Mãe relembra últimos momentos de filho assassinado por eleitores de Bolsonaro
"Treze aqui não, porra". Uma mãe reconstitui os últimos momentos da vida do filho, morto com três tiros em uma carreata de apoio a Haddad no Ceará, na véspera da eleição
Henrique Araújo*, piauí
Um comboio de cerca de 150 veículos parava a rua principal da cidade de Pacajus, na região metropolitana de Fortaleza, em uma carreata de apoio ao petista Fernando Haddad, no sábado, véspera da eleição. Dentro de um Fiesta prata 2004, a sindicalista Regina Lessa, de 46 anos, e o filho Charlione Lessa, de 23, iam vestidos para a ocasião: camiseta vermelha com o nome do candidato e o símbolo do PT.
Charlione conduzia o carro, e a mãe, ex-presidente do Sindicato dos Sapateiros do Ceará e uma das organizadoras do ato, sacudia uma bandeira do partido na janela. Em meio ao buzinaço, um susto: um grupo opositor cercou o carro e ameaçou quebrar o vidro traseiro, onde havia um adesivo de Haddad. Regina respondeu que “o voto é democrático”, e seguiram em frente. Foi a primeira ameaça da tarde, e de longe a menos traumática.
Mais alguns metros, e novo sobressalto. Ainda perto do estádio de futebol onde o ato se concentrava, na Aldeia, bairro de classe média, um homem saiu até o portão de uma casa e, com o indicador e o polegar, fez um gesto de arma para eles. Regina e o filho se entreolharam e prosseguiram.
Menos de vinte minutos depois, pouco antes das 19 horas, um terceiro e último ato de intimidação interrompeu a carreata. Na mesma rua, a 100 metros da Delegacia de Polícia de Pacajus, um homem se aproximou da janela do Fiesta em que iam mãe e filho e disparou três tiros – dois no braço esquerdo de Charlione e um no tronco. “O carro estava parado no meio da carreata. Meu filho no volante, e eu no banco de carona”, contou Regina à piauí, na primeira entrevista depois do crime. “Veio um Gol branco na contramão e emparelhou. Quando olhei pro lado, tinha um cara apontando uma arma. Era uma arma muito feia. Pensei que fosse de brinquedo.”
Primeiro o homem disparou duas vezes, disse Regina, e depois deu uma advertência: “Eu lembro bem. Ele disse ‘treze, não. Aqui é nós. Treze, não, porra.’ E aí atirou mais uma vez. Foi uma coisa muito bárbara o que fizeram com meu filho”.
Um dos participantes do ato, que prefere não se identificar por segurança, correu até o veículo. Encontrou Charlione atravessado entre os dois assentos da frente. A mãe chorava ao lado e parecia em choque. No banco de trás havia um menino de 6 anos, neto de Regina e sobrinho de Charlione. Estava mudo. “Segurei o braço do Charlione, e tinha muito sangue. Ainda levaram pro hospital, mas ele não resistiu”, relembrou a testemunha, um rapaz de 18 anos.
Convocados pela ex-vereadora Lívia Meneses, do PCdoB, centenas de veículos participaram da carreata. Um dia antes, na sexta-feira, apoiadores do presidente eleito, Jair Bolsonaro, do PSL, haviam percorrido aquelas mesmas ruas em cortejo. Segundo o Comando da Polícia Militar, não houve incidentes.
Charlione Lessa Albuquerque era o caçula de três irmãos. Recém-contratado, começaria a trabalhar em breve como entregador de água na Cidade dos Funcionários, bairro de Fortaleza onde a irmã mora com os dois filhos, de 5 e 6 anos.
“Ele estava muito feliz”, lembra M., amigo com quem ele havia almoçado naquele sábado, em Pacajus. “Tava com a carteira de motorista fazia um mês. Era um cara bom, queria ajudar a família.” O amigo conta que Charlione tinha duas paixões: futebol e videogame. E torcia para dois times: Corinthians e Ceará. “A gente tinha combinado de ir pro estádio na segunda-feira pra ver o jogo do Ceará contra o Atlético Mineiro, no Castelão”, disse. “Fui sozinho.” O alvinegro cearense ganhou por 2 a 1.
Com o ensino médio completo, Charlione fazia bicos como servente de pedreiro para ajudar a família. Recentemente, havia trabalhado com um primo na reforma de uma casa na Cidade dos Funcionários. Tinha recebido há poucos dias a resposta sobre a vaga como entregador de água. Do lado esquerdo do abdômen, ele tinha tatuado um terço católico.
Ao amigo com quem almoçou no dia em que morreu, ele havia contado que participaria da carreata. “O Charlione disse que iria só por causa da mãe dele. Eu ainda falei pra não ir. Estava com um pressentimento, não sei explicar”, relembrou. “Fizeram uma crueldade com o meu mano.”
O jovem não só foi ao ato, como ajudou a organizá-lo. Ex-presidente do sindicato dos sapateiros do estado e dirigente da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Vestuário, Regina amanhecera ao lado do filho na feira livre de Pacajus, antecipada para o sábado por causa das eleições. Ali, entre barracas de comida e fruta, distribuíram material da campanha de Haddad até perto do meio-dia. “Meu filho já estava acostumado. Fizemos umas três atividades no primeiro turno”, ressaltou Regina, funcionária há vinte anos da empresa de calçados Vulcabras, em Pacajus. Com 71 mil habitantes, a cidade é um polo calçadista no estado.
