Mulheres denunciam ginecologista por abuso sexual, mas o que viria a acontecer é um retrato do Brasil real. Acusado usou de sua influência para escapar impune e inquérito foi arquivado em tempo recorde
Nayara Felizardo, The Intercept
Vanessa* paralisou na consulta. Ela estava sendo atendida pelo ginecologista Felizardo Batista, um médico conhecido de Teresina, no Piauí, quando ele teria apertado seus seios, coxas e nádegas. Ao final, ela conta que Batista perguntou: “quem foi o sortudo que tirou sua virgindade?”.
Quando tudo acabou, Vanessa* entrou no carro e chorou. Só conseguiu reagir no dia seguinte, 17 de janeiro de 2017, quando registrou boletim de ocorrência na Delegacia da Mulher e denunciou o médico ao Conselho Regional de Medicina do Piauí, o CRM. No depoimento à polícia, ela diz que Batista teria lhe apalpado com “expressão de tarado” e que teria ficado “gelada, em choque, queria gritar e não conseguia”.
Felizardo Batista nega o abuso.
O caso repercutiu na imprensa local, depois que Vanessa denunciou o abuso na Delegacia da Mulher. Estela* e Sílvia* leram a notícia. Sem nunca terem se conhecido, mas motivadas pela coragem de Vanessa, as duas mulheres decidiram contar para a polícia casos semelhantes contra Batista.
Desde então, a Polícia Civil do Piauí recebeu 10 acusações contra o ginecologista – que também atua como mastologista e obstetra – em dois inquéritos diferentes. O primeiro, que tem nove denúncias (incluindo as de Estela, Sílvia e Vanessa), foi arquivado em tempo recorde pelo promotor Francisco Raulino Neto, do Ministério Público Estadual do Piauí. Raulino alegou que não havia provas suficientes dos abusos.
O promotor e Batista são amigos, segundo a denúncia feita pelo delegado-geral de Polícia Civil do Piauí, Riedel Batista, à Corregedoria do MP do Piauí. Por causa da agilidade incomum no arquivamento do caso, o promotor Raulino Neto está sendo investigado pelo Conselho Nacional do Ministério Público.
Enquanto o médico era inocentado, mais uma possível vítima de Felizardo quebrou o silêncio e foi à polícia. O caso, denunciado em outubro, está sendo investigado pela delegada Adriana Xavier.
Exame para ‘verificar a lubrificação’
No primeiro inquérito, nove mulheres narraram cenas quase idênticas durante os exames no consultório do médico. Batista, de acordo com os relatos da investigação, teria acariciado a virilha e depois tocado no clitóris das pacientes. Ele introduzia os dedos na vagina com força, o que machucaria as mulheres. Ele também teria apertado nos seios delas e passado a palma da mão nos mamilos.
A delegada responsável pelo caso, Carla Brizzi, também obteve laudos psicológicos que constataram estresse pós-traumático em duas mulheres e mensagens de áudio de uma vítima contando o abuso para uma amiga, no momento em que saiu da clínica chorando.
Os relatos de Sílvia, Estela e Vanessa no inquérito são semelhantes aos das outras vítimas.
O caso de Sílvia ocorreu em 26 de janeiro de 2016. Ela relatou, no boletim de ocorrência e no inquérito policial, que estava na posição para o exame ginecológico quando Batista teria pedido que a auxiliar saísse da sala e disse à paciente que “iria fazer um procedimento para verificar a sua lubrificação”. Sílvia relatou para a polícia que o médico passou a acariciar sua coxa esquerda, introduziu os dedos em sua vagina e tocou o seu clitóris fazendo movimentos circulares. Sílvia diz que se afastou e protegeu a genitália com a mão, o que levou o médico a encerrar o “exame”. Depois disso, ela contou que ele prescreveu alguns medicamentos e pediu que voltasse quando acabassem os remédios. Ela nunca retornou.
O que aconteceu a Estela foi parecido e se repetiu por várias consultas entre dezembro de 2014 e março de 2015, de acordo com o depoimento que está no inquérito policial. Ela estranhava a forma como Batista lhe tocava, mas ia a cada 15 dias no consultório dele porque precisava tratar o colo do útero dilatado.
Ela concluiu que estava sendo assediada quando o médico, de acordo com o relato de Estela à polícia, a convidou para tomar uma cerveja fora do consultório e anotou o número do celular que constava na ficha médica. Ele ainda mandou mensagem pedindo que Estela voltasse ao consultório para pegar um creme vaginal. Ela não respondeu e bloqueou Batista no WhatsApp.
Estela e Vanessa afirmaram ter ficado traumatizadas com o que aconteceu e precisaram de tratamento psicológico. Os laudos foram incluídos no inquérito contra o médico. Segundo o documento, Estela “apresentou sintomas de psicossomatização”. Já Vanessa, que começou o tratamento psicológico em fevereiro de 2017, sentia medo constante de encontrar Felizardo Batista na rua. Também tinha insônia, falta de apetite, delírios, taquicardia, pesadelos envolvendo o abuso ou o médico e “crises de ansiedade que caracterizavam um possível transtorno de estresse pós-traumático, mas poderia evoluir para uma depressão ou síndrome do pânico”, de acordo com o laudo. A psicóloga que assinou o documento concluiu que a situação sofrida por Vanessa “foi considerável e pode ser prejudicial para o seu desenvolvimento biopsicossocial”.
Com base nessas evidências, Brizzi indiciou o médico e a assistente dele, Rosa Moraes de Lima, pelo crime de violação sexual mediante fraude. Segundo as vítimas, a assistente era conivente, pois presenciava os abusos e virava as costas.
Os defensores do médico
As mulheres que se calaram durante muitos anos disseram à polícia que tinham medo do julgamento das pessoas, inclusive dos maridos e das outras mulheres da família que eram atendidas por Felizardo Batista. Elas achavam que as pessoas não iriam acreditar e nem iriam apoiá-las.
De certa forma, isso aconteceu. Quando os casos começaram a ser divulgados pela imprensa, muitas pessoas saíram em defesa do médico. Mulheres atendidas por ele alegavam que nunca tinha acontecido nada a elas e homens garantiam que suas esposas, mães ou filhas sempre foram respeitadas. Os médicos e os membros do CRM também se mobilizaram para proteger o colega.
Uma das defesas mais enfáticas veio do promotor Raulino Neto, que recebeu o inquérito no dia 30 de maio de 2017. Ele precisou de apenas 24 horas para escrever um parecer de 37 páginas e arquivar o caso. Duzentos e sessenta e quatro casos mais antigos estavam na mesa de Raulino.
Parecer do promotor Raulino Neto
“Houve excessiva pressa em indiciar um médico renomado e uma de suas assistentes”, disse o promotor em seu parecer, após receber o inquérito. Para ele, a investigação não colheu provas suficientes. Ele considerou que havia encerrado o prazo para que a maioria das vítimas tivesse denunciado o abuso sexual. Os casos mais recentes, como o de Estela, foram questionados. “Foi relatado que ele é o médico de mulheres da família dela. Por que somente a ela teria agredido? Por que a mãe sabendo do ‘assanhamento’ do médico não se propôs a conversar com ele?”. O promotor ainda sugeriu uma acareação, ou seja, uma audiência que reunisse as vítimas, as testemunhas e o acusado (que nunca ocorreu).
Ele também questionou o motivo pelo qual as mulheres não procuraram a direção das clínicas para denunciar o abusador, desconsiderando o fato de que o médico é sócio de uma delas. Para o promotor, é injustificável que as vítimas tenham dado declarações à imprensa ou postado denúncias nas redes sociais antes de procurar a polícia.
Raulino Neto também sugere que as denúncias contra o médico foram “orquestradas” por mim, que fui uma das primeiras jornalistas a relatar o caso na imprensa local, e pela advogada de uma das vítimas. O meu nome surgiu no inquérito porque fui chamada pela delegada Carla Brizzi pra dar depoimento sobre os casos que acompanhei.
O juiz Luiz de Moura acatou o pedido de arquivamento da denúncia em junho de 2017, e Felizardo Batista se livrou de responder pelas acusações.
O arquivamento expresso do promotor foi divulgado pela imprensa do Piauí. Alguns meses após o inquérito ser encerrado, Raulino Neto processou a delegada Carla Brizzi e mais três jornalistas, incluindo eu. Ele se incomodou com críticas da delegada ao arquivamento e com uma reportagem que fizemos sobre o seu parecer. Raulino perdeu todas as ações.
