Em vídeo inédito, infiltrado do Exército Willian Botelho, o Balta, mente para juíza. Magistrada aceitou alegações falsas sem questionar e ainda deixou Botelho omitir dados que já havia divulgado em depoimentos anteriores
Fausto Salvadori, Ponte
O nervosismo comanda o corpo do major Willian Pina Botelho, do serviço de inteligência do Exército, durante os 37 minutos em que depõe, diante de uma câmera de videoconferência, como testemunha no processo em que 18 jovens foram detidos no Centro Cultural São Paulo (CCSP), na região central da cidade de São Paulo, em 4 de setembro de 2016, acusados de associação criminosa e corrupção de menores.
À medida em que as perguntas vão sendo feitas pelos advogados dos jovens, Botelho permanece encolhido, com as pernas e mãos entrelaçadas. Vez por outra se balança na cadeira, olha para cima ou fita o relógio de pulso, remexe em papéis, engole em seco. Por pelo menos três vezes, mostra as mãos espalmadas e projeta o lábio inferior para a frente, como quem tenta dizer “é só isso” e “não tenho nada a esconder”.
Gravado em 29 de junho, o vídeo com o depoimento de Botelho havia permanecido oculto até agora, como parte do processo judicial que corre em segredo de justiça.
Publicado agora com exclusividade pela Ponte, o vídeo revela que o capitão deu uma versão que contradiz os fatos ocorridos em 2016. Naquele 4 de setembro, os jovens presos não conseguiram entender por que Botelho, que havia sido detido junto com eles, acabou liberado e escapou de ser levado à delegacia como os demais. Já naquela noite, a liberação mal explicada fez os jovens imaginarem que o homem que conheciam como Balta fosse um P2, um policial militar disfarçado. A realidade, contudo, se mostrou mais surpreendente do que sua imaginação: na mesma semana, reportagens da Ponte e El País revelaram que Balta era, na verdade, o capitão do Exército William Pina Botelho.
Perguntado a respeito de sua liberação pela polícia, no depoimento de 29 de junho, Botelho dá uma resposta simples: “Eu fui liberado juntamente com outros jovens”. A versão do militar, contudo, é desmentida por uma foto tirada do momento da detenção dos jovens:
Na foto, Botelho aparece ao lado de outros três jovens: C. B. N., à sua esquerda, e, à direita de Botelho, F.G.Z. e C.V. Nenhum dos três foi “liberado”, como afirma Botelho. Ao contrário: todos foram levados presos até o Deic (Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado) e autuados. Nem os advogados, nem a juíza Cecília Pinheiro da Fonseca contestaram a declaração falsa.
Advogados e juíza fizeram as perguntas no Fórum da Barra da Funda, na zona oeste de São Paulo. Botelho foi ouvido a 3.917 quilômetros dali, no Fórum Ministro Henoch da Silva Reis, em Manaus, capital do Amazonas. Após o episódio da prisão dos 18 jovens do CCSP, Botelho foi transferido para o Comando Militar da Amazônia e promovido “por merecimento” de capitão para major.
No vídeo, Botelho vai se mostrando mais relaxado, conforme a juíza vai aceitando suas alegações e passa a vetar ou suavizar as perguntas mais incômodas feitas pelos advogados. Quando um advogado pergunta a Botelho “Nessas atividades de inteligência que o senhor fazia, o senhor tinha que mentir sobre convicções e fatos?”, a juíza reformula a indagação, transformando-a em “O senhor participava desses grupos em razão de sua função ou por convicção pessoal?”. Botelho responde que participou de grupos de Whatsapp e Facebook com pessoas que pretendiam ir a protestos de ruas como uma “atividade profissional”.
A tal atividade profissional era a de “observar e relatar”, segundo Botelho. “Eu estava na qualidade de observador de inteligência, por ocasião da passagem da Tocha Paralímpica”, disse. Segundo ele, sua atividade de observação estava autorizada por um decreto federal de 31 de agosto, que autorizava a atuação das Forças Armadas em uma operação de GLO (Garantia da Lei e da Ordem), que dá poder de polícia aos militares envolvidos. “O objetivo dessa operação era subsidiar as pessoas que tivessem cuidando desse trabalho receber informações acerca do que estivesse acontecendo ali na Paulista”, disse.
Botelho apresenta a mesma versão que deu nas outras três vezes em que foi ouvido sobre isso, por uma sindicância do Exército, pela Procuradoria de Justiça Militar e pelo Gecep (Grupo de Atuação Especial de Controle Externo da Atividade Policial) do Ministério Público Estadual. Dessa vez, porém, não informou, como havia feito nos depoimentos anteriores, que o oficial superior a quem se reportava era o tenente-coronel Edgard Brito de Macedo, comandante da 3ª Companhia de Inteligência. Perguntado a qual oficial respondia, Botelho se recusa a falar. “Essa informação eu não posso lhe falar, por dever de sigilo funcional”, diz. Um dos advogados até insiste, dizendo que a informação é pública, já que o oficial é um servidor público, mas a juíza veta qualquer pergunta nesse sentido.
Outro momento tenso do depoimento ocorre perto do final, quando uma das advogadas insiste na questão de qual amparo legal Botelho tinha para suas atividades anteriores para 4 de setembro de 2016, já que o decreto presidencial a que ele se referia havia autorizado a GLO apenas para aquela data. A juíza Cecília não deixa que a pergunta seja feito e ainda dá uma bronca na advogada. “Eu vou pedir para a senhora se acalmar e abaixar o tom de voz”, diz.
Esta mesma pergunta, contudo, Botelho ainda terá de responder, já que sua conduta está sendo investigada por procedimento investigatório criminal conduzido pelo procurador Marcos Angelo Grimone, do Ministério Público Federal. O procurador já disse à Ponte que uma das principais questões da investigação é saber quem deu a ordem para as atividades de inteligência de Botelho. Resta saber como o major irá responder a essa pergunta quando depuser no MPF e o procurador não se mostrar tão disposto a deixar de lado as perguntas que incomodam.
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