Charlione tinha como objetivo, um dia, “comprar uma casa”, lembrou a mãe. Ele também costumava ajudar a irmã a cuidar dos sobrinhos, que o chamavam de tio “None” – o nome do rapaz foi escolhido por ter sonoridade semelhante ao da irmã, Sheylla. Regina contou que ele queria prestar vestibular este ano, e vinha estudando em casa. Pretendia fazer administração de empresas.
Um ano mais velho que Charlione, o segundo filho de Regina, Charlilton Lessa Albuquerque, de 24 anos, foi preso em flagrante por roubo em 6 de novembro do ano passado e condenado. Depois de uma progressão na pena, foi solto em junho deste ano. Hoje cumpre medida alternativa. Ele também é denunciado por receptação de drogas. O inquérito segue na Delegacia de Pacajus. Depois do assassinato do filho, houve rumores de que o crime seria uma vingança “de facções”. Regina disse que “estão usando isso pra dizer que o menino é criminoso”. E acrescentou: “Ele errou [o irmão de Charlione]. Eu não nego isso. Falo abertamente. Mas o envolvimento dele não tem nada a ver [com a morte]”.
Charlione não tinha antecedentes criminais, como informou à piauí a secretaria de segurança do Ceará. Questionada se via motivação política no crime, Regina respondeu que sim e disse que o filho se tornou alvo por usar a camisa do PT.
Charlione morreu no Hospital Municipal de Pacajus, cerca de meia hora depois de ser levado à emergência. A versão de que o crime fora cometido por apoiadores de Bolsonaro logo se espalhou. Na unidade de saúde, alguém filmou o momento em que Regina é informada de que o filho não tinha resistido aos ferimentos. Na gravação, que viralizou nas redes sociais, uma mulher acusa eleitores de Bolsonaro. “Olha aquilo ali”, ela grita, “a mãe sofrendo porque um filho acabou de ser morto por uma bala de um eleitor do Bolsonaro.”
À piauí, Regina negou ter escutado o nome do candidato do PSL durante o ataque. A versão de que o assassino teria gritado “Bolsonaro” se disseminou na internet, mas não encontrou sustentação em nenhum relato de seis testemunhas do crime ouvidas pela reportagem.
O suspeito do assassinato tampouco vestia alguma peça de roupa que remetesse ao capitão da reserva, como o verde-amarelo que virou marca de seus apoiadores na campanha. “Lembro perfeitamente dele [do assassino]”, disse Regina. “Ele já saiu com a arma em punho e foi direto pro nosso carro. É jovem, baixo, fortinho e alvarento [branco].” Segundo a mãe, o criminoso vestia calção branco e blusa cinza. Ela acredita que, como era uma das organizadoras do ato, o assassino os escolheu.
Na tarde desta terça-feira, a sindicalista foi à delegacia de Pacajus prestar depoimento e fazer o reconhecimento de suspeitos a partir de imagens de câmeras de segurança. Ela mostrou aos policiais a foto do filho ao volante, vestindo a camiseta do PT, na garagem de casa, antes de sair para a carreata. Regina não associou nenhum dos rostos exibidos em fotos ao do assassino do seu filho.
Procurada, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará disse que “equipes da Polícia Militar e do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa seguem em diligências”, para capturar “um indivíduo responsável por efetuar disparos de arma de fogo contra um homem que não possuía antecedentes criminais”. A pasta não comentou as razões do homicídio.
A piauí contatou o comando da PM no estado, que, por meio da assessoria de imprensa, afirmou que uma viatura, de número 15122, foi enviada ao ponto de partida da carreata, mas que, “em razão da grande extensão do ato”, não pôde fazer a segurança do local todo. A defensoria pública estadual, por meio do Observatório da Intolerância Política e Ideológica, instalado três dias antes do crime, acompanha o caso.
Pelo Twitter, Haddad se pronunciou ainda no sábado: “É inadmissível o assassinato de um jovem que participava de carreata da minha campanha em Pacajus”, escreveu. “À família, toda minha solidariedade.” Na cidade, o petista obteve 67,4% dos votos, contra 32,6% de Bolsonaro.
É inadmissível o assassinato de um jovem, Charlione Lessa Albuquerque, que participava de carreata da minha campanha em Pacajus. Ele estava no carro com a mãe celebrando a democracia e acabou morto. É preciso apuração e punição rápida. À família, toda minha solidariedade.
— Fernando Haddad (@Haddad_Fernando) 28 de outubro de 2018
O corpo de Charlione foi sepultado no cemitério Jardim do Éden, no município de Pacatuba, também na região metropolitana de Fortaleza. No domingo, enquanto a maior parte dos brasileiros se dirigia à urna para escolher o novo presidente do Brasil, Regina enterrava o filho caçula. Foi a primeira vez que deixou de votar.
Leia também:
A pergunta que perturbará o sono da nossa geração por muito tempo
Petição propõe pena de morte para petistas, familiares e simpatizantes
Eleitores de Bolsonaro se sentem legitimados para aniquilar opositores
*Henrique Araújo é jornalista em Fortaleza e mestrando em Literatura pela Universidade Federal do Ceará.