E se o ex-presidente Lula quiser morrer?
Já não se pode pensar na trajetória de Lula senão sob o signo da tragédia. Nietzsche sentenciou, certa vez, que tudo o que é forte vem a fenecer
por Flávio Ricardo Vassoler, via Facebook
Há pouco menos de 3 anos, o jornalista Mino Carta deu uma declaração que, à época, não parecia tão preocupante e premonitória quanto parece agora: “E se Lula sofrer um atentado?“. Há pouco, deparei com uma declaração similar do humanista Adolfo Esquivel, agraciado com o Nobel da Paz: “Temo pela vida de Lula“.
Há poucos meses, o mesmo Mino Carta, acompanhado do escritor Fernando Morais, esteve na Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba, onde Lula é mantido como preso político. À saída, interpelados pela imprensa, Mino e Morais ressaltaram a indignação de Lula por estar na prisão, mas o fundador da revista “Carta Capital” fez questão de dizer que, naquela situação aviltante, “Lula ainda assim se mostra guerreiro e repleto de vida, Lula é uma verdadeira força da natureza!“.
Quando saímos de nosso horizonte histórico imediato — dada a crise nauseante e claustrofóbica, parece bem difícil espichar o pescoço como um periscópio ou uma girafa para buscar uma visão mais panorâmica –, conseguimos perguntar: quais são os líderes republicanos verdadeiramente históricos no Brasil?
Para além da erudição política, alguém se lembra, de fato e de coração, de algum presidente da reacionária República Velha? Agora, ainda que Rui Barbosa não tenha sido presidente, quem não se lembra da “Águia de Haia”?
Não fosse a Revolução de 30 capitaneada por Getúlio Dornelles Vargas, o Brasil não teria desenvolvido sua indústria de base. Maquiavelicamente, Getúlio soube oscilar entre a encarquilhada elite provinciana e o nascente, crescente e cada vez mais pujante movimento operário, municiado por um sem-número de anarco-sindicalistas fugidos da Europa. Assim, o bígamo Getúlio Vargas pôde ser o pai dos pobres e a mãe dos ricos.
Você se lembra da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN)? Oscilando menos ideológica que pragmaticamente entre o apoio ao Eixo e/ou aos Aliados, o ditador estado-novista Getúlio Vargas erigiu a CSN, com capital estadunidense, em troca do apoio brasileiro às democracias ocidentais na Segunda Guerra. Ora, que progressista, em sã consciência, condenaria essa manobra de Vargas, sem a qual o Brasil jamais sairia da condição de fazenda escravocrata?
Lembremo-nos, ademais, da Petrobras, da Fábrica Nacional de Motores (Feneme), da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), da burocratização/impessoalização do Estado, para o qual os servidores só passariam a trabalhar, em âmbito federal, estadual e municipal, por meio de concurso público — conquista que apenas a Constituição de 1988 consolidou, a despeito da permanência dos famigerados cargos comissionados.
Ao se suicidar — ou ao ser suicidado –, Getúlio Vargas, de fato, saiu da vida para entrar na história, como sentencia a última frase de sua carta-testamento, o mais belo texto político de um brasileiro.
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Em recente entrevista à revista “Veja”, o senador alagoano Renan Calheiros fez uma colocação espirituosa quando interpelado sobre a iminência de o então candidato vitorioso na última eleição, Jair Ustra Bolsonaro, sentar na cadeira presidencial: “O sujeito até pode chegar à presidência, mas é preciso saber se a presidência chegará até o sujeito. Hoje, quem é Eurico Gaspar Dutra? Hoje, quem é Jânio Quadros? Meros quadros na parede. No entanto, quando pensamos em Getúlio Vargas e Juscelino Kubistchek, falamos de nossa história“.
Eivado de muitas contradições, que poderíamos dizer sobre o lulismo?
Analisado pelo cientista político André Singer, da FFLCH-USP, como uma correlação de forças conciliadoras para gerar e gerir reformas brandas (porém essenciais) sem aguçar conflitos de classe [uma vez que o PT, alçado ao poder pelo voto popular, não só não contava com o apoio das Forças Armadas (poder que hoje tutela nosso Estado de exceção), como fez questão de apaziguar a Casa Grande com a “Carta aos brasileiros”], o lulismo retirou o Brasil do mapa da fome das Nações Unidas; aumentou, vigorosamente, o poder de compra do salário mínimo (baliza de vida da maior parte da população do país para além do Sudeste); aprovou as cotas étnico-sociais, entre muitas outras conquistas que, se não são estruturais, chegam a representar a diferença entre cidadania mínima e indigência, vida ou inanição, para milhões e milhões de brasileiros e brasileiras.
