Como explicar o antinacionalismo dos militares que circundam Bolsonaro?
Pesquisadores e intelectuais questionam o caráter entreguista das medidas já anunciadas pelo presidente eleito Jair Bolsonaro. As Forças Armadas, outrora associadas à defesa do interesse nacional, reaparecem no cenário político brasileiro com um discurso que contempla até propostas radicais de privatização
Júlia Dolce, Brasil de Fato
O nacionalismo do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) tem sido colocado em xeque por opositores e intelectuais, que questionam o caráter entreguista das medidas já anunciadas pelo capitão reformado do Exército.
As Forças Armadas, outrora associadas à defesa do interesse nacional, reaparecem no cenário político brasileiro com um discurso patriótico esvaziado, que contempla até propostas radicais de privatização.
Nem sempre foi assim. Na década de 1950, os militares participaram da fundação da Petrobrás e reivindicaram seu caráter público e estatal. A narrativa privatista e anticomunista da ditadura militar, iniciada em 1964, logo foi deixada de lado em nome da valorização das empresas nacionais. O próprio Bolsonaro defendia, 13 anos atrás, que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) fosse fuzilado por defender a privatização da Vale do Rio Doce.
Para o cientista político e professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) João Quartim de Moraes, essa contradição não é uma característica apenas do governo eleito, mas das próprias Forças Armadas. Moraes é pesquisador de filosofia antiga, teoria política e instituições brasileiras, e já publicou diversos livros sobre o militarismo no Brasil e América Latina, como “A Tutela Militar“, de 1987, “A Esquerda Militar no Brasil“, de 1991, e “Liberalismo e Ditadura no Cone Sul“, de 2001.
“Eu concordo que há uma contradição objetiva, ela é o seguinte: as Forças Armadas como instituição estão identificadas ao Estado brasileiro. Se ele fica fraquinho, elas também ficam. De outro lado, ideologicamente, elas estão identificadas com o que chamavam de Colosso do Norte, os Estados Unidos – hoje, Trump. É uma contradição deles, que nós temos que levar em conta“, afirmou.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: O senhor enxerga uma contradição no caráter militar antinacionalista do governo de Jair Bolsonaro?
João Quartim de Moraes: A gente determina uma contradição identificando bem quais são os polos dela. No golpe de 1964, no primeiro governo da ditadura, do General Castelo Branco, eles eram privatistas, liberais. Quem mandava na economia era Roberto Campos, um privitatista extremado, liberalóide fanático. Esse tal Paulo Guedes aí, o já designado “superministro” das questões econômicas, é um continuador, talvez menos preparado intelectualmente – porque Roberto Campos era um homem de certa cultura –, mas é a retomada desse liberalismo extremado, socialmente indiferente e cruel. Isso tivemos na primeira fase da ditadura. Houve uma inflexão lenta para uma política de fortalecimento do Estado nacional, que atinge o auge no governo de Ernesto Geisel, uma tentativa de desenvolvimento econômico planejado e centrado no Brasil com um esforço muito grande, que acabou não dando tão certo porque foi atropelado pela crise internacional, do petróleo, governando em uma situação internacional muito adversa. Nesse sentido, pode ser comparado ao governo de Dilma Rousseff a partir de 2012.
Nisso, ele não realizou parte considerável do seu projeto de industrialização acelerada, de desenvolvimento possante das vias de transporte. Ele investiu muito em ferrovia, mas o êxito foi parcial. O interessante é que a contradição que houve foi entre a alta burguesia paulista, banqueiros e industriais, FIES, Febraban, e o Geisel. Porque fizeram uma campanha anti-estatizante – o que dominou a cena política brasileira entre 1977 e 1978.
Em geral, espera-se que os governos militares sejam mais nacionalistas. Isso é parcialmente verdadeiro, mas geralmente esquecemos porque temos a bronca da repressão e do DOI-CODI. Mas, é preciso ver com mais amplitude. Os militares não são todos monolíticos. Tem gente com ideias diferentes lá, de autonomia econômica nacional.
Agora, no governo Bolsonaro, como se configura? Não sei bem. O próprio Bolsonaro tem aquele lado falastrão, vai lançado as frases, muito para apavorar a molecada, mas atrás disso ele não é bobo. Ele fala uma besteira, mas quando se dá conta, ele recua. Veja o caso da China: explicaram para ele que é o maior importador do Brasil, que se a China romper relações com o Brasil é o maior prejuízo. Aí ele parou e considerou isso. Nós tememos, estamos assustados com o que ele pode fazer, mas bobo ele não é.
Mas, historicamente, os militares costumam ter o nacionalismo como valor inerente?
É complexo porque, do mesmo modo que havia muitos militares nos anos 1950, que batalharam corajosamente, até próximos do partido comunista então na ilegalidade, e aos intelectuais nacionalistas, pela Petrobrás, como também lutaram pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Cnpq), havia também a direita militar que recebia ordens de Washington direta e indiretamente. Esses eram a favor do alinhamento incondicional.
