Indígenas mandam recado a Jair Bolsonaro após declarações polêmicas do presidente eleito: “Não admitimos ser tratados como seres inferiores. Somos apenas diferentes”
Brasil de Fato
Na última quarta-feira (5), o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) fez uma declaração generalista e descuidada sobre os povos indígenas, desrespeitando as convenções, diversidades e pluralidades desses povos e indivíduos. Frases semelhantes foram ditas também durante a campanha, provocando preocupação e indignação em indígenas em todo o país.
“O índio quer se integrar à sociedade. Alguns setores da imprensa fizeram uma maldade comigo. Eu vou repetir aqui. O índio quer energia elétrica, quer médico, quer dentista, quer internet, quer jogar futebol. Ele quer aquilo que nós queremos. (…) Aqui no Brasil, alguns querem que o índio continue dentro de uma reserva como se fosse um animal em zoológico. Eu não quero isso. Eu quero tratar o índio como um ser humano, como um cidadão“, disse Bolsonaro.
A declaração motivou a mobilização de organizações da área, como a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), que soltou uma carta abrangente com demandas e exigências ao político de extrema direita.
“Não admitimos ser tratados como seres inferiores, como tem ressoado em declarações de Vossa Excelência. Somos apenas diferentes, sendo obrigação do governo federal segundo a Constituição, respeitar nossa “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” (artigo 231 da Constituição). Repudiamos, portanto, o seu pejorativo e reduzido entendimento de nos considerar animais em zoológicos”, protesta a APIB.
O documento foi entregue na quinta-feira (6) na sede do governo de transição, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Brasília (DF). Ao estabelecer 11 prioridades para o novo governo, a associação pede o respeito aos direitos fundamentais e continuidade das políticas públicas.
Leia a carta da APIB sobre declaração de Bolsonaro ou veja a íntegra abaixo:
“CARTA DA APIB AO PRESIDENTE ELEITO DO BRASIL, SENHOR JAIR BOLSONARO
PELA GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS NOSSOS POVOS E COMUNIDADES
Brasília – DF, 06 de dezembro de 2018.
Ao Senhor Jair Bolsonaro
Presidente eleito do Brasil
Senhor Presidente,
Nos últimos dias, órgãos da imprensa tem veiculado uma série de declarações de Vossa Excelência a respeito da questão indígena, com afirmações que maculam a imagem e dignidade dos nossos povos e comunidades e que preocupam por demonstrarem, por um lado, a falta de conhecimento sobre nossos direitos constitucionais, e por outro, uma visão de indigenismo assimilacionista, retrógrado, autoritário, preconceituoso, discriminador, racista e integracionista, afastado de nosso país há mais de 30 anos pela Constituição Cidadã de 1988.
Respaldados pelo direito de expressão assegurado pela Constituição Federal, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) – instância de aglutinação e referência nacional do movimento indígena brasileiro –, vem por meio desta manifestar a sua indignação e repúdio às suas manifestações e às suas intenções de impossibilitar a promoção dos direitos dos nossos povos, com ameaças de acabar com a demarcação das terras indígenas – direitos fundamentais dos povos indígenas e deveres constitucionais de responsabilidade da União –, de transferir a Funai para estruturas governamentais inadequadas, colocando-a em risco de inanição, e de abrir nossos territórios tradicionais aos interesses do agronegócio, da mineração, da construção civil e de outros grandes empreendimentos de impacto socioambiental, enfim, de pretender impor, autoritariamente e sem ouvir nossa voz, outro modelo de vida aos povos indígenas, destinado a suprimir nosso direito fundamental a uma identidade étnica e cultural diferenciada.
