A carta que virou um manifesto viral sobre amor-próprio
A menina de maiô verde: a carta que virou um manifesto viral sobre amor-próprio e uma crítica à ideia de 'corpo perfeito'
Hysteria
Em 2016, viralizou na internet um texto escrito pela espanhola Jessica Gómez, com mais de 170 mil compartilhamentos. Querida Garota do Maiô Verde é uma carta endereçada à anônima menina que estava ao seu lado na praia de Xivares, na região das Astúrias. Como não pôde falar o que queria à própria, acabou escrevendo em seu perfil no Facebook, sem saber que alcançaria tantas outras meninas de maiôs verdes pelo mundo.
Por ocasião de ter sido escrito no ápice das altas temperaturas europeias, o texto foi lido como uma crítica à ideia de “corpo perfeito para o verão”, e tornou-se um forte manifesto que prega o amor-próprio.
“A adolescência é aquele momento biológico em que nos formamos como pessoas. E, como animais sociais, buscamos a aceitação do grupo. É nessa época que o bombardeio de ‘o que você precisa ser / ter’ para ser aceito nos prejudica. E por isso devemos ter muito cuidado com as mensagens que enviamos”.
– Disse a autora na época para a publicação espanhola El Mundo.
Não há mulher que não saiba do que fala Jéssica Gomes. Os padrões de beleza nos quais nos balizamos são tão cruéis que não deixam escapar praticamente ninguém. Cindy Crawford fez uma declaração que exemplifica bem esses critérios que excluem até mesmo quem os constrói: “Nem eu mesma acordo com uma aparência igual à da Cindy Crawford.” Afinal, no mundo da moda, o “plus size” começa no número 42 – que, convenhamos, é o corpo de uma mulher comum, que num mundo ideal não deveria ser considerada acima do peso.
O documentário Killing Us Softly, baseado nas palestras da autora Jean Kilbourne, mostra o passo a passo dos efeitos da publicidade nos estereótipos de gênero, na autoestima feminina e na objetificação dos nossos corpos. Há quatro versões do filme, lançadas em 1979, 1987, 1999 e 2010, o que nos permite ter uma visão constantemente atualizada sobre o tema.
Mas, de alguns anos para cá, muito mudou. Aos poucos, a mídia mainstream começa a abrir brechas fora do padrão da boneca Barbie, e dar visibilidade a outros corpos. Cada vez mais, a opinião pública rechaça veículos e marcas que não dão conta da diversidade, e pela primeira vez uma ampla gama de mulheres começa a se sentir representada. Isso cria consequências positivas que já são visíveis. Acredito que as meninas que hoje estão entrando na faixa de 20 anos têm muito mais autoestima do que as gerações anteriores – mesmo as que não estão dentro do padrão representado em revistas, filmes e televisão.
“Não existe felicidade possível sem experimentar a dor e a delícia de ser quem se é, como diz a letra de Caetano Veloso. Quem se verdadeiramente é”.
A menina do maiô verde coloca timidamente o cabelo atrás da orelha em contraste com sua amiga que balança a longuíssima cabeleira. Não à toa esse detalhe foi percebido pela autora da carta. Na minha adolescência, a moda era o cabelo alisado com chapinha, sem nenhum fio fora do lugar, igual ao da Jennifer Aniston em Friends. O cabelo precisava ficar domado, jamais selvagem. É interessante como os adjetivos usados para falar de características capilares pode refletir algo maior na sociedade. Mulheres domadas, jamais selvagens.
Não é uma coincidência que atualmente existam tantos relatos pessoais de mulheres que alcançaram o empoderamento depois de fazerem a transição capilar e se descobrirem felizes com seus cachos ao natural. Porque não existe felicidade possível sem experimentar a dor e a delícia de ser quem se é, como diz a letra de Caetano Veloso. Quem se verdadeiramente é.
Percebo em mim mesma um paradoxo curioso. Nua, me acho bonita mesmo com quilos a mais, gordurinhas na barriga, uma eventual perna com depilação vencida, ao natural. Mas sinto um desespero genuíno quando a calça não fecha mais denunciando os excessos do fim de semana. É o limite da minha desconstrução. Não à toa, esse limite começa quando coloco uma roupa para ir para o mundo e assim me expor ao julgamento alheio. Dessa forma, é possível deduzir que o sentir-se desconfortável com a própria imagem é consequência de como nós nos importamos com a opinião alheia.
A carta de Jessica Gómez acabou inspirando o curta recém-lançado Ser o Que Se É, produzido pela Maria Farinha Filmes com apoio da Natura e estrelado por Martha Nowill, que traduz em imagens essas observações tão pertinentes. Por exemplo, vemos a menina do maiô verde o tempo inteiro prestando atenção no olhar dos colegas. Na fotografia, quer ficar na fileira de trás, para não ser eternizada em sua insegurança, nos defeitos que imagina ter. Mentalmente, Martha Nowill lhe dá um conselho: “Escuta, o verão vai passar independente de você aproveitar ou não.” Como se tivesse acatado a dica, a menina do maiô verde enfim se deixa levar pelas ondas, aproveitar a água como se ninguém tivesse a observando, com um sorriso que não tínhamos visto antes, quando ela procurava validação do entorno.
E, então, ela se entrega ao mar, plena, livre, insubmissa, sorridente, feliz – e a filmagem que a mostra flutuando no oceano sem ninguém em volta reforça que o que ela precisava para alcançar essa sensação era justamente emancipar-se do que ela acha que os outros pensam. Mas a menina do maiô verde não está sozinha no oceano. Quando ela volta para a areia, finalmente realizada consigo mesma, ela está pronta para interagir de maneira satisfatória com os demais, até mesmo trocar um sorriso com a mulher que divide com ela a faixa de areia, a cor do maiô e, sem que ela saiba, suas angústias mais pessoais.
Assista ao curta Ser O Que Se É: