As origens históricas do antipetismo
A neurose obsessiva do discurso antipetista tem origens em um longo processo histórico, que combina fatores de longa, média e curta duração
Na cerimônia de posse, a esquerda novamente foi protagonista no discurso de Bolsonaro, evidenciando que a dinâmica de embate se perpetuará. Além disso, ele deixou claro quão longe está disposto a ir em seu desgoverno no uso explícito da força para caçar a oposição; deixou claro que a “caça às bruxas” começou. Faz isso porque é, claro, ideologicamente contra a esquerda, mas também porque é um oportunista, pois sabe que o antipetismo é o que lhe dá poder.
É fundamental para o debate refletirmos, ainda que seja de forma breve, sobre as razões para que haja tamanha força popular mobilizada contra a esquerda. Para iniciarmos o processo de entendimento desse fenômeno, penso que é interessante analisarmos as razões de âmbito de longa, média e curta duração. Tais fatores estão imbricados e podem nos ajudar a entender como chegamos até aqui.
No que tange às razões de média duração, vale observar que, ao longo da segunda metade do século 19 e, principalmente, durante boa parte do século 20, permeou pelo planeta o medo do comunismo. Com mais intensidade no Ocidente, ao longo de décadas o conjunto de ideias, correntes e tendências que identificam os comunistas como a encarnação do mal condicionou a opinião pública a crer que é preciso combatê-los. O anticomunismo chega ao seu ápice na chamada Guerra Fria, período de disputas estratégicas e conflitos indiretos entre os Estados Unidos e a União Soviética.
Nos Estados Unidos, o anticomunismo intensifica-se a partir de 1945, quando morre o então presidente Franklin Delano Roosevelt e assume o seu vice, Harry Truman. Seu governo foi permeado por intensas manifestações anticomunistas e, assim, ele difundiu no país e fora dele uma “caça às bruxas”, como ficou conhecido o movimento de perseguição aos comunistas, tendo à frente o senador Joseph McCarthy.
No Brasil não foi diferente, evidentemente. Orquestradas por grupos conservadores e em certos momentos até por alas progressistas, a negação radical dos princípios e ideais comunistas e a oposição ferrenha a todo governo ou organização que desse suporte prático ou teórico a essa ideologia marcou a nossa história. Em nosso país, o medo do comunismo frequentemente foi usado pelo Estado como justificativa para ações ostensivas contra grupos e organizações progressistas. É, sem dúvida, um dos fenômenos políticos mais relevantes nas três fases de colapso institucional da democracia no Brasil: a ascensão do Estado Novo, em 1937; o golpe empresarial-militar de 1964; e o golpe civil-parlamentar de 2016.
O antipetismo é também gestado por razões históricas de curta duração. Refiro-me aos governos petistas. Durante o período em que estiveram no poder, promoveram uma série de ações que beneficiaram intensamente o grande capital. Ampliaram a parcela de consumidores, em vez de formar cidadãos. Os benefícios sociais não foram acompanhados, por conseguinte, da elevação da consciência de classe. Os governos petistas, para piorar, criaram milhares de empregos precarizados; nos últimos anos, levaram a economia do país à bancarrota, principalmente a partir de 2015, quando a então presidente Dilma Rousseff realiza um “cavalo de pau”, adotando o programa político-econômico do PSDB, da oposição, programa que afundou o país em uma das maiores crises já vista na Nova República.
Os governos petistas também promoveram uma série de medidas que beneficiaram a população, como as cotas nas universidades e a distribuição de renda. Contudo, o padrão de intervenção estatal visto nesse período não está aquém do programa neoliberal. Mais do que isso, conferiu ao neoliberalismo uma estabilidade política tão sólida que possibilitou que esse projeto atingisse a completa hegemonia de qualidade superior, por meio da combinação de políticas que beneficiam o grande capital com políticas sociais.
Todas essas medidas implementadas pelos governos petistas não se deram, evidentemente, porque o Partido dos Trabalhadores é a “encarnação do mal”, mas sim porque foram governos que não deixaram de acompanhar o processo de avanço do sistema capitalista. Nesse sentido, a atuação dos governos petistas pode ser identificada como um elemento de curta duração imbricado aos de média e longa duração.
No que tange ao processo de longa duração, é interessante observar as transformações ocorridas no sistema capitalista. O capitalismo transforma-se e desagrega-se frequentemente num processo socio-histórico longo, complexo e denso de contradições, por meio do qual ocorre a progressiva reificação das categorias econômicas, num processo dialético de transformação sociometabólica.
