O ensino jurídico isento de ideologia é possível?
O Direito é construção social, órgão vivo, mutável e flexível. Uma teoria pura do Direito é tão possível, hoje, quanto a crença de que a terra é plana. E ensino jurídico sem ideologia já é uma posição ideológica conservadora para evitar o contraditório na sala de aula
Wagner Francesco, CartaCapital
Em tempos de “Escola sem Partido”, é muito importante a gente discutir a neutralidade na formação do conhecimento jurídico, pois há a ideia de que “devemos ir para a sala de aula aprender as leis e não política”, como se as leis não fossem feitas por políticos e com interesses políticos.
Parto da ideia de que o ensino jurídico jamais será neutro, pois, como dizia Karl Marx, “quem comanda as ideias são as ideias da classe que comanda”. Então, por evidente, todo ideia jurídica já é uma ideia contida num programa de ensino ideologicamente formulado pela classe que tem o dinheiro para fundar universidades, bancar as pesquisas e influenciar, segundo seus interesses, a formação acadêmica de toda a nação.
Assim, a história de um ensino isento e imparcial na busca da verdade é uma falácia.
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Agora, para fins de exercício de reflexão passo a analisar brevemente as reflexões do pensador austríaco Hans Kelsen, que muito inspira o ensino jurídico e a mentalidade de muitos que repetem essa falácia no Brasil.
A teoria pura do direito, formulada por Kelsen, é o maior produto criado pelo positivismo jurídico, onde o autor exclui da análise do Direito qualquer especulação filosófica ou sociológica e reduz o estudo jurídico à mera análise da norma jurídica ou do texto da lei, negando qualquer esforço para compreender por que a norma e a lei foram criadas e a favor de quem. O projeto de Kelsen era simples: proporcionar objetividade, autonomia e neutralidade no estudo do Direito.
Este projeto do Kelsen, no entanto, esbarra na teoria do matemático Gödel quando este diz que “todos os sistemas fechados dependem de algo fora do sistema.” Isto é: olha o debate sobre a aplicação de regras ou princípios. Enquanto a regra é fechada – “tudo ou nada” – , os princípios se valem da interpretação do operador do Direito, a partir da lógica de que “há algo fora do sistema fechado”.
O princípio é mais geral que a regra porque comporta uma série indeterminada de aplicações. Enquanto Kelsen pretende que diante de um fato a regra seja aplicada, a moderna hermenêutica, iniciada com Nietzsche, defende que “não há fatos, apenas interpretações”, logo a aplicação de uma regra nunca deveria ser (assim como de fato não é) pura, porque as infinitas razões que levaram ao “fato” julgado são, uma vez que estão fora do sistema fechado da regra/norma, em demasia complexas.
A teoria proposta por Kelsen tem seus limites claros quando propõe que o direito para o jurista deveria ser encarado como norma e não como fato social ou como valor transcendental e erra grotescamente quando pretende trazer “uma teoria pura do direito”, i. e., purificada de toda ideologia política e dos elementos de ciência natural (p. 11), isto porque não existe neutralidade, e por mais que ele se feche na norma, fora da norma, segundo Gödel, milhões de coisas estão acontecendo.
A vida é complexa e a complexidade só pode ser entendida por um sistema de pensamento aberto, abrangente e flexível — o que somente o Materialismo Histórico pode dar conta de interpretar. Este configura uma nova visão de mundo, que aceita e procura compreender as mudanças constantes do real e não pretende negar a multiplicidade, a aleatoriedade e a incerteza, e sim conviver com elas.
É por esta razão que eu nunca fui simpático à teoria pura de Kelsen, nunca aceitei o ensino jurídico apenas baseado na letra morta da norma, privilegiando uma neutralidade que não existe em lugar nenhum das Ciências Humanas. Não vejo com bons olhos o positivismo jurídico proposto pelo autor e creio que outras epistemologias críticas fariam um papel de estímulo à reflexão muito maior do que os pensamentos do cânone eleito para inspirar o estudo jurídico no país.
Assim, como exposto, a tentativa de criar um ensino jurídico sem ideologia não passa de um movimento ideológico conservador, mantenedor de um status quo acadêmico e elitizado. Querem um ensino jurídico centrado na letra da lei que é construída sobretudo por um poder legislativo conservador e que pouco entende do chamado “Direito achado na rua”, como também de outros dados da realidade.
Como falar em “neutralidade do ensino jurídico” e, ao mesmo tempo, vermos leis que tratam da negação do direito ao aborto; a omissão na tipificação do crime de homofobia; leis que prejudicam o trabalhador como a Reforma Trabalhista e da Previdência? Se a construção da lei não é neutra, menos ainda deve ser a discussão dela.
Assim, compreendo como correta a frase do filósofo István Mészáros:
“Em parte alguma o mito da neutralidade ideológica – a autoproclamada Wertfreiheit, ou neutralidade axiológica, da chamada “ciência social rigorosa – é mais forte do que no campo da metodologia. (…) Na verdade, esta abordagem neutra da metodologia tem um forte viés ideológico conservador. (…) O milagre metodológico que transcende o conflito é constantemente proposto, no interesse da ideologia dominante, como a estrutura reguladora necessária do “discurso racional” nas humanidades e nas ciências sociais”. – MÉSZÁROS, István. O poder da Ideologia. Cap 6 – Metodologia e Ideologia: A ideologia da neutralidade metodológica, p. 301.
O Direito é construção social, órgão vivo, mutável e flexível. Uma teoria pura do Direito é tão possível, hoje, quanto a crença de que a terra é plana. E ensino jurídico sem ideologia já é uma posição ideológica conservadora para evitar o contraditório na sala de aula – além de favorecer as principais bancas de concursos públicos e os autores que vendem os livros que estas bancas indicam, pois, ou responde como estes autores pensam e estas bancas determinam ou será reprovado nas provas que se dizem objetivas.
O ensino jurídico neutro, isento de ideologia, se não é uma impossibilidade é uma aberração.
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