A Constituição Brasileira de 1988, Excelentíssimo Senhor Presidente, no Artigo 231, é taxativa: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Veja que além de reconhecer a diversidade étnica e cultural do país, do qual os povos indígenas são parte, a Constituição não concede, mas reconhece o direito originário dos nossos povos, colocando fim a séculos de gravíssimas violações de direitos, incluindo mortes em massa e remoções territoriais forçadas, inclusive durante o regime militar de 1964 a 1985. Por sinal, esse direito territorial é reconhecido oficialmente desde o Alvará Régio de 1º de abril de 1680, ainda durante o Período Imperial, e reiterado em todas as Constituições brasileiras, desde 1934.
Observe-se que o reconhecimento do direito fundamental e originário dos povos indígenas às suas terras tradicionais se deu, segundo a própria Assembleia Nacional Constituinte, porque, “quanto à terra, reconhecendo-se que para os índios ela significa a própria vida, estipulou-se que eles têm o direito à sua posse permanente, e procurou-se garantir a sua demarcação definitiva.”[1] Afinal, como sempre pontuou o Supremo Tribunal Federal: “Não há índio sem terra. A relação com o solo é marca característica da essência indígena, pois tudo o que ele é, é na terra e com a terra. Daí a importância do solo para a garantia dos seus direitos, todos ligados de uma maneira ou de outra à terra. É o que se extrai do corpo do art. 231 da Constituição. (…) Por isso, de nada adianta reconhecer-lhes os direitos sem assegurar-lhes as terras, identificando-as e demarcando-as.”[2] Aliás, essa é a razão pela qual a Constituição afirma, no § 4.º do artigo 231, que “as terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”.
A afirmação de que os nossos povos podem constituir “novos países no futuro”, demonstra franco desconhecimento da legislação correlata, uma vez que a própria Constituição estabelece no Artigo 20 que as terras indígenas são Terra da União. Ademais, para a sua informação, em país nenhum da América Latina, mesmo onde a população indígena é maioria, há qualquer povo que cogite constituir um outro país. A prova é a maturidade com que lideranças indígenas do mundo inteiro acordaram com os Estados que integram a ONU, incluindo o Brasil, os artigos da Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, inclusive seu artigo 46, que afirma: “Nada do disposto na presente Declaração será interpretado no sentido de conferir a um Estado, povo, grupo ou pessoa de qualquer direito de participar de uma atividade ou de realizar um ato contrário à Carta das Nações Unidas ou será entendido no sentido de autorizar ou de fomentar qualquer ação direcionada a desmembrar ou a reduzir, total ou parcialmente, a integridade territorial ou a unidade política dos Estados.”
Por se tratar de direito fundamental previsto pela Constituição Federal e sendo as terras indígenas bens da União, dar cumprimento à sua demarcação e proteção jamais poderia ser considerado nocivo ou ameaçador ao Brasil. Pelo contrário, o que atenta contra a soberania nacional, a democracia e os interesses do povo brasileiro é justamente descumprir direitos e deveres fundamentais explícitos na Carta da República e impor um modelo de desenvolvimento de impactos irreversíveis sobre os nossos povos e territórios tradicionais, os mais preservados ambientalmente do País.
O Brasil é país mais rico do mundo em florestas tropicais, recursos hídricos, biodiversidade, solos férteis e outros bens. A preservação do meio ambiente proporcionada pelos povos indígenas consiste em direito fundamental de toda a sociedade brasileira (artigo 225 da Constituição), o que só é possível graças à relação harmônica que os nossos povos mantém milenarmente com a Mãe Natureza. É justamente essa preservação que permite a garantia da sadia qualidade de vida da população brasileira e o próprio desenvolvimento do Brasil, uma vez que todas as atividades econômicas dependem da manutenção dos serviços ambientais prestados gratuitamente pelas florestas, incluindo a manutenção de nosso regime hídrico. Como tem alertado a comunidade científica brasileira e internacional, “a remoção das florestas, ameaçando as chuvas e o clima, não derrotaria somente a competitiva agricultura; falta (ou excesso) de água afeta a produção de energia, as indústrias, o abastecimento das populações e a vida nas cidades.”[3]
Por isso é que não admitimos ser tratados como seres inferiores, como tem ressoado em declarações de Vossa Excelência. Somos apenas diferentes, sendo obrigação do governo federal segundo a Constituição, respeitar nossa “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” (artigo 231 da Constituição). Repudiamos, portanto, o seu pejorativo e reduzido entendimento de nos considerar animais em zoológicos. O modelo de desenvolvimento que defendemos e implementamos em nossas terras também é diferente do que Vossa Excelência apregoa, pois buscamos fortalecer a sustentabilidade e a gestão ambiental de nossos territórios. Rechaçamos qualquer tipo de exploração predatória dos bens naturais e reivindicamos que nossos saberes e conceitos de bem viver fossem respeitados.