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A partir dos anos 1970, o capital especulativo parasitário não só se sobrepôs ao capital produtivo e industrial, como este, ao longo dos anos, passa a ser subordinado, dominado e atua segundo a lógica especulativa. Essa mudança no sistema em que progressivamente o capital produtivo contamina-se com a especulação define a nova etapa do capitalismo.
Esse processo resultou, na atualidade, num modo específico de funcionamento e de dominação política e social, em que a financeirização ou, melhor dizendo, a generalização do movimento especulativo do capital está no centro do capitalismo contemporâneo mundializado. Assim, hoje não é mais gente como Henry Ford ou Carnegie quem personifica o novo capitalismo de fins do século 20 e início do 21, e sim o administrador anônimo (e que faz questão de permanecer anônimo) de um fundo com ativos financeiros multibilionários.
Essas transformações são acompanhadas pela mudança no espectro de políticas e reformas econômicas, advogando em favor de políticas de liberalização econômica extensas, como as privatizações, austeridade fiscal, desregulamentação, livre comércio e corte de despesas governamentais, a fim de reforçar o papel do setor privado. Fica conhecido como “neoliberalismo” esse arcabouço programático e teórico político-econômico que se formou a partir do ressurgimento e ressignificação das ideias derivadas do capitalismo laissez-faire, expressão símbolo do liberalismo, segundo o qual o mercado deve funcionar livremente sob a égide da “mão invisível”.
No fim dos anos 80, considerada a “década perdida” para o desenvolvimento, a situação dos países latino-americanos afigurava-se como muito difícil e sombria. Como parte da renegociação da dívida externa desses países, eles foram orientados a implementar uma série de políticas e reformas neoliberais – receituário que ficou conhecido como “Consenso de Washington” –, que promoveu a abertura, desregulação e privatização de suas economias nacionais, o que ampliou o decréscimo dos resultados sociais e econômicos e apresentou-se no fim dos anos 90 como incapaz de superar os problemas estruturais desses países, apesar de em alguns deles o processo inflacionário ter sido controlado.
Diante disso, a partir dos anos 2000 o neoliberalismo é transformado de modo a adquirir um caráter moderado. A partir disso, constitui-se em muitos países latino-americanos, como o Brasil, uma série de “Estados sociais”. A adoção do recurso “social” atrelado ao Estado não representa e não significa uma característica “anticapitalista”, mas sim o entendimento de que o Estado passa a ter, na égide do neoliberalismo moderado, a implementação de políticas sociais como uma determinação central de suas funções de regulação econômica e social no capitalismo contemporâneo.
Foi nesse contexto que lideranças do Partido dos Trabalhadores alçaram o poder no país. Adotaram, assim, um programa que combina garantias de desenvolvimento do grande capital com políticas sociais. Neste sentido, são errôneas as análises que entendem esse processo como um primeiro passo para o socialismo. Não passaram de governos de caráter neoliberal moderado. Não se trata, também, de um reformismo fraco de centro-esquerda, como o intelectual André Singer procura apontar.
No ápice da crise estrutural do capital, em 2008, deixa de haver espaço para o neoliberalismo moderado. A contingência apresentava a necessidade de reordenação, de modo a abrir espaço para a radicalização da variante do processo de revolução passiva, intensificando as relações de exploração nas relações sociais capitalistas. Tal via exige a mudança da hegemonia burguesa por meio de novos termos. Assim, por intermédio de uma série de iniciativas “moleculares”, foi gestada no Brasil uma intensa campanha de fundamentação e insuflação do antipetismo.
Os protagonistas desse processo foram os grandes meios de comunicação locais e internacionais, os partidos de oposição ao governo, as agências internacionais de risco, o FMI, o Banco Mundial, os bancos estrangeiros, as grandes corporações multinacionais e vários outros representantes do capital, parcelas do sistema judiciário, com o apoio da alta classe média. Têm um papel importante nesse processo os chamados “aparelhos privados de hegemonia”, ou, noutras palavras, movimentos com ligação orgânica com a burguesia que defendem há anos os preceitos ultraliberais. Exemplo disso é a atuação do intelectual de extrema-direita Olavo de Carvalho. Todos esses atores e autores diziam em todos os espaços que, para reordenar o Brasil, o governo deveria deixar o mercado funcionar sozinho – e que precisava urgentemente cortar os gastos ineficientes e “descontrolados”; acima de tudo, afirmavam que para colocar o país novamente nos trilhos era fundamental tirar a esquerda (leia-se o PT) do poder.