Amizade
A decisão de Raulino sobre o arquivamento chamou a atenção do delegado geral da Polícia Civil do Piauí, Riedel Batista, que denunciou o promotor à Corregedoria do Ministério Público do Piauí. De lá, o caso foi para a Corregedoria Nacional do MP. Riedel alegou que Raulino não poderia ter analisado o inquérito porque era amigo do médico. Os indícios estavam nas redes sociais: Felizardo Batista e mais quatro pessoas da família dele eram os amigos do promotor no Facebook. Além disso, uma investigação mais detalhada, feita pela Corregedoria do MP do Piauí, descobriu outras informações relevantes.
De acordo com Erick Venâncio, relator do processo que investiga o promotor, houve “certa incoerência na manifestação de arquivamento, especialmente em se tratando de questão de elevada gravidade”, disse em seu relatório. Venâncio avalia, por exemplo, que Raulino Neto foi estranhamente ágil na análise do processo contra o médico.
Causou suspeita também a informação de um dos servidores do MP do Piauí, em depoimento à corregedoria local. Ele disse que Raulino Neto foi até a Central de Inquéritos, perguntou sobre o processo do médico e afirmou que “este rapaz está sendo injustiçado”. Para o relator, é “incomum o fato de um membro buscar informações acerca de processo específico que ainda não havia sequer chegado à promotoria”.
Em sessão em novembro, no Conselho Nacional do Ministério Público, a maioria dos conselheiros seguiu o voto do relator e confirmou a necessidade da investigação contra Raulino, que tem prazo para encerrar até 16 de janeiro e pode ter como desfecho a suspensão do promotor por 90 dias.
Tentei contato com Raulino Neto através da assessoria de imprensa do Ministério Público do Piauí, mas o assessor disse que ele não atendeu às ligações. Enviei algumas perguntas para o e-mail institucional do promotor e ele não respondeu. Também mandei mensagem pelo WhatsApp. Ele disse apenas que não iria se pronunciar a respeito disso e nem sobre o processo que está respondendo.
Em seu depoimento, que consta no relatório do conselheiro Erick Venâncio, o promotor nega todas as acusações. Ele disse que não conhece Felizardo Batista e reafirmou que o inquérito não tinha provas que sustentassem a denúncia. Sobre o acúmulo de processos, ele disse que houve um erro no sistema do MP e, por isso, recebeu mais demanda do que o normal.
Consultas de R$ 350
Felizardo Batista exerce a medicina há mais de 30 anos e é um dos poucos médicos do Piauí que realiza procedimentos cirúrgicos e exames delicados para detectar doenças no colo do útero. Por causa das suas especialidades, muitos médicos encaminham as pacientes para fazerem tratamento com o especialista.
Batista é também um dos sócios da Clínica Santa Fé, que até pouco tempo atrás era a única maternidade particular de Teresina. Lá, o médico atende mulheres com maior poder aquisitivo e cobra R$ 350 pela consulta. Ele também atende na Clínica Batista por um valor mais acessível. As mulheres que o denunciaram relatam abusos ocorridos nos dois consultórios.
À polícia, Batista se defendeu alegando que os procedimentos realizados fazem parte da consulta e que, diferente da declaração de todas as vítimas, as suas atendentes sempre ficam na sala e o auxiliam durante o exame.
Ele admite que tocou na parte interna da coxa de Vanessa e que pegou nas nádegas dela, mas diz que o fez porque a paciente havia se retraído e impossibilitado o procedimento. Sobre o toque excessivo no seio, Batista disse que “eventualmente pode ocorrer de a palma da mão encostar na mama, mas isso não é proposital e pode acontecer em razão do tamanho do seio ou da posição”. Ele negou qualquer toque no clitóris das vítimas. Todas essas declarações do médico constam no inquérito policial.
Conversei com o ginecologista e obstetra Juvenal Barreto, diretor de defesa profissional da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, para entender qual é o procedimento adequado em uma consulta.
Barreto, que tem 40 anos de profissão, disse que a boa prática do exame ginecológico não inclui toque na parte interna da coxa, no clitóris e nem qualquer movimento que sugira algum tipo de estímulo. A apalpação das mamas é feita com a ponta dos dedos e não com a palma da mão. A presença de uma assistente, acrescenta, também é uma recomendação importante.
*Os nomes das vítimas foram modificados para preservar suas identidades.
Acompanhe Pragmatismo Político no Twitter e no Facebook