Por gostar de Escola Sem Partido, desembargadora de Santa Catarina ignora o Supremo Tribunal Federal
Lenio Luiz Streck, Conjur
Abstract: Precedentes? Teoria do Direito? Constituição? Que nada. A desembargadora de Santa Catarina prefere o Escola sem Partido e segue o Sr. Buckley!
O escritor Bernardo de Carvalho (já fiz um programa de um livro dele no Direito & Literatura – A Reprodução) me inspirou com o livro de ensaios de Rebecca Solnit, intitulado Call Them by Their True Names (Chame-os pelos verdadeiros nomes). Magnífico. De há muito falhamos por não chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes. Encarar de frente. Dizer. Por vezes — ou na maioria das vezes — soa antipático chamar as coisas pelo nome, dizer que o rei está nu e quejandos. Esse é o ônus.
Pois hoje vou chamar — outra vez — o ativismo (ou a sua vulgata) pelo nome que tem. Mas buscando fonte nos EUA. Por lá, há um tipo de corte chamada town court. São cortes locais que, como nossos juizados especiais, cuidam daquilo que se convencionou chamar de “pequenas causas”. Também lá, e de novo como em nossos juizados especiais, há a figura do “juiz leigo”.
Pois bem. Em um artigo, o conhecidíssimo Jeremy Waldron, autor de quem gosto muito, conta a história do Sr. Buckley, um sujeito que consertava telefones e, nas horas vagas, atuava como juiz leigo. O comportamento do Sr. Buckley era famoso na cidade: xingava todo mundo e mandava todo mundo pra “jaula”. Sem fiança.
Entrevistado, “seu” Buckley disse: “Eu sigo meu próprio bom senso, e pros diabos com o Direito”.
A história é verdadeira. A resposta foi exatamente essa. Está no New York Times, em matéria que alerta sobre “abusos do Direito e do poder” das town courts (qualquer coincidência com os juizados especiais brasileiros é, mesmo, pura semelhança!).
Engana-se quem pensa que vou criticar o velho Buckley. Ele é, na verdade, um gênio. Porque, lá dos EUA, ele definiu toda a Teoria do Direito que dá sustentação à maior parte de nossa prática, enfim, ao nosso direito brasileiro: “Eu sigo meu próprio bom senso, e pros diabos com o Direito”.
Dworkin? Hart? Kelsen? Canotilho? Ferrajoli? Bercovici? Rodrigues Jr.? Cattoni? Barreto Lima? Nery Jr.? Ferraz Jr.? Tavares? Posner, Scalia, estes dois últimos com quem eu mesmo teria profundas divergências? Alf Ross, quem sabe? Nada disso. O grande teórico que explica nossa prática jurídica é o Sr. Buckley.
“Eu sigo meu próprio bom senso, e pros diabos com o Direito”.
Trago isso para mostrar o que está por trás da decisão da desembargadora de Santa Catarina que resolveu liberar o “disque-denúncia”professores, de autoria da deputada do PSL, Ana Caroline Campagnolo. A decisão está em anexo e a matéria está na ConJur. A decisão monocrática concede efeito suspensivo em agravo de instrumento
Saiba mais: Ministério Público pede a condenação de deputada aliada de Bolsonaro
“…para permitir que a deputada eleita Ana Caroline Campagnolo (PSL) volte a publicar, em sua página no Facebook, postagem em que se coloca disponível para receber denúncias de alunos contra professores. No entender da magistrada, a discussão tem como pano de fundo, na realidade, a chamada Escola sem Partido — a possibilidade ou não de o professor ultrapassar o limite de sua cátedra para ingressar na seara da doutrinação político-ideológica.”
Embora reconheça ser o Escola sem Partido (sobre o qual falei aqui e aqui) o pano de fundo, a desembargadora prolatora da decisão monocrática disse que há algumas coisas que “antecedem” o debate: a possibilidade de a deputada colocar a si própria “como uma espécie de ‘ouvidora social’ em defesa de alunos vítimas de abusos ou excessos em sala de aula” (sic). A desembargadora decidiu assim para evitar o “proselitismo político-partidário travestido de conteúdo educacional ministrado em sala de aula”.
Vamos lá. Também eu quero trazer alguns elementos que, bem, antecedem o debate. Deixo de lado a questão de a decisão ser boa ou ruim (spoiler: é equivocada — embora isso não importe para o debate). Quero falar sobre aquilo que vem antes.
O Supremo Tribunal Federal já não deixou claro, claríssimo, o papel do ensino e, por que não, da educação tout court quando do julgamento da ADPF 548? E não existem cinco cautelares que dizem o contrário do que diz Desembargadora (ADI 5.537/AL e das ADPF 457/GO, 461/PR, 465/TO e 526/PR)? As cinco cautelares dizem respeito à, exatamente, mesma matéria. Mas vou mais longe, porque invoco a ADPF 548. “Ah, é diferente. O assunto da ADPF 548 era a liberdade de cátedra universitária”. Dando de barato que não há nenhum cinismo por trás dessa possível réplica, respondo. Em três pontos.
Um: Se é diferente, não há que se fazer o distinguishing? Afinal, não dizem por aí que temos um “sistema de precedentes”?
