Como corrigir os 3 erros grosseiros que abriram caminho para a grande ameaça
São menos de 20 dias para interromper um funeral e evitar a grande ameaça. A condição é corrigir os três erros grosseiros que levaram ao desastre
Antonio Martins, Outras Palavras
1.
É nas grandes derrotas que se enxergam os problemas ocultados por “sucessos” ilusórios; e que se abre caminho para o novo. As dimensões do retrocesso de ontem, primeiro turno das eleições gerais, dificilmente poderiam ser mais dramáticas. O circo de horrores que já é o Congresso Nacional será piorado por uma bancada de extrema-direita. O antes pequenino PSL, de Bolsonaro, passará de 7 para 51 deputados. Expoentes da arrogância desvairada, como os irmãos Bolsonaro e a advogada Janaína Paschoal, Kim Kataguiri e Alexandre Frota receberam enxurradas de votos, enquanto Eduardo Suplicy, Dilma Rousseff e Lindberg Farias naufragaram. Exceto no Nordeste, a boia de salvação que evitou uma catástrofe, o que se chama até agora de “esquerda” não governará estado algum. O PCdoB e a Rede, ficaram abaixo da cláusula de barreira e perderão acesso à TV e recursos do Fundo Partidário. E no entanto, o pior não se deu. Depois de ter perdido por um tris a chance de eleger-se presidente no primeiro turno, Jair Bolsonaro estava abatido e soturno ontem à noite, ao gravar um pronunciamento a seus eleitores. Serão 21 dias de enorme tensão, mas derrotá-lo é possível, porque os resultados de ontem são uma aberração, fruto de três erros grosseiros que é possível corrigir. Reparar estes equívocos – na prática, com determinação e em curtíssimo prazo – será tarefa dificílima. Mas é a única alternativa e, se concretizada com sucesso, permitirá trocar um funeral pelas chances de reinvenção da esquerda.
2.
A recusa do PT a uma frente antigolpe, fruto de um hegemonismo encruado e pueril, foi, em ordem cronológica, o primeiro dos três erros bizarros cometidos – e que é possível agora corrigir. Há seis meses, quando o cenário eleitoral se conformava, o governo Temer era um farrapo político. A agenda de retrocessos deixava claro o sentido da tomada do poder por uma coalizão conservadora, em 2016. As pesquisas de opinião mostravam que vasta maioria da opinião pública rechaçava pontos essenciais da agenda imposta após a derrubada do governo legítimo – como as privatizações, a contrarreforma trabalhista e a tentativa de desmonte do sistema da Previdência. Os dois principais símbolos do poder ilegítimo – o presidente e o Congresso – eram apoiados por menos de 10% da população.
Propor, como decorrência, uma frente antigolpe teria enorme poder simbólico e mobilizador. Permitiria ampliar a repolitização que se esboçava, transformar a campanha eleitoral numa oportunidade para convocar as ruas, colocar na defensiva os políticos conservadores e o poder econômico neoliberal. Mas, como ocorre com todas as frentes, implicava não ter certeza sobre seu comando. Lula seria o candidato natural a disputar a presidência. Mas diante de seu impedimento, a condição era incerta. Líderes históricos do PT, como o agora senador Jacques Wagner, propuseram que o partido cedesse o lugar Ciro Gomes, que somava consistência política e forte apelo eleitoral.
O medo de perder o protagonismo levou o PT a sabotar a possibilidade. Ao longo dos meses seguintes a ideia de uma frente antigolpe (que o PCdoB enunciou, mas da qual abriu mão rapidamente) foi não apenas esquecida, mas ativamente sabotada. O comando petista trabalhou com empenho para impedir que Ciro se articulasse com setores do “centrão” e, em seguida, até mesmo para que ele tivesse apoio do PSB. Esta ação tirou-lhe tempo de TV e palanque nos Estados. Cada manobra era celebrada por parte dos petistas, nas redes sociais, como sinal de sabedoria política. Os pretextos apresentados são risíveis. Ciro não teria comparecido a São Bernardo do Campo, nos dias que antecederam a prisão de Lula… como se as decisões políticas pudessem ser guiadas pelo cumprimento das regras de boas maneiras. Foi apenas graças à resiliência impressionante do candidato do PDT, ao longo da campanha, que a sabotagem não permitiu a Bolsonaro liquidar a disputa presidencial já no primeiro turno.
3.
