Ditador elogiado por Jair Bolsonaro era corrupto e estuprava meninas
Ainda não se sabe se foi por ignorância, desonestidade ou falta de caráter, mas o presidente Jair Bolsonaro elogiou publicamente um estimulador do narcotráfico e pedófilo em série, que dedicava-se a estuprar meninas virgens
Em um discurso constrangedor durante a nomeação das novas autoridades da Hidrelétrica de Itaipu, na fronteira com o Paraguai, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) se desfez em elogios ao ditador Alfredo Stroessner, o homem que controlou o Paraguai entre 1954 e 1989.
A hidrelétrica só foi possível, disse ele, “porque do outro lado havia um homem com visão, um estadista que sabia perfeitamente que seu país, o Paraguai, só poderia continuar progredindo se tivesse energia”.
“Então, aqui está minha homenagem ao nosso general Alfredo Stroessner”, acrescentou em português, pouco antes de ficar em silêncio e observar o olhar imóvel do presidente paraguaio.
O presidente Mario Abdo Benítez assumiu o comando do Paraguai no dia 15 de agosto de 2018, depois de uma campanha em que tentou se distanciar de seu passado stroessnerista. Seu pai, Mario Abdo, foi o braço direito do ditador por mais de 30 anos. Bolsonaro parecia confortável diante de seu interlocutor e continuou com citações da Bíblia. “A verdade nos libertará”, disse.
“Será um prazer recebê-lo em Brasília nos próximos dias, onde aprofundaremos outras discussões para o bem-estar de nossos povos. Esquerda nunca mais!”, acrescentou o presidente brasileiro.
A fala de Bolsonaro repercutiu tanto na imprensa brasileira como na paraguaia, já que o regime de Alfredo Stroessner ficou mundialmente conhecido por esquemas de corrupção, pedofilia, estupros, torturas, violações de direitos humanos e perseguição política.
Atualmente, o regime de Stroessner é investigado pelas autoridades, inclusive pelo Departamento de Memória Histórica e Reparação do Ministério da Justiça. Entre os casos descobertos, analisados e trazidos a público sobre aquela ditadura estão casos de pedofilia em série e estímulo ao narcotráfico.
PEDOFILIA
Em 1954, o general Alfredo Stroessner deu início a uma ditadura militar que durou 35 anos. Ao longo do seu regime de terror, ele e parte de seus ministros e generais dedicavam-se, nas horas livres, a protagonizar estupros. Mais especificamente, a violar meninas virgens.
O principal protagonista dos abusos sexuais era o próprio ditador, que exigia que seus assessores mantivessem um fornecimento de garotas virgens para seu uso pessoal. O plantel, que era renovado constantemente, precisava — por ordem de Stroessner — ser composto por meninas que deveriam ter entre 10 e 15 anos de idade.
Segundo os investigadores do Departamento de Memória Histórica e Reparação do Ministério da Justiça em Assunção, Stroessner estuprava em média quatro meninas novas por mês. Isso é, como pedófilo em série, em três décadas e meia de ditadura, ele teria violado mais de 1.600 crianças.
Os militares buscavam e sequestravam meninas da área rural de acordo com os “gostos” de Stroessner e seus ministros. Volta e meia os militares também faziam essa sombria “colheita” de meninas pelas ruas da própria capital, Assunção. Nesse caso, os oficiais utilizavam Chapeuzinho Vermelho, apelido — em alusão ao conto de fadas — dado ao Chevrolet Custom 10 vermelho utilizado nessa blitz sexual.
Um dos casos investigados pela Comissão de Verdade e Justiça do Paraguai é o de Julia Ozorio. Ela tinha apenas 12 anos quando foi sequestrada da casa de seus pais no vilarejo de Nova Itália, em 1968. O sequestro foi realizado pelo coronel Julián Mier, comandante do regimento encarregado da guarda pessoal de Stroessner. Julia foi levada à chácara onde ficava o harém do ditador, e ali foi escrava sexual durante três anos.
Depois do ditador, a menina foi repassada a oficiais, suboficiais e soldados. Quando fez 15 anos, Ozorio foi considerada “velha demais” e solta. Ela se mudou para a Argentina onde, em 2008, publicou suas memórias: Uma rosa e mil soldados .
