Podemos nos inspirar para a criação de uma educação antifascista que se oponha à essa realidade tão brutal que vai e já está nos assombrando
Vitor Ahagon*, Pragmatismo Político
Nos dias que correm, em meio aos debates sobre as eleições de 2018, a discussão de quem vai colocar a faixa presidencial se torna menos importante quando observamos os rumos que a sociedade brasileira está trilhando. Até agora, já foram registrados no Brasil, do norte ao sul e de leste a oeste, mais de uma centena de ataques ocorridos em detrimento de posicionamentos políticos [1]. A fascistização da sociedade brasileira está em curso à passos largos e independente de quem vença, teremos que lidar com esta situação.
Nesse sentido, acredito ser premente pensar qual lugar ocupa a educação em nossa sociedade e como nós, educadores e educadoras, podemos construir uma educação antifascista.
Como ponto de partida, penso que seja interessante marcar um posicionamento que se escancara com essas eleições. A democracia, tal como a conhecemos, é uma farsa. Pois quando a analisamos em sua mecânica interna, o pretenso poder do povo, nada mais é do que o poder de alguns sobre a maioria, portanto, uma oligarquia.
Obviamente, que a pior das democracias é sempre preferível do que a melhor das ditaduras, seja ela vermelha ou verde e amarela. No entanto, é justamente esta democracia que possibilitou a ascensão de figuras abjetas como Mussolini, Hitler e Jair Bolsonaro. Me parece, assim como para o anarquista italiano Errico Malatesta, que a democracia cedo ou tarde conduz à guerra e a ditadura. E a ditadura, pelo sufocamento de todas as liberdades, conduz, novamente, à democracia. E assim, democracia e ditadura dançam numa dialética sem fim nessa oscilação perpétua [2].
Neste momento pensamos: se a democracia conduz à ditadura e esta, por sua vez, é reconduzida para a democracia e assim por diante, como podemos sair dessa espiral viciosa?
Talvez, uma resposta possível possa ser dada pelo Anarquismo. O movimento anarquista, que se construiu após a expulsão da ala socialista libertária da Associação Internacional dos Trabalhadores em 1873 no Congresso de Haia, escolhe como princípio de ação e organização a ação direta.
Numa perspectiva clássica, Émile Pouget, eminente sindicalista e anarquista francês, nos diz que o significado da ação direta é de que “a classe operária, em reação contra o meio atual, nada espera dos homens, das potências e das forças exteriores a ela, mas que ela cria suas próprias condições de luta e extrai de si mesmo os meios de ação. Ela significa que, contra a sociedade atual que só conhece o cidadão, ergue-se doravante o produtor” [3]. Portanto, a ação direta é o meio criador de experiências condizente à finalidade de construção de autonomia da classe operária [4].
Trazendo a ação direta para a contemporaneidade, Eduardo Colombo, anarquista, médico e psicanalista argentino erradicado na França, nos fala que o sentido da ação direta ganha três dimensões: a primeira e a segunda dizem respeito “a inquietante autonomia de decisões tomadas na base, sem chefes nem dirigentes, e sua consequência, a não delegação da vontade operária à representantes políticos”; e a terceira, e não menos importante, a ação direta carrega “em seu horizonte as luzes da emancipação, a mudança radical da sociedade, a revolução social”[5].
Contrapondo a ditadura e a democracia, os anarquistas propalam as ideias de tomada de decisão pela base, sem a delegação do poder social à terceiros e assim, a construção da autonomia dos debaixo, abrindo horizontes para a revolução social. Palavras muito bonitas, nos fala ao pé do ouvido o cético, mas seria possível?
Ao longo de muitos anos, o movimento anarquista construiu sindicatos e organizações pautados no princípio da ação direta, sendo a criação de escolas uma tarefa fundamental ao movimento tanto no passado quanto no presente. Como já coloquei em outra oportunidade [6], para os anarquistas, a educação não se restringe à educação escolarizada. A educação seria, e é, diluída em toda a sociedade, mas tomemos como referencia a escola como espaço onde as práticas pedagógicas anarquistas foram experimentadas e que nos dão pistas para desenvolver hoje uma educação antifascista.
