João Miranda
Colunista
Política 17/Nov/2018 às 14:14 COMENTÁRIOS
Política

Os Mais Médicos e uma história real

João Miranda João Miranda
Publicado em 17 Nov, 2018 às 14h14

João Elter Borges Miranda*, Pragmatismo Político

— Vamos falar com aquela senhora — ela disse, apontando com o dedo. — Agora — completou, com a voz mais forte, tocando-lhe o braço, porque, com apenas uma hora de caminhada, ela já pôde perceber que ele é um homem distraído.

Sim, distraído, quem sabe? Alguém provisório, talvez; alguém que, aos 26 anos, não tem nada, exceto por um leque de ansiedades e não é ainda exatamente nada. E essa magreza semovente de olhar de cachorro faminto, viu-se diante de Dona Zefa, catadora, moradora de um bairro periférico da Capital da Reaçolândia.

A mulher que o acompanhava é uma militante do MST. Sou das antigas, ela disse para mim — e riu. Seguíamos juntos com um grupo de camaradas fazendo o trabalho de formiguinha, decisivo no segundo turno das eleições presidenciais de 2018. Acenamos para a senhora, que com o olhar firme veio até nós. Um cartum: a figura dos militantes de esquerda aguardando serem recebidos por uma trabalhadora. Sim, há algo de belo nesta imagem. É um papel que representamos, os militantes apreensivos numa conjuntura em que os vermelhos correm risco de vida; a vida dura diante de nós, crianças chorando, cachorros latindo, porcos roçando o esgoto, o sol quente, o cheiro forte e a senhora que caminha em nossa direção com o passo firme de quem sabe aonde está pisando.

Era Dona Zefa, que mais perto nos presenteava com um sorriso e um olhar de curiosidade. Testemunhas de jeová?, deve ter se perguntado. Enquanto tirava as luvas, deu um bom dia exitante. Era feriado, o sol estava escaldante e tinha muito o que fazer até o fim do dia.

A camarada do MST começou o repertório de sempre. A fala é o seu território, de onde, percebi, só sai – e só quer sair, às vezes a contragosto – para tarefas específicas bem marcadas pelo movimento. Quando termina, Dona Zefa começa a falar, compartilhando conosco que é trabalhadora, é mãe, é avó, é aposentada e trabalha como catadora de recicláveis para complementar a renda. Tem as mãos marcadas por anos de trabalho duro. Ela repensa e repisa os anos passados, tentando entender o que aconteceu após os últimos 13 anos, enquanto o seu olhar migra das mãos para os nossos olhos, e vice-versa.

Para ela, ainda tudo é incerto, provisório, a semana paga com algumas notas e moedas miúdas, ninguém assina nada em lugar algum – mas cada dia de graça é uma desgraça, a cozinha deixa de fornecer alimentação. Emocionada, ela lembra do postinho de saúde do seu bairro, que nem remédio para todo mundo não tem mais. Agora eles até repartem as cartelas de remédio, ela lamenta. Como vou cuidar do meu neto que acabou de nascer? Do meu velho que é hipertenso?, ela completa.

Durante o instante de uma respiração, ficamos emocionados com uma tristeza que é paralisante e profundamente dolorosa. A camarada do MST, como sempre, toma a iniciativa e abraça Dona Zefa. Queria abraça-la também, mas sentia o meu corpo relutar como uma locomotiva saindo da estação, puxando atrás de si as toneladas de vagões; não conseguia fazer nada além de pequenos movimentos hesitantes.

Lembrei da Dona Zefa quando soube que, por conta das declarações ameaçadoras do nosso novo presidente, o ignóbil Jair Bolsonaro, Cuba decidi deixar o programa “Mais Médicos”. Na campanha, Bolsonaro afirmou que expulsaria os médicos cubanos. Na última quarta (14), afirmou que a “ditadura cubana” demonstra “irresponsabilidade” e explora os seus cidadãos.