Dois, e mais importante: E os princípios subjacentes à decisão? Será que alguém em sã consciência pensaria que, quando o STF diz que há liberdade de manifestação de ideias no contexto educacional, isso é aplicável somente às universidades? Algo como “veja bem, é verdade que o STF chancelou a liberdade de expressão, mas só vale pra universidade. Pra escola não vale.” Por favor, respeitemos as inteligências uns dos outros.
Três: As cinco cautelares já referidas matam a charada (veja-se a liminar do ministro Roberto Barroso suspendendo o Escola-Sem-Partido-Versão-Alagoas). Isso não vale de nada quando uma desembargadora de Tribunal de Justiça está a decidir algo que, reconhecidamente (por ela mesma), tem o ESP como pano de fundo? Não esqueçamos que, no julgamento da ADPF 548, o caso do “disque-denúncia” da deputada de SC foi referido em obiter dictum.
O que quero dizer é que esse é mais um exemplo da ausência de uma epistemologia jurídica, de uma teoria da decisão autêntica no direito brasileiro. Não há critérios. Igualzinho ao Sr. Buckley. Quer dizer: critérios existem. Leis existem. O que falta é um cuidado para com a aplicação.
Tem precedente ou não tem? Vale(m) ou não vale(m)? Que tipo de teoria sustenta a decisão da desembargadora? Qual é a base teorético-jurídica para, Constituição à parte, STF à parte, decidir contra o assim denominado “proselitismo político-partidário travestido de ensino” (PPPTE)?
Ah, vou além: “PPPTE”? Com base em quê? Baseado no nada, pelo visto, porque a decisão é prospectiva. Então que tipo de fundamento sustenta a tese de que há esse “proselitismo PPTE…” nas escolas? Quem disse? Há um estudo sustentando isso? E dizer que há PPPTE já não é, também, uma forma de PPPTE? A Escola Sem Partido é sem partido ou é PPPTE contra aquilo-que-se-diz-que-é-Escola Sem Partido? Bom, para termos uma ideia, nem Olavo de Carvalho e nem o Antagonista apoiam a ESP. Interessante é que a desembargadora fala até em projetos de ESP no legislativo. Sim, projetos. Logo, não são leis. O projeto mais famoso é o do deputado-pastor-cantor Flavinho.
A ratio da magistrada está na esfera do argumento tipo “pessoalmente sou a favor da Escola Sem Partido” ou algo como “penso assim e assim decido”. Azar do STF. Recomendo, aqui, uma coluna cujo título que dei foi Há boas razões para obedecer ao Direito e desobedecer aos impulsos morais. Ou seja, a desembargadora concorda com a ESP. Este é o seu impulso ou desejo moral (que Raz chama de razões de primeira ordem); só que existem razões de segunda ordem que a impedem (ou deveriam impedir) de exercitar esse impulso moral. Essas razões de segunda ordem são chamadas de Direito. Simples assim.
Por isso tudo é que, hebdomadariamente, venho falando sobre a necessidade de uma teoria da decisão. Em meus livros trabalho essa ideia de há muito. Por isso fui o protagonista da inserção do artigo 926 no CPC, que exige coerência e integridade nas decisões. Todavia, de nada adianta haver juízes em Berlim se, em Berlim, os juízes agirem como o Sr. Buckley. De novo, simples assim.
Olhando decisões desse jaez (também em SC há uma decisão de Turma Recursal concedendo 180 dias de licença paternidade para pai de gêmeos – aqui), parece que estamos em uma espécie de Escola do Direito Livre ou Livre Investigação ou praticando, mesmo, o realismo jurídico. Não há uma Teoria do Direito seguida nas práticas dos tribunais. Péssimas teorias políticas de poder — retroalimentadas nas salas de aula, na dogmática jurídica que não prima pela profundidade e nos cursinhos de preparação — sufocaram as condições para uma teoria conformadora do modo de como se deve decidir republicanamente.
Fazendo uma ironia, o maior teórico jurídico no Brasil parece ser o velho Sr. Buckley, quem, enquanto conserta seus telefones e xinga os litigantes, definiu, sem saber, toda nossa prática jurídica.
Quem decide ignorando a lei, os códigos e a Constituição Federal, comporta-se como o Sr. Buckley. No caso de Santa Catarina, é bom que os juízes não imitem o modus decidendi da desembargadora.
Cada dia mais devemos enfrentar “tudo isso” de frente. Querem saber como fazer? Simples: “Call Them by Their True Names”!
Post scriptum: Só o acirramento ideológico parece explicar o fato de que nem mesmo leis claras asseguram que se sepulte os mortos. A morte é a fronteira final — desculpem a redundância alegórica. E, no Brasil, passamos essa fronteira. Conseguimos. “Vencemos”. Já na mitologia, Antígona morreu tentando. Veja-se que ela NÃO tinha a seu favor uma lei autorizativa. Tinha, ao contrário, um “decreto” proibitivo. Mitologias, ficções, realidades… Interessante é que, exatamente para evitar desagreements (desacordos políticos, morais, ideológicos), colocou-se na lei, há décadas, um modo — objetivo — de resolver o dilema que matou Antígona. De pouco vale(u). O que é isto — o Direito? Call them…
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