O ponto de referência que partiremos, serão as experiências que tive durante os anos que lecionei nos Cursinhos Livres em São Paulo [8]. Apesar da demanda mais imediata de possibilitar o acesso às universidades públicas pelas classes populares, os Cursinhos Livres proporcionam uma experiência à estudantes e educadores que é muito raro termos em outros espaços pedagógicos. Nos anos que pude participar deste lindo projeto, construímos uma série de práticas que foram sistematizadas em uma carta de princípios que cada cursinho partilha.
O primeiro ponto a se destacar é o da autonomia. Compartilhando da perspectiva democrática, o cursinho valoriza a autonomia pedagógica do corpo discente e docente. Ambos, no processo de ensino aprendizagem, respeitam suas curiosidades e anseios, aprendendo, numa troca bonita, os conteúdos que um e outro elencam como fundamentais. No entanto, a educação antifascista desses cursinhos, caminham mais além e encontram o anarquismo quando buscam, inclusive, uma autonomia política e econômica. Tais cursinhos livres, não submetem seus princípios e objetivos à nenhuma interferência externa, seja ela do Estado, empresas, igrejas ou ONGs, preservando, assim, seu projeto político-pedagógico. E como sabemos que “quem paga, escolhe a música”, os Cursinhos Livres se autofinanciam, mediante a venda de materiais e a realização de festas. A autogestão econômica dos cursinhos torna-se também pedagógico na medida em que os estudantes tomam para si a responsabilidade de organizar o evento, atividades e músicas.
O segundo princípio de sua carta é o anticapitalismo. Os Cursinhos Livres entendem que o capitalismo é um sistema político e econômico que busca explorar e dominar as classes populares, por isso colocando-se contrários a esse sistema, não baseando suas ações em relações monetárias. Os estudantes que chegam aos cursinhos não pagam nada pelas aulas, mas têm consciência das dificuldades de educadores-militantes, que não são pagos, e nem querem ser pagos pelas aulas, em manter esse espaço, criando laços de solidariedade na manutenção do projeto entre todas as pessoas envolvidas.
A horizontalidade é terceiro princípio, buscando assim, a construção de relações livres de hierarquia, onde as tomadas de decisões sejam feitas por todas as pessoas envolvidas no processo. Para viabilizar esse princípio, são criadas uma série de comissões, integradas por educadores e estudantes em pé de igualdade, que possuem funções específicas, reunindo-se no final do mês numa assembleia geral, onde todas as pessoas possuem voz.
Como quarto princípio, os cursinhos livres atentos às assimetrias sociais elencaram a valorização das minorias políticas, acolhendo as maiorias socialmente marginalizadas, não aceitando posturas opressoras e preconceituosas. Tal princípio, em tempos de ódio como o nosso, faz-se ainda mais necessário, tendo em vista as novas e velhas formas do xenofobismo no Brasil [8], a já tradicional discriminação de negros e indígenas [9] e o machismo e patriarcado latente em nossa sociedade [10].
O quinto princípio é o conhecimento crítico. Resgatando a tradição antidogmática da educação anarquista, constantemente, problematiza-se as verdades preestabelecidas tanto no que diz respeito ao conhecimento requerido nos exames, como o vestibular e o ENEM, quanto ao papel convencional de educadores como os arautos do conhecimento, por isso, trazendo para as discussões os saberes dos próprios educandos.
O sexto princípio diz respeito à organização interna e externa dos cursinhos. Os Cursinhos Livres entendem que o Federalismo é uma prática de organização social onde o poder não está centralizado em uma pessoa ou grupo, por isso buscando a autonomia dos indivíduos nas comissões, das comissões no cursinho, sempre respeitando as decisões coletivas das assembleias gerais. E como, ao longo do tempo, vários cursinhos livres foram sendo criados, estes cursinhos livres, apesar de compartilhar do mesmo projeto, possuem autonomia de decisões um em relação aos outros mesmo que articulados.
