LeRoy Carhart, o médico que se arrisca ao realizar abortos nos Estados Unidos. Ativistas antiaborto tentaram impedi-lo. Um ano depois, sua clínica vai muito bem
No ano passado, a equipe da Germantown Reproductive Health Service, uma das últimas clínicas do Estados Unidos que realizam abortos no terceiro trimestre de gestação, recebeu uma notícia surpreendente. Todd Stave, o dono da clínica – que a herdou do pai, ginecologista –, tinha vendido o negócio. Apesar de ter assegurado aos funcionários que eles seriam avisados com antecedência de uma eventual mudança, a equipe foi comunicada que os atendimentos seriam interrompidos na semana seguinte.
Ainda mais chocante foi saber que os compradores eram a “Coalizão de Maryland pela Vida“, grupo antiaborto que há anos tinha como alvo o principal médico da clínica, LeRoy Carhart.
Carhart é um dos médicos que realizam abortos nos Estados Unidos. Há 7 anos, Carhart alugava a clínica de Stave para fazer abortos em mulheres até 28 semanas de gestação, às vezes até mais. Durante quase todo esse tempo, a “Coalizão” organizou protestos do lado de fora da clínica e, em 2011, a entidade abriu um “centro de crise de gravidez” do outro lado da rua. Hoje, o grupo reuniu cerca de 1,2 milhão de dólares para comprar as duas clínicas de Stave, efetivamente impedindo Carhart de fazer seu trabalho.
Quando a notícia se espalhou entre os ativistas antiaborto, começaram a surgir histórias sobre o poder da oração em sites de notícias pró-vida. Em um dos posts, o grupo ativista de Maryland proclamou que sua ação representava um passo chave no caminho do fim do aborto no estado, comemorando o fechamento “permanente” da clínica.
Carhart se sentiu “de coração partido” por causa das pacientes que não encontrariam alternativas depois do fechamento da clínica. “Minha equipe inteira ficou desalentada ao perceber até que ponto esses extremistas estão dispostos a chegar, a fim de limitar a capacidade das mulheres decidirem sobre seu futuro e sua saúde“, afirmou Carhart ao HuffPost.
“Foi um tempo sombrio para nossa equipe e, com certeza, para muitas de nossas pacientes – especialmente para Carhart“, disse Chelsea Souder, diretora de serviços clínicos e de comunicação para as clínicas nos estados de Nebraska e Maryland.
Mas Carhart e sua equipe prometeram continuar oferecendo seus serviços para mulheres no segundo e terceiro trimestres de gestação – e, menos de dois meses, depois, eles cumpriram a palavra, abrindo uma nova clínica em Bethesda, também no estado de Maryland, no final de outubro de 2017.
Depois de passado o choque do fechamento da Germantown Reproductive Health Service, afirmou Souder, eles se viram na posição de oferecer um serviço que consideram essencial e que corre o risco de desaparecer.
A nova locação tem a intenção de dar mais privacidade para as pacientes e para os funcionários, separando-os dos manifestantes antiaborto que eventualmente fazem protestos na frente da clínica. Hoje, quase um ano depois, mais de 500 pacientes foram atendidas. “Foi uma guinada de 180 graus“, disse Souder.
A lei norte-americana e os números do aborto nos Estados Unidos
A maioria dos estados norte-americanos têm leis que estabelecem limites para o aborto de acordo com o estágio da gravidez. 17 deles limitam o aborto acima de 20 semanas de gestação, mais ou menos a metade da gravidez, com base em afirmações comprovadamente não-científicas para garantir a saúde da mãe.
Nacionalmente, só 9% das mulheres o faz depois da 21ª semana. Mulheres que passam por abortos tardios muitas vezes enfrentam situações angustiantes, como anormalidades do feto ou gravidez de risco. Estudos apontam que fatores como estupro, eventos de vida disruptivos (como perder o emprego) e viver abaixo da linha da pobreza estão associados ao aborto tardio. Mulheres mais pobres podem ter dificuldade de ter o dinheiro para o procedimento e para chegar até as clínicas (muitas vezes distantes), e a falta de acesso a métodos contraceptivos pode fazê-las recorrer ao procedimento.
Apesar de relativamente raros, abortos tardios continuam sendo um assunto quente no debate em relação ao aborto nos Estados Unidos. A maioria dos norte-americanos é a favor do chamado “princípio geral do aborto“, consolidado em lei pela decisão da Suprema Corte Roe vs. Wade. Mas o apoio do procedimento feito em estágios mais avançados da gravidez causa controversa. Segundo dados recentes do instituto de pesquisas Gallup, 65% dos americanos acreditam que o aborto deveria ser ilegal por volta do segundo trimestre, e 81% acreditam que deveria ser ilegal no terceiro trimestre. Os estados vêm restringindo o acesso ao aborto mais tardio e, no ano passado, a Câmara aprovou uma proposta de proibição federal de abortos depois de 20 semanas, com pena de prisão para quem descumprir a lei.
O médico Carhart tornou-se figura pública no debate sobre o aborto na esteira do assassinato de seu amigo e mentor George Tiller, em 2009. Tiller, assassinado por um extremista antiaborto enquanto esperava para participar de uma missa, treinou Carhart na realização de abortos em mulheres no terceiro trimestre de gestação.
Antes do assassinato, Carhart visitava a clínica do mentor uma vez por mês para fazer as cirurgias. Ele estava determinado a oferecer o mesmo serviço em sua clínica no Nebraska. Carhart disse à revista Newsweek em 2009 que sabia dos riscos, mas considerava o tema uma questão de vida ou morte. “Aborto não é palavrão“, afirmou ele. “Tenho orgulho do que faço.”