Os ataques de Bolsonaro à Cuba está, como é de se esperar de alguém sem independência política e ideológica, na mesma linha do que tem feito e dito o presidente dos EUA, Donald Trump. Bom, já que Trump e Bolsonaro defendem tanto o rompimento com a “ditadura cubana”, poderíamos romper também com ditaduras como a da Arábia Saudita, né? Ditadura que proíbe mulheres de dirigir, que apedreja adúlteras até a morte, que é rica em petróleo…

Com a saída de Cuba do programa, são aproximadamente oito mil e quatrocentos médicas e médicos que deixarão de atender nos rincões e sertões do país. Algumas estimativas apontam que 367 cidades no país podem ficar sem nenhum médico na atenção básica. Segundo a Confederação dos Municípios, a saída de Cuba dos Mais Médicos afeta 28 milhões de pessoas. 

Ou seja, Bolsonaro ainda nem subiu a rampa do planalto e já está fazendo estrago, o que evidencia que o seu governo começou logo após o resultado do segundo turno. O Brasil de Bolsonaro é um país que persegue professoras e professores e expulsa médicas e médicos. Enquanto isso, a elite aplaude o seu herói. Fico me perguntando: o que Bolsonaro está pensando? Esse play boy acha que poderá mandar e desmandar no país sem receber resistência? Engana-se! É bom que esse militar medíocre e frustado trate de colocar a cabeça no lugar, ou ela vai rolar….

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Na Capital da Reaçolândia, dos oitenta médicos que atendem na cidade, sessenta são cubanos. Quem será mais prejudicado, não seria necessária uma lupa, são pessoas como Dona Zefa, precarizadas. Bolsonaro diz que serão abertos novos editais para contratação de médicos brasileiros. Ela não pode esperar tanto. No fim das contas, a verdade é que, para o “mito”, plano de saúde de pobre é não ficar doente.

Enquanto os ricos recebem todos os holofotes, pessoas como Dona Zefa são tratadas como “desacontecimento”. Não estão nos jornais, nos telejornais, nas revistas. Não estão nos projetos messianicos daqueles que de fato mandam no país, os corruptores, o grande capital, os lobbies que, a todo momento, gestam a privatização não-oficial do Estado. As pessoas que mais sofrerão com o governo desse louco que alguns chamam de “mito”, não tem espaço no antiquário dos acontecimentos diários. Quando aparecem, são tratados como inimigos, estatísticas, desacontecimentos. Quando tratados e narrados, é sempre pela visão do letrado urbano euro-brasileiro. Quando tratados, são sempre o “outro” da sociedade brasileira. Ou, melhor, são os outros: o sertanejo, o retirante, o negro, o favelado.

Sonho com o dia em que o morro descerá e não será carnaval. Está por vir esse dia em que não haverá mais nós, sem nós. Como captou muito bem Emicida, “Favela ainda é senzala jão/Bomba relógio prestes a estourar”. As trabalhadoras e trabalhadores sabem que Bolsonaro, aplaudido pela elite, solta muitos fogos de artifício para esconder as suas garras que avançam contra a saúde pública, contra a educação pública. Dona Zefa compartilhou comigo que, quando jovem, ouviu pelo rádio do vizinho rico o golpe de 1964. E, agora, sabe que algo está acontecendo, novamente; sabe que a movimentação não será para melhorar, mas sim para piorar a vida dela e de sua família.

São pessoas como ela, com consciência de classe, que não se deixam enganar com o discurso fácil do político do patrão, que irão decompor o instituído. Essa energia destituinte se tornará revolucionária se cuidarmos para organizá-la, tirar do estado bruto e lhe dar plasticidade.

Ao contrário do que dizem, é no trabalho decisivo de organização das massas “de baixo para cima” que teremos a força motriz necessária para construir um admirável mundo novo que opere em outra lógica, mais justo, mais democrático, mais humano.

Viva Dona Zefa!

*João Elter Borges Miranda é professor de história formado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, trabalha na rede pública do Estado do Paraná e milita na Frente Povo Sem Medo, Frente Ampla Antifascista e Intersindical. Email: [email protected]

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