O segundo erro grosseiro está inteiramente articulado com o anterior. Para inviabilizar uma frente antigolpe, que teria dado à disputa eleitoral feição totalmente distinta, o PT tentou reduzir o pleito a um plebiscito sobre o legado de Lula. Ao fazê-lo, esqueceu-se do próprio sentido de ser da esquerda e voltou o debate político para a exaltação passado, ao invés de projetá-lo para as possibilidades do futuro.
A rememoração das conquistas do passado até fazia sentido, como ponto de partida. Milhões de eleitores se emocionaram com as imagens que comparavam a melhora das condições de vida, na era Lula, com as portas de aço do comércio se fechando agora, sinal da recessão. Mas o que poderia ter durado três dias, quiçá uma semana, prolongou-se por um longo mês, como se o candidato nada tivesse, ele mesmo, a dizer.
A recusa a assumir propostas concretas corresponde a um velho cacoete petista: obter, via eleições, um cheque em branco da população; acomodar-se com as deformações do sistema institucional brasileiro, sem jamais ousar propor uma Reforma Política; negociar a governabilidade do presidente em parceria com as maiorias parlamentares que resultam destas deformações; e realizar, nestas condições, as “reformas fracas” (para usar expressão de André Singer) que tais acordos permitirem. Desta vez, porém, o primeiro efeito foi reacender e intensificar o antipetismo. Fernando Haddad era, de fato, apenas um poste? Ao votar no candidato, a população estaria transferindo sua vontade política a um partido que muitos veem – correta ou incorretamente, não importa – como uma máquina de aparelhamento do Estado?
4.
Mas a pior consequência de uma campanha Haddad voltada ao passado e à saudade foi dar a Jair Bolsonaro condições de vestir a máscara do antissitema. Paralisado, o candidato do PT foi incapaz de desafiar a casta política, suas ações e suas misérias. A direita tradicional, umbilicalmente ligada a Temer, ao Congresso e ao golpe, evidentemente não poderia fazê-lo. Todo o imenso espaço político da contestação a uma “democracia” que empobrece e humilha a maior pare dos brasileiros caiu no colo do ex-capitão.
O caráter grotesco desta apropriação basta para demonstrar a estupidez da tática que prevaleceu entre a esquerda. Jair Bolsonaro integra o partido que seguiu de modo mais canino as orientações de Michel Temer. Seu programa expressa a adesão mais completa ao programa das grandes corporações. Seus vínculos com a casta política e seus métodos odiados são tão profundos que ele não se envergonha de reconhecer que se beneficia de verba pública para receber auxílio-moradia superior a R$ 4 mil, possuindo imóvel próprio, e de alardear que usou dinheiro do contribuinte para “comer gente”. A este personagem deprimente, permitiu-se que aparecesse com o rótulo de “antissistema”…
Foi esta a chave para sua vitória no primeiro turno. Dentre os que votaram em Bolsonaro, há uma enorme maioria de não-fascistas. São, porém, eleitores muito descrentes das instituições, da possibilidade de que estas assegurem os direitos estabelecidos na Constituição, e, mais ainda, de que estabeleçam novas garantias e conquistas. São pessoas ressentidas com uma elite supostamente bem-pensante, mas que cuida apenas de seus próprios interesses e não se importa com a degradação geral do país, desde que se mantenha acima da linha da barbárie. Este imenso contingente de eleitores, que deu vitória a Trump nos Estados Unidos e promoveu o Brexit no Reino Unido, foi, no Brasil, entregue ao candidato fascista quando a esquerda abriu mão da chance de encarnar ela própria a oposição ao sistema; voltou-se apenas ao passado; e se recusou a oferecer, no futuro, uma perspectiva de direitos e igualdade.
5.
O caminho para evitar a conquista do aparato de Estado pelo fascismo, e para abrir espaço a uma nova esquerda, começa por enfrentar este último erro gravíssimo. Para que tenha alguma chance, Fernando Haddad precisa produzir, o mais rápido possível, uma virada na campanha; um fato político novo que impeça Jair Bolsonaro de continuar ostentando a máscara antissistema.
Uma forma concretíssima de fazê-lo seria apresentar, nos próximos dias ou horas, um conjunto de dez propostas muito concretas e claras, que dialoguem com as dificuldades concretas vividas pela população após o golpe e que seu adversário não possa responder – devido a seus compromissos com o poder econômico, o programa neoliberal de seu guru Paulo Guedes ou as máfias parlamentares.