Por ter saído da miséria no semiárido nordestino e ter fundado um partido político de quadros e de massas com o número 13, em memória dos 13 dias de viagem a bordo do pau-de-arara que levou a família Silva de Guaranhuns, em Pernambuco, a Vicente de Carvalho, no litoral sul de São Paulo, Lula já seria um fenômeno. Mas o líder sindical chegou à presidência após três derrotas eleitorais consecutivas — para Collor, em 1989, e para FHC, em 1994 e 1998. Poucos se lembram de fato e de coração de Collor e FHC, mas ninguém, dos detratores aos fiéis, se esquece de Lula, que, ainda por cima, é conselheiro vitalício do glorioso Sport Club Corinthians Paulista, o time mais popular do Brasil.
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Quando Lula se entregou para a Polícia Federal em São Bernardo do Campo, após discursar com o ímpeto dos velhos tempos em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos (sua manjedoura política), o ato foi bem mais histórico (e teatral) do que legalista. A foto sobrelevada de Lula, içado pela multidão, ganhou o mundo.
Em fins de 2017 — antes, portanto, da condenação agravada pelo TRF-4, de Porto Alegre –, Lula, exímio analista político, fez duas avaliações que se mostraram clamorosamente erradas: (i) “Não acredito que o povo brasileiro leve um reacionário como Bolsonaro para o segundo turno; (ii) aconteça o que acontecer, Geraldo Alckmin estará no segundo turno“.
Muitos, entre os quais o ex-presidente uruguaio José Mujica, sugeriram a Lula que pedisse asilo a um país amigo. Lula sentenciou que buscaria a Justiça até o fim, custasse o que custasse.
Hoje, Jair Ustra Bolsonaro é o presidente; Hamilton Mourão, o vice; e Sérgio Moro, o superministro da Justiça.
Mesmo sendo ágrafo, Bolsonaro declarou certa vez que seu livro de cabeceira é “Verdade sufocada”, de autoria do coronel e torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, a quem o capitão saudou, quando de seu voto pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Em recente entrevista à Globonews, o general Mourão, que já fizera menção à possibilidade de um “autogolpe” e à necessidade de uma assembleia constituinte formada apenas por “notáveis“, declarou que Ustra foi um herói nacional — e que heróis também matam.
Sobre o justiceiro Sérgio Moro, a quem a ironia de Machado de Assis (o motor de nossa história pátria) tratou de conduzir ao posto de superministro da Justiça, basta dizer que se trata do mais encarniçado inimigo político de Lula — Lula, sem Moro, permanece sendo Lula; Moro, sem Lula, segue diretamente para a lata de lixo da história.
Essas três figuras temerárias são, objetivamente, as responsáveis pela guarda de Lula na Superintendência da Polícia Federal, instituição hoje cindida pelas mesmas disputas que transpassam a sociedade brasileira.
Em meio à sequência de arbitrariedades que vêm marcando as instituições judiciais e policiais do Brasil nos últimos anos, por que não poderíamos pensar que Lula corre sério perigo?
Mas, para além desse risco pra lá de concreto, gostaria de terminar este texto com a seguinte especulação: e se, para além de toda a sua enorme combatividade, Lula quiser morrer?
Vejamos: Marisa Letícia, sua companheira por décadas, e o irmão Vavá já se foram no bojo de todo o horror persecutório; consta que os filhos de Lula permanecem desempregados; seus bens, congelados e inacessíveis; multas sobre multas recaem sobre Lula. É como se os justiceiros golpistas, como Roma contra os cartagineses, quisessem salgar a terra por onde o lulismo se disseminou. (Perdoem-me a comparação entre a grandiosidade de Roma, que fez nascer um intelectual do porte de um Cícero, e o provincianismo da República de Curitiba, encabeçada pelo gramático Sérgio Moro.)
Lula, há muito, já não pensa e já não se vê mais como Luiz Inácio.
Lula, como Lula, não pode deixar de lutar — já cantava a Gaviões da Fiel: “Não para, não para, não para! Não para, não para, não para! Vai, Corinthians, vai, não para de lutar! Vai, Torcida Fiel, saravá, São Jorge, ele vem nos ajudar!“.