Ao invés de agredir e difamar os nossos povos, Vossa Excelência tem a obrigação, por imposição constitucional, de executar políticas públicas que façam jus ao patamar de democracia alcançado pelo Brasil, assegurando o cumprimento integral e irrestrito da Constituição Federal e dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Para isso, na linha dos mandamentos constitucionais e legais aplicáveis ao governo federal, pugnamos pelo atendimento das seguintes propostas e reivindicações dos nossos povos:
Manter a Funai vinculada ao Ministério da Justiça, e fortalecida, isto é, com a dotação orçamentária necessária para o cumprimento de sua missão institucional de promover os direitos dos nossos povos, principalmente no relacionado à demarcação e proteção das terras indígenas.
Revogação do Parecer 001/2017 da Advocacia Geral da União (AGU).
Realização urgente de operações para a retirada de invasores de terras indígenas já demarcadas e a efetiva proteção das mesmas;
Demarcação e proteção de todas as terras indígenas, com especial atenção às terras dos povos isolados e de recente contato;
Dotação orçamentária, com recursos públicos, para a implementação da PNGATI e outros programas sociais voltados a garantir a soberania alimentar, a sustentabilidade econômica e o bem viver dos nossos povos e comunidades;
Garantia da continuidade do atendimento básico à saúde dos nossos povos por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), considerando o controle social efetivo e autônomo por parte dos nossos povos;
Efetivação da política de educação escolar indígena diferenciada e com qualidade, assegurando a implementação das 25 propostas da segunda conferência nacional e dos territórios etnoeducacionais;
Incidir junto aos poderes judiciário e legislativo na manutenção dos nossos direitos assegurados pela Constituição Federal;
Fim da violência, da criminalização e discriminação contra os nossos povos e lideranças, assegurando a punição dos responsáveis por essas práticas, a reparação dos danos causados inclusive por agentes do Estado e comprometimento das instancias de governo (Ministério de Direitos Humanos, Ministério da Justiça, Defensoria Pública) na proteção das nossas vidas;
Aplicabilidade dos tratados internacionais assinados pelo Brasil, de modo especial a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) incorporada ao arcabouço jurídico do país e que estabelece o direito dos povos indígenas à consulta livre, prévia e informada sobre quaisquer medidas administrativas ou legislativas que os afetem.
Cumprimento das recomendações da Relatoria Especial da ONU para os povos Indígenas e das recomendações da ONU enviadas ao Brasil por ocasião da Revisão Periódica Universal (RPU), todas voltadas a evitar retrocessos e a garantir a defesa e promoção dos direitos dos povos indígenas do Brasil.
Sendo o que tínhamos a comunicar, aguardamos resposta.
Atenciosamente
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB”
[1] Relatório da Assembleia Nacional Constituinte VII – Comissão da Ordem Social – VII Subcomissão de negros, populações indígenas, pessoas deficientes e minorias – Relatório – volume 196. (destacamos)
[2] Supremo Tribunal Federal. Pleno. Petição n.º 3.388/ED/RR. Voto-Vista proferido pelo Ministro Menezes Direito. DJ 25.09.2009.
[3] NOBRE, Antônio Donato. “O Futuro Climático da Amazônia.” Ob. cit., p. 31.
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