O conjunto pode incluir, por exemplo: a) a retomada da política de valorização real do salário mínimo e da bolsa-família, interrompido por Temer; b) a revogação da Emenda Constitucional 95 e um plano de reforço financeiro ao SUS e de reinício da expansão das universidades federais; c) a renegociação da dívida das dezenas de milhões de brasileiros que se encontram negativados no SPC, como proposto por Ciro Gomes; d) os primeiros passos de uma Reforma Tributária, com a isenção de Imposto de Renda para salários até cinco mínimos, taxação dos lucros, dividendos e grandes fortunas; e) a revogação dos leilões de entrega do Pré-Sal a petroleiras estrangeiras; f) o reinício das demarcações das terras indígenas e quilombolas e a volta de critérios sérios para licenciamento das obras de infraestrutura, como querem Marina Silva e os ambientalistas; g) a revisão dos privilégios odiosos de que desfrutam os parlamentares e juízes, tais como auxílio-moradia, as férias longuíssimas, as diárias polpudas, o subsídio a Saúde e Educação privadas; h) uma Reforma Agrária que implique, além da concessão de lotes aos sem-terra, a revisão do modelo agrícola com ênfase no cooperativismo, na policultura, no orgânico e na limitação do uso de venenos.
Medidas como estas permitem reparar o segundo erro catastrófico cometido até agora: o de voltar a campanha para o passado. Propostas de maneira enfática no programa eleitoral, nas ruas, nas entrevistas à imprensa e nos debates, estas medidas são a melhor fórmula para chamar Bolsonaro ao debate político, do qual ele tenta a todo custo se esvair. Reproduzidas de maneira popular, difundidas nas ruas e nas redes, criarão um constrangimento ao ex-capitão. Seu programa de ultraliberalismo o impede de concordar com elas; sua vinculação com os setores mais fisiológicos da casta política, também. Mas como dizê-lo, sem despir a máscara de antissistema que tanto o beneficia?
6.
A correção dos dois primeiros erros políticos permite tocar num terceiro: a tendência do PT ao hegemonismo. Fernando Haddad precisaria acenar desde já, e sem rodeios, para a composição de um governo plural. Não significa “chamar o Meirelles”, ou ventilar um ministro da Fazenda que corteje a aristocracia financeira. Isso não traria voto algum e permitiria a Bolsonaro identificar seu oponente com o sistema – ou, ao menos, neutralizar o desgaste que pode sofrer ao manter a seu lado um banqueiro neoliberal como Paulo Guedes.
Trata-se, ao contrário, de acenar com uma espécie de “geringonça brasileira”, de coalizão firme entre os partidos de esquerda e centro-esquerda, capaz de indicar claramente um novo rumo. Implica convidar Ciro Gomes para que, num ministério do Planejamento reforçado (inclusive com o BNDES), articule o enorme esforço de reflexão necessário para desenhar e começar a aplicar um novo projeto de desenvolvimento. Significa convocar desde já gente como Guilherme Boulos e Ermínia Maricato, e sugerir-lhes que construam um programa pelo Direito à Cidade, contra a ditadura do automóvel e a especulação imobiliária. Equivale a reinserir no governo as correntes ambientalistas que Marina Silva em certo momento representou. Inclui lançar acenos ao setor democrático que ainda resta no PSDB, convocando por exemplo Bresser Pereira para a formulação macroeconômica ou Paulo Sérgio Pinheiro (que atuou nos governos FHC) para a política de Justiça e Direitos Humanos. Envolve desenvolver políticas de Segurança Pública, retomando um esforço que a esquerda abandonou e restabelecendo a colaboração com formuladores como Luiz Eduardo Soares ou Ibis Pereira.
7.
Compromissos claros com propostas de futuro. Abertura para um governo compartilhado com outras forças democráticas. Uma postura assim criaria um conjunto de fatos novos na eleição. Permitiria retomar as ruas, acenando não apenas aos que já apoiam Haddad, mas aos que se mobilizaram por Ciro, Boulos e Marina. Dialogaria, em especial, com os movimentos (os feminismos, o antirracismo, os sindicatos, o ambientalismo e tantos outros) e coletivos que, agindo autonomamente, tornaram possível, por exemplo, as gigantescas manifestações #elenão, em todo o país. Mudaria o cenário de uma eleição até agora fúnebre. Seria suficiente para a vitória? É impossível assegurar – mas certamente prepararia e vertebraria a resistência, em caso de vitória de Bolsonaro.
Seria uma ruptura nítida com o que o petismo significou até agora – em especial em sua fase governista. Abriria caminho para uma renovação da esquerda. É algo possível – como mostra, por exemplo, a transformação que Jeremy Corbyn lidera, há dois anos, no Partido Trabalhista inglês.
Fernando Haddad estará à altura de algo semelhante? Ou sucumbirá, sem nada criar, ao destino que hoje parece o mais provável?
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