Quem superou a miséria e a inanição; o preconceito étnico e social; a primeira prisão política, em meio à ditadura; a morte da mãe da cela do DOPS; o achincalhamento pelo sotaque, pela língua presa (crime social pela carência de acesso a fonoaudiólogos), pela aparência desgrenhada e pela predileção pela pinguinha no cambuci; quem deu a volta por cima depois de três derrotas eleitorais e as capitalizou politicamente, ora, não vai desistir diante de anões que usurpam o poder.
Quem teve a sensibilidade micrológica (a memória dolorida da humilhação de classe que sempre lateja) de facilitar o acesso odontológico à população desdentada; quem mediou a abertura de contas bancárias para os pobres sem valores mínimos; quem pensou que jamais poderia haver quaisquer utopias se o Brasil não conseguisse erradicar, de vez, a chaga da inanição, ora, tal líder só se entrega ao cárcere, ao fim e ao cabo, para proceder à imitação (a bem dizer, à superação) de Getúlio Vargas.
É muito trágico (e infantilizador) que o povo da América Latina, em sua tradição caudilhista, à direita e à esquerda, anseie por (e dependa de) líderes carismáticos como Juan Domingo Perón e Getúlio Dornelles Vargas; Fidel Alejandro Castro Ruz e Salvador Allende; Hugo Chávez e Luiz Inácio Lula da Silva. (O que seria do tipo ideal de “líder carismático“, erigido pelo sociólogo alemão Max Weber, sem a América Latina?) Mas, dada essa condição historicamente objetiva — e de difícil e lenta transformação –, a Casa Grande convertida ao neogolpismo (ora, ninguém converte o diabo ao satanismo, não é mesmo?) sabe que é preciso ceifar o corpo de Luiz Inácio.
Envenenamento paulatino da comida na prisão? Suicídio à la Vladímir Herzog? Ora, mas e quanto ao martírio? Os tempos eram bem outros — a força da esquerda era bem outra –, mas a elite brasileira bem se lembra da pax atomica de 1954 a 1964 causada (e inflamada) pelo suicídio de Vargas — pax atomica que adiou o golpe militar em 10 anos.
Lula sabe que, com o Estado de exceção em escalada, sua carreira política está totalmente emparedada. Não lhe permitem a fala — a condição de preso político inflamaria ainda mais sua oratória contagiante.
Ora, que fazer?
Lula viveu de forma radicalmente política (quem não se lembra de sua fala/discurso de despedida durante o velório de Marisa Letícia)? Não é difícil em termos literários (e improvável em termos históricos) imaginar que Lula entreveja para si uma morte poeticamente histórica.
Do contrário, por que se entregar ao covil de seus leões?
Lula, não nos esqueçamos, é católico. Um católico forjado pelo evangelismo altamente politizado (e dramático) da teologia da libertação.
Não sem uma boa dose de vaidade política (demasiado humana) ao atrair para si a atenção da elite que sempre o subestimou, Lula já se disse a figura pública mais estigmatizada deste país (falem mal, mas falem de mim) e já comparou o vermelho do PT ao sangue de Cristo. Ora, e se Lula, personagem histórica, estiver pensando não só em seu martírio, mas na consumação/arremate de sua luta política como uma espécie de crucificação?
O fato é que já não se pode pensar na trajetória de Lula senão sob o signo da tragédia — por mais que os heróis gregos fujam de seu destino com a ilusão da autonomia, o desenlace entoado pelo coro acaba se impondo. Se Lula tivesse o respaldo militar de Hugo Chávez e a têmpera gauchesca de Leonel Brizola, outra figura pra lá de icônica de nossa história republicana, o Brasil já teria dado vazão à luta franca de classes que nossa elite tão bem sabe sublimar com a ejaculação carnavalesco-futebolística, sem que, por um lado, reduzamos essas explosões de nossa cultura à sua instrumentalização política, mas sem que, pelo mesmo lado, deixemos de perceber sua funcionalidade aos de cima.
Nietzsche sentenciou, certa vez, que tudo o que é forte vem a fenecer.
O herói — em nosso caso, o maior líder carismático de nossa história republicana — já entreviu que o ápice de sua força se exauriu na mesma medida em que lhe foi usurpado. Nietzscheanamente, então, talvez só reste a Lula a potência de, como mártir, fazer o elogio do próprio naufrágio.
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