É interessante observar que, em grande medida, a atuação da alta classe média brasileira no país, nesse processo de inflexão da nossa história, é também efeito das políticas que possibilitaram a ascensão social e intelectual das classes mais desfavorecidas. Todas as medidas de investimento nas camadas mais populares – como as cotas raciais e sociais nas universidades e no serviço público, os programas de transferência de renda, a extensão dos direitos trabalhistas as trabalhadoras domésticas, a elevação constante do salário mínimo – são vistas pela alta classe média como uma conta com a qual ela deverá arcar por meio do aumento de impostos. Incomoda também porque fere os seus valores da ideologia meritocrática, além de pôr em risco a reserva de mercado que os seus filhos têm nas universidades e no setor público.
Diante disso, a alta classe média se mobilizou, inflada com as manchetes da grande mídia. Saiu às ruas em massa, principalmente em 2015, para se manifestar contra o “erro” das urnas de 2014. Os protestos massivos e os “panelaços”, paulatinamente, convergiram para a demanda de impeachment da presidente Dilma e explicitavam o ranço antipetista e antigovernista que permeia essa classe repleta de pequenos burgueses.
Em meio a tudo isso, temos um sistema político-institucional em crise, gestando de alto a baixo na sociedade brasileira uma profunda insatisfação com o sistema político-institucional. O legítimo desejo de reconfiguração da política e de repúdio ao que é entendido genericamente como a “velha política”, ou realpolitik, não se manifesta somente no Brasil; é algo que se vê no mundo todo. Desde a crise de 2008 vemos pessoas com políticas opostas e irreconciliáveis irem juntas para as ruas, pois permeia todos eles um mal-estar: a revolta contra a maneira de funcionamento do sistema político institucional.
O povo tem colocado em ação direta contra os governos a potência da revolta social, anticapitalista em instinto, embora não ainda em consciência. Basta lembrar das inúmeras manifestações ocorridas na última década no Brasil e no mundo. Para a nossa infelicidade, tamanha insatisfação está sendo aparelhada por movimentos de extrema-direita, insuflando pessoas como Donald Trump nos Estados Unidos, Marine Le Pen na França e Bolsonaro no Brasil, dentre outros.
Como já foi dito, isso acontece porque, diante da crise do sistema capitalista, que leva à intensificação das relações de exploração de mais-valia – o que, por sua vez, gesta uma crescente mobilização da população –, ocorre uma reorientação na variante capitalista. Essa reorientação tem como objetivo principal, além de implementar a série de contrarreformas que retiram direitos, rifar os avanços históricos arduamente conquistados pela classe trabalhadora e quebrar, completamente, a organização dessa mesma classe.
Esse é o ambiente perfeito para que seja chocado o ovo da serpente. Em muitos momentos de crise econômica do sistema capitalista, como a intensa e profunda crise que vivemos na atualidade, o fascismo se apresenta (não raro pela ruptura institucional) como o capital na sua forma mais selvagem, para não deixar que nada nem ninguém atrapalhe ou interrompa o processo de implementação do programa ultraliberal. O Brasil, país que se insere na lógica capitalista na condição de capitalismo dependente, não foge disso, evidentemente.
É importante observar, neste sentido, que o grosso dos apoiadores do governo Bolsonaro está longe de ser fascista; é gente trabalhadora que encontrou na figura desse personagem um caminho para escapar das contradições do sistema representativo; estão revoltados com a captura da pólis promovida pelo capital e querem uma saída rápida. É gente que tem todas as razões para ter pressa, vale apontar. Afinal, hoje as pessoas morrem mais do que antes, perdem seus direitos mais do que antes. Nas periferias urbanas e rurais, aqueles que matam estão matando mais; a escalada da violência é gigantesca. Diante dessa progressiva deterioração da vida, desejam que uma mudança profunda no sistema político-institucional ocorra.
Não é por acaso que tenha caído como uma luva nos anseios da população o discurso de que a espoliação e a violência presentes na vida cotidiana em nosso país serão resolvidas com a força individual. Bolsonaro e companhia querem, dessa forma, terceirizar o papel do Estado de oferecer segurança para a própria população, que, fortemente armada, segundo ele, poderá individualmente se defender com o direito de atirar, com o direito de falar sem ser julgado pela chamada “ditadura do politicamente incorreto”. Não é por acaso que esse projeto de beneficiamento da indústria bélica tem como principal símbolo o sinal da arma feito com as mãos. A liberdade, assim, é transfigurada na liberação da violência por aqueles que não aguentam mais ser cotidianamente violentados. Com isso, sentem-se no direito de expressar a sua violência mais baixa como expressão de uma liberdade conquistada.