Um ano depois, o Nebraska tornou-se o primeiro estado norte-americano a aprovar uma lei proibindo abortos após a 20ª semana de gravidez. Foi quando Carhart começou a viajar para Maryland para oferecer o procedimento na clínica citada acima na reportagem.
Maryland proíbe o aborto após comprovada a viabilidade da gestação – tipicamente depois de 24 semanas, mas esse é um conceito nebuloso -. O procedimento pode ser realizado em estágios mais avançados da gestação caso a saúde da mulher esteja em risco. Por 7 anos, Carhart fez uma ponte aérea quase semanal entre Nebraska e Maryland, oferecendo abortos para mulheres na clínica de Germantown até seu fechamento.
Desde então, Carhart atendeu mais de 500 pacientes na nova clínica, afirmou Souder ao HuffPost. Cerca de três quartos delas realizam o procedimento no segundo trimestre ou depois. Mais de 90% das mulheres viajam uma hora ou mais para chegar à clínica, conta Souder, e muitas vêm de outros países: Canadá, México, Europa e Américas Central e do Sul. Em geral, são mulheres que vivem em países onde o aborto é proibido ou onde não existem médicos que realizem esse tipo de procedimento.
“As leis de Maryland permitem que o aborto seja oferecido em estágios mais avançados da gravides para anomalias fetais e riscos para a vida da paciente“, disse Diana Philip, diretora executiva da NARAL Pro-Choice Maryland, chefe regional de entidade nacional que luta pelo direito ao aborto. “Somos um refúgio para as pessoas que buscam um tipo de cuidado complicado, em situações inesperadas.”
Apesar de completar 77 anos este mês, Carhart riu da ideia de que possa estar considerando a aposentadoria – apesar de, ao longo dos anos, ele diz sentir pressão para treinar outros médicos. “Muitos dos médicos que fazem abortos são mais velhos – especialmente aqueles que cuidam da paciente conforme a gravidez avança“, disse Carhart ao HuffPost. “Não tenho planos de me aposentar, mas um dia não vou mais praticar medicina, e não quero que esses serviços desapareçam.”
O American College of Obstetricians and Gynecologists, entidade que reúne obstetras e ginecologistas norte-americanos, pede que o treinamento dos procedimentos abortivos seja parte dos programas de residência, com a possibilidade de que os estudantes não participem – ou seja, oferecer esse treinamento para todos os residentes, a menos que eles decidam não fazê-lo com base em objeções morais ou religiosas. Mas a entidade afirma que esses programas variam muito em termos de escopo e tipo de treinamento oferecido.
Os abortos tardios envolvem mais riscos porque são um procedimento complexo, que pode durar vários dias e tem um nível de intensidade emocional diferente para as mulheres, que às vezes estão interrompendo uma gravidez desejada.
Eles também transformam as clínicas que o oferecem em alvo. A Federação Nacional do Aborto, que contabiliza agressões e hostilidades contra médicos e clínicas, relata um pequeno aumento nas invasões de clínicas, obstrução de pacientes e ameaças de violências contra provedores. Stave, por exemplo, afirmou que um dos principais motivos que o levaram a vender as clínicas de aborto, inclusive a de Germantown, foram telefonemas ameaçadores e os manifestantes com cartazes mostrando fetos.
“Sempre trabalhei com a próxima geração, mas, agora que tenho minha própria clínica, posso investir em contratar e treinar médicos e enfermeiros para oferecer esse tipo de serviço“, afirmou Carhart.
“Também é importante para mim trabalhar com residentes e outros provedores de saúde – mesmo que eles não façam abortos“, continuou ele. “Quero que eles entendam por que as pacientes procuram as clínicas de aborto, para que recebam a compaixão e respeito que elas merecem. Isso sempre foi muito importante para meu colega Tiller, e é um trabalho que tento levar adiante.”
A clínica de Bethesda contratou três médicos relativamente jovens, que estão aprendendo a fazer abortos tardios e que, ao contrário de Carhart, preferem manter o anonimato por motivos de privacidade e segurança. Só um deles mora em Maryland; os outros dois viajam semanalmente para Bethesda. Por enquanto, Carhart supervisiona todos os procedimentos, afirmou Souder.
“Não tinha nenhuma experiência com abortos no terceiro trimestre até vir trabalhar com Carhart“, disse um dos novos médicos, em entrevista ao HuffPost por email. “Estava buscando mais treinamento e, depois de passar somente três semanas na clínica de Bethesda, entendi como é grande a necessidade.”
Ao contrário da clínica de Germantown, que operava numa casa e, portanto, era alvo relativamente fácil para os manifestantes, a de Bethesda opera num edifício com outros 30 consultórios. Os manifestantes não sabem exatamente quem está lá para visitar a clínica de Carhart, o que muda a atmosfera, afirmou Souder.
O dono do prédio ergueu uma cerca para manter os manifestantes afastados, instalou câmeras de segurança e contratou uma empresa para guinchar carros estacionados fora do lugar permitido. Souder afirmou que a comunidade local apoia a clínica, por meio de doações e expressando surpresa com o pequeno número de manifestantes.
Em Germantown, não era incomum ver grupos de mais de 50 pessoas na calçada; hoje, em geral eles não passam de cinco.
Em um post de blog de um ano atrás, a Coalizão de Maryland pela Vida disse saber da possibilidade de que Carhart abrisse uma nova clínica e organizou um protesto. Mas, desde então, a resistência parece ter arrefecido.
O clima entre os quatro médicos e cerca de 15 funcionários é de otimismo, disse Souder, temperado pela preocupação com o direito ao aborto durante o atual governo.
“É claro que estão acontecendo coisas fora do nosso controle“, afirmou ela. “Mas, enquanto isso, vamos continuar cuidando das nossas pacientes da melhor forma possível.”
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Catherine Pearson, HuffPost
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