Os crimes da ditadura stroessnista — como torturas e assassinatos de civis opositores — estão sendo investigados na Justiça paraguaia desde meados dos anos 90. No entanto, os crimes sexuais somente começaram a ser investigados em 2016.
As primeiras denúncias sobre os estupros sistemáticos do ditador paraguaio, porém, foram publicadas pelo jornal americano The Washington Post no distante ano de 1977, quando o regime estava em seu apogeu. O tradicional jornal da capital americana classificou Stroessner e seu entourage de altos oficiais de “depravados sexuais”.
NARCOTRÁFICO E TORTURA
Stroessner nunca se envergonhou do envolvimento ativo das Forças Armadas paraguaias no contrabando de drogas internacional. “Ah, mas esse é o preço da paz”, costumava argumentar, indicando que, dessa forma, mantinha seus militares satisfeitos com grandes lucros.
Durante seu regime, o Paraguai tornou-se o hub latino do contrabando, movimento de cocaína a carros de luxo roubados. Nos anos 80, o país era o maior importador de uísque mundo, embora paradoxalmente fosse um de seus menores consumidores.
Segundo dados da Comissão Verdade e Justiça, pelo menos 18.772 pessoas foram vítimas de torturas físicas, sexuais e psicológicas durante o regime stroessnista.
Entre os torturadores, o mais emblemático foi Pastor Coronel. Volta e meia, quando torturava, ele telefonava a seu chefe e — em uma espécie de transmissão on-line telefônica — Stroessner ia ouvindo os grito do preso político torturado de plantão.
Pastor Coronel e Stroessner apreciavam o uso da serra elétrica e do maçarico para torturar. Vários opositores, dentre os quais Miguel Soler, foram cortados ao meio com a serra elétrica. Outros eram queimados lentamente, e de forma localizada, com um maçarico.
Além disso, Stroessner tinha simpatia pelo Nazismo. Filho de um imigrante da Baviera, o ditador paraguaio dava passaportes para centenas de criminosos de guerra nazistas.
Um dos mais famosos foi o médico Josef Mengele, o “Anjo da Morte”, que selecionava as vítimas de suas experiências médicas no campo de concentração de Auschwitz. Outro criminoso de guerra foi Eduard Roschmann, o “Açougueiro de Riga”, famoso pela execução de 30 mil judeus.
“A HOMENAGEM MACHUCA”
Para a historiadora paraguaia e professora da Universidade Católica de Assunção, Margarita Durán Estragó, a homenagem que Jair Bolsonaro rendeu ao ditador fez sangrar as feridas deixadas pelo stroessnerismo.
“A nós que continuamos vivos, machuca muito. Eles se aproveitam de que os jovens não se lembram mais das atrocidades da ditadura porque não viveram o que vivemos. É preciso promover a memória, mas nossos vizinhos tampouco ajudam”, disse a pesquisadora, referindo-se ao presidente brasileiro.
Mauricio Santoro, professor do departamento de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), explica as características do regime de Alfredo Stroessner e fala sobre sua queda.
“Depois de décadas de ditadura, todos os altos funcionários paraguaios eram do Partido Colorado de Stroessner. E o regime acabou por uma questão familiar: o genro de Stroessner deu um golpe nele”, afirma Santoro.
“A ditadura de Stroessner foi bastante corrupta, incluindo propinas que ele cobrou dos brasileiros para a construção de Itaipu. A gente pode discutir até que medida esse preço da aliança foi bom para o Brasil”, explicou Santoro.
Para o professor, a declaração de Bolsonaro muito provavelmente veio sem uma análise maior da trajetória do ditador, baseando-se na identidade comum com os regimes análogos no Brasil, sustentados no militarismo e anticomunismo.
“A meu ver, a declaração de Bolsonaro foi muito ruim. Brasil, Paraguai e outros países se dizem preocupados com a democracia na Venezuela, mas quando o presidente cumprimenta um ditador, ele enfraquece a posição brasileira. É uma fala ruim no pior momento para isso”, fianaliza Santoro.
O ditador Alfredo Stroessner morreu impune aos 93 anos em seu exílio no Brasil.
Documentário Calle de Silencio, sobre a pedofilia de Stroessner:
com informações da Época e The Economist