O sétimo princípio é o da Ação Direta, equiparando ao que discutimos acima, os cursinhos livres entendem que a própria criação desse espaço pedagógico é a tomada do protagonismo dos debaixo em sua autoeducação. E por ultimo, o oitavo princípio é o da Ajuda Mútua. Sendo um princípio eminentemente ético, a ajuda mútua se opõe à lógica da competição capitalista, pautando as relações e ações na cooperação e solidariedade entre os indivíduos que se associam livremente para lutarem pela sua própria liberdade e de todos [11].
A partir das experiências dos Cursinhos Livres de SP, podemos nos inspirar para a criação de uma educação antifascista que se oponha à essa realidade tão brutal que vai e já está nos assombrando. Enquanto pensarmos que seremos salvos pela classe política da social-democracia, o grande líder ou mesmo o partido de vanguarda, continuaremos esperando, relegando a responsabilidade de nossa liberdade para outros.
Sejamos os protagonistas de nossa própria emancipação. Resgatemos o princípio da Internacional, aquele que funda a Ação Direta: A emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores!
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Citações:
[1] Ver o Mapa da Violência Política no Brasil: https://www.google.com/maps/d/u/0/viewer?mid=1hNIxsASpLAxFjsWPMqFZtm-cuigr3jj9&shorturl=1&ll=6.053605202623709%2C-34.56783724999991&z=3&fbclid=IwAR3XLzpe9vYZNqUA5PTpXV8bfvj8RA6TLxonzNmRmXoARnJuuXAsKHy01Oc
[2] MALATESTA, Errico. Democracia e Anarquismo in Escritos Revolucionários. Editora Hedra, São Paulo, trad. Plínio Augusto Coelho, 2007, p.138.
[3] POUGET, Émile. Direct Action. Disponível em https://libcom.org/library/direct-action-emile-pouget
[4] Diferente da autonomia burguesa, onde a autonomia é vista a partir do ponto de vista do indivíduo, a autonomia anarquista é construída a partir da heteronomia do indivíduo em solidariedade com outros indivíduos heteronômicos.
[5] COLOMBO, Eduardo. O Sentido da Ação Direta. Revista da Biblioteca Terra Livre, ano II, n.3, primeiro semestre de 2015. Disponível em https://revistabtl.noblogs.org/ano-ii-numero-3-1o-semestre-de-2015/
[6] AHAGON, Vitor. Nem pública ou privada, quem educa é a sociedade. Disponível em https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/08/privada-publica-educa-sociedade.html
[7] Cursinho Livre da Lapa (https://www.facebook.com/cursinholivredalapa/?ref=br_rs), Cursinho Livre da Sé (https://www.facebook.com/cursinholivredase/?ref=br_rs), Cursinho Livre da Sul – Ariba lxs que luchan (https://www.facebook.com/cursinholivredasul/?ref=br_rs), Cursinho Livre da Penha (https://www.facebook.com/Cursinho-Livre-da-Penha-169833126775424/?ref=br_rs), Cursinho Livre da Norte (https://www.facebook.com/cursinholivredanorte/?ref=br_rs) e Cursinho Livre Cláudia Silva Ferreira (https://www.facebook.com/cursinholivreclaudiasilvaferreira/?ref=br_rs).
[8] PRAGMATISMO POLÍTICO. Homem tenta matar 31 imigrantes venezuelanos em Roraima (https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/02/matar-imigrantes-venezuelanos-roraima.html). Nordestinos são atacados por votarem em Fernando Haddad (https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/10/nordestinos-atacados-votarem-haddad.html)
[9] PRAGMATISMO POLÍTICO. Vice de Bolsonaro ataca negros e indígenas em 1 evento público como candidato. (https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/08/vice-de-bolsonaro-ataca-negros-indigenas.html)
[10] BURIGO, Joanna. Eleitores de Jair Bolsonaro reforçam a desumanização de mulheres (https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/09/eleitores-de-jair-bolsonaro-mulheres.html).
[11] Carta de princípios do Cursinho Livre da Lapa: http://lapalivre.wixsite.com/cursinho/blank-cq27e
*Vitor Ahagon é professor de história, membro da Biblioteca Terra Livre e colaborou para Pragmatismo Político.
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