde os entrevistados são recrutados aleatoriamente na Internet e a amostra é rebalanceada para ter representatividade nacional, 71% dos eleitores dizem ter conhecimento da “informação”, que não tem qualquer base ou fundamento a não ser fazer parte da guerra política. Perguntados se acreditam que órgão de imprensa, como a Veja ou Folha de S.Paulo, receberam milhões para apoiar o PT, 35% disseram que acreditavam na afirmação, 36%, que não acreditavam, enquanto 13% afirmaram nunca ter ouvido falar nisso contra 17% que não souberam ou não quiseram responder. São números eloquentes.
Hasselmann, ex-jornalista da revista Veja, não apresentou nenhuma evidência ou prova quando gravou o depoimento sobre o “acordo” de apoio ao PT, que foi transmitido tanto no Facebook como no YouTube, ambos com milhões de seguidores. Usou tão somente sua reputação de jornalista, por um ano da própria revista, para falar a seus seguidores e a seus mais de dois milhões de eleitores. Não que não haja apurações off de record, mas uma acusação tão grave e ao mesmo tempo tão oportuna levanta profundas suspeitas. Com ela, a então candidata fez funcionar a bem azeitada máquina de campanha de Bolsonaro. Na semana em que Hasselmann fez a acusação, o repórter do El País, Afonso Benites, monitorava grupos de apoio ao candidato de extrema direita. Ele capturou como a postagem da então candidata se espalhava velozmente no WhatsApp e como, imediatamente, foi usada como vacina quando a Veja publicou documentos do processo de divórcio de Bolsonaro com duras acusações da ex-mulher, entre elas, a de que ocultava patrimônio.
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O Atlas Político perguntou ainda se os eleitores acreditavam na distribuição, pelos Governo do PT, do chamado “kit gay”, nome pejorativo dado por Bolsonaro a um material anti-homofobia que jamais chegou a circular, muito menos para crianças de seis anos, como disse o candidato. Nada menos que 36% das pessoas disseram crer na informação mentirosa, que o TSE obrigaria Bolsonaro a tirar das redes poucos dias atrás, contra 45% que disseram que não –apenas 4% disseram não ter tomado conhecimento do tema. Num caso ainda mais absurdo, nada menos que 15% das pessoas disseram acreditar que Fernando Haddad defendeu o fim do tabu do incesto em livro, algo publicado pelo filósofo de extrema direita Olavo de Carvalho em suas redes (30% disseram não acreditar, 34% não tinham ouvido falar e 21% não souberam ou não quiseram responder).
Sempre vai haver a ponderação de que determinadas pessoas estão propensas a dizer sim a qualquer dessas afirmações simplesmente porque não gostam dos nomes mencionados. Também é óbvio que teorias conspiratórias e bizarrices sobre pessoas públicas sempre tiveram tração, mesmo antes da Internet. Agora, além de deixar rastro, há velocidade.
Um exemplo foi a onda de desconfiança de que o atentado contra Bolsonaro tenha sido real. Já é danoso o suficiente pensar que caminhamos para um cenário de “apocalipse da informação“, onde cada um acredita no que quer e recebe informações e propaganda política customizadas. Há, no entanto, uma camada a mais quando vemos claramente uma campanha coordenada e deliberada de atores políticos como Hasselmann e Olavo de Carvalho, com enorme poder de difusão nas mãos, para produzir objetivos específicos.
Os limites entre o que é falso, distorcido e o que é opinião sempre estiveram em debate e estão mais ainda. Mas, o que fazer, então? Simplesmente lavar as mãos e ignorar os imensos incentivos para praticar desinformação?
Não há de se desconsiderar o talento para redes de Bolsonaro e sua equipe –entenderam como ninguém como produzir proximidade a partir da precariedade e até a escatologia para forjar o nome do PSL como um genuíno fenômeno popular. Mas cabe perguntar se a campanha do capitão reformado do Exército teria alcançado tanto apelo orgânico sem esse tipo de jogada. Causa desconcerto que uma Justiça eleitoral e um sistema tão restritivo, que cronometra tempo de propaganda na TV, tenha aprovado no apagar das luzes uma regulação para redes sociais. Mais: tenha liberado disparos em massa no WhatsApp, esperando que os atores políticos iam se conter a dados apenas eleitores cadastrados num ambiente em que circulam bases de dados ilegais. Parece no mínimo inconsequente.
Esse é um assunto que vai render por muito tempo e será aprofundado em todas suas dimensões de análise, aqui e no exterior. Não causa nenhum conforto saber que há uma variável decisiva e que, para nosso azar, não vai desaparecer tão cedo: boa parte da problemática gira em torno de mendigar informações e clareza do Facebook. O gigante global, que controla dados e monitora emoções de milhões de brasileiros em sua plataforma principal, também é dono do WhatsApp. A companhia de Mark Zuckerberg reage a escândalos revelados por reportagens jornalísticas sobre abuso em suas plataformas no mundo repetindo frases protocolares e, no máximo, pedindo desculpas. Outra reação comum é tomar medidas discricionárias, ou que parecem discricionárias, porque nunca se tem como avaliar de maneira precisa seus critérios e seu alcance. Numa situação tão complexa e com tantas implicações democráticas, é assustador ver que, para vamos discutir todas as soluções possíveis, desde que não afete seu modelo de negócios praticamente monopólico.
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