Bolsonaro bateu continência para a bandeira estadunidense, o que é lastimável, mas é difícil identificar essa contradição. Eu concordo que há uma contradição objetiva, e ela é o seguinte: as Forças Armadas como instituição estão identificadas ao Estado brasileiro; se ele fica fraquinho, elas também ficam. De outro lado, ideologicamente, estão identificadas com o que chamavam de Colosso do Norte, os Estados Unidos. É uma contradição deles, que nós temos que levar em conta: uma contradição no interior das Forças Armadas brasileiras.
Isso está relacionado à influência dos EUA no golpe de 1964?
Isso não começou em 1964. Do mesmo modo que a vitória do candidato de linguajar e, quem sabe, ideologia fascistóide, não começou com a campanha eleitoral de 2018. Eu diria que começou em junho de 2013, quando a direita começou a tomar conta da rua, ultrapassando e manobrando aqueles protestos até progressistas da molecada do passe livre. Do mesmo modo, em 1964, começou muito antes. Começou com uma vitória da esquerda, a vitoriosa resistência de 1961 à primeira tentativa para impedir que João Goulart virasse presidente, com a renúncia de Jânio Quadros.
Eles não queriam Jango, então houve uma mobilização, da qual despontou a figura desse grande dirigente de esquerda, Leonel Brizola, e coordenou a resistência ao golpe. Mas eles perderam ali e vieram para o toco depois. Eu fiz um livro há 20 anos, “A Esquerda Militar do Brasil”, em que narro isso até a revolução desde 1930. A alta burguesia paulista articulou-se fortemente em contato com os militares até 1961.
Tanques estadunidenses foram doados ao Exército brasileiro, em outubro, e as Forças Armadas estadunidenses já vieram treinar na Amazônia neste ano. O senhor acredita que essas ações simbolizam uma perda de soberania, talvez uma entrada do Brasil em uma guerra contra a Venezuela, à sombra dos EUA?
Ceder base para os Estados Unidos aqui no Brasil é algo que põe em questão a soberania. Trump foi derrotado parcialmente agora nas eleições estadunidenses, os democratas são maioria na Câmara – não sei se aceitariam passivamente uma invasão na Venezuela.
Agora, se o Brasil aceitar o miserável papel de tropa auxiliar dos EUA em uma invasão dos EUA, aí seria um rebaixamento da nossa soberania: voltaremos a ser um satélite. Mas isso não está configurado ainda. O que está configurado na Venezuela é que os imigrantes estão vindo para o Brasil, porque a situação econômica lá está tremendamente difícil. Então, podem usar o argumento de que reforçar a segurança na fronteira é impedir que isso vire um caos. Mas acho que o Brasil, por enquanto, ainda não tem um papel fundamental para desestabilizar a Venezuela. Isso vem do bloqueio estadunidense e de uma hiperinflação que eles não têm conseguido controlar.
As pessoas estão muito preocupadas e assustadas com o que esse governo representa. O senhor acredita na possibilidade de um golpe militar?
Os militares não precisam disso. Se ganharam uma eleição, por que precisam dar um golpe? Isso poderá se configurar mais a frente, daqui a vários meses, no mínimo, se, o que é possível, logo de início as cabeçadas de Bolsonaro criarem uma situação econômica insustentável. Não creio que isso ocorrerá logo no início. Ou talvez por excesso de violência, na linha de frente dele está o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), depois o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e o próprio Partido dos Trabalhadores (PT).
Agora, golpe militar, o chamado “auto-golpe“, com ele, com o General Mourão, que me parece instável psicologicamente se não for fingimento, eu não sei. Mas saberemos logo, porque ele terá que definir se será uma reedição de Jânio Quadros, que aguentou seis meses.
Temos que usar com certa prudência as comparações históricas e não ficar antecipando ou agravando a situação já difícil e preocupante, porque o alarmismo é ruim. Não tenho nenhuma dúvida que o amor à democracia nas cúpulas militares é pequeno, e que diante de uma situação de perigo comunista, ou de crise, algo que eles sempre inventam, ou uma situação real e objetiva de descalabro econômico, paralisia da economia ou revolta social intensa, aí sim o espectro de um auto-golpe com Bolsonaro, com a cúpula militar empurrando Bolsonaro, se ele se demonstrar demasiado desequilibrado, é possível. Mas é mais complexo, internacionalmente. já imaginou uma ditadura militar no Brasil? O único país… eles têm uma noção.
Mas, na sua opinião, podemos virar uma sociedade bem mais militarizada?
O pior que está acontecendo agora é que quem está empurrando a militarização da sociedade não são os militares propriamente. São os talibãs evangélicos, que inutilmente a Dilma Rousseff tentou aplacar, fazendo média, indo vistar o Templo de Salomão.
O que a esquerda tem de fazer é travar um combate ideológico pela cultura e pelas luzes. Vamos diagnosticar direito a coisa. O problema principal e ideológico do Brasil, por hora, não são os militares, porque Bolsonaro é um fanático, e esse é o principal entorno ideológico que o impulsionou. O principal problema de retrocesso cultural são os extremistas evangélicos, e é nisso que temos que prestar atenção, travando uma corajosa luta, como vem sendo travado nas escolas e universidades públicas, contra essa aberração que é o “Escola Sem Partido“.