Obviamente, há parcelas de apoiadores do governo Bolsonaro que são o seu “núcleo duro”. Não é a maior parte, mas é uma parcela barulhenta, profundamente ideologizada, de extrema-direita, guiada pela “defesa da ordem” baseada na tradição, família, prosperidade. e profundamente contra as conquistas das mulheres e de minorias como os LGBT.
Com pose de outsiders, os líderes fascistas se apresentam como salvadores da pátria, apesar de serem, na realidade, defensores caninos do grande capital. Bolsonaro aparece como salvador da pátria, um paladino caído do céu que resolverá, sozinho, todos os problemas do país e lutará, bravamente, contra o “fantasma interno”: a esquerda. O nosso atual presidente é, consequentemente, um subversivo sem subversão, um antissistema conservador.
Portanto, crise do sistema capitalista e crise de hegemonia do sistema-político institucional são faces diferente da mesma moeda de um processo de longa duração do qual somos vítimas – e que se apresenta, em nosso país, na figura do antipetismo. Antipetismo esse do qual Bolsonaro sabe se aproveitar muito bem. Ele ganhou a eleição por causa disso, em grande medida. “Vou mudar tudo isso aí” é a sua frase emblemática que nada na correnteza desse ódio da população canalizado contra a esquerda, principalmente contra os petistas.
O fascismo, dessa maneira, transforma a revolta contra o sistema num clamor popular em defesa da mão forte de uma liderança que, por estar acima da lei, supostamente terá as condições necessárias para botar, via força bruta, “ordem na casa”. Esse discurso é tão violento, é tão bélico, que o seu defensor, para conquistar o clamor das massas, precisa adotar características cômicas de modo que, como um palhaço, ele possa esconder com piadas o seu lado mais terrível. Consequentemente, nunca se sabe o que é real ou apenas uma bravata. Ninguém sabe, a não ser ele mesmo. O tempo todo é um diz e desdiz.
Para piorar, ter acesso a Bolsonaro é extremamente difícil, pois ele só aceita falar em espaços em que sabe que não será questionado. Fugiu de todos os debates no segundo turno das eleições como se foge da peste, e só deu entrevistas para amigos, assim como fará durante o governo. Na maior parte do tempo, para ouvi-lo temos de nos submeter ao exercício masoquista de assistir às suas transmissões no Facebook, as quais, diga-se de passagem, adotam uma estética horrorosa ao estilo Al-Qaeda, fazendo parecer que os participantes estão sentados em uma espécie de bunker. Quando o “mito” falava na televisão, parecia estar lendo, porque de fato estava repassando um discurso decorado escrito por algum assessor ou marqueteiro, que está muito aquém de apresentar o que de fato Bolsonaro pensa e fará no país.
Bolsonaro e companhia, por meio desses recursos discursivos e estéticos, expelem uma nuvem de fumaça tóxica no ar para ocultar intenções inconfessáveis, pois sabem que navegam melhor por entre brumas e cerração; pois sabem que, se as pessoas de fato entendessem o que esse novo governo fará com elas, nunca votariam nesses algozes. O principal motor da sujeição é a ignorância. E isso é a prova mais clara do autoritarismo que está por vir; é a característica central de todo projeto obscuro; é a prova cabal de que estamos diante de um projeto fascista.
Tendo em vista que o fascismo é o capital na sua expressão mais descarada, o núcleo duro dos apoiadores do governo Bolsonaro, que sai às ruas com estampa do rosto dele, chamando-o de “mito” e se posicionando, no espectro ideológico, na extrema-direita, é consequentemente uma crescente, ativa e barulhenta base de massa de defesa das pautas do grande capital. Mesmo não sendo controladas pela burguesia, as manifestações desse núcleo duro servem, ao defender o governo Bolsonaro, como mais um instrumento de legitimação da ofensiva ultraliberal.
Portanto, a neurose obsessiva do discurso antipetista tem origens em um longo processo histórico, que combina fatores de longa, média e curta duração.
* João Elter Borges Miranda é professor de história formado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, trabalha na rede pública do Estado do Paraná e milita na Frente Povo Sem Medo, Frente Ampla Antifascista e Intersindical. Email: [email protected]