Fábio Assunção é mais um entre tantos outros que enfrentam a dor dilacerante de conseguir controlar seus impulsos e compulsões. Aquilo que o “glamouriza” é também aquilo que o destrói.
Fernanda Almeida*, Jornal GGN
Quero escrever sobre o Fábio Assunção já faz algum tempo. Antes mesmo dele fazer o vídeo extremamente corajoso e generoso no qual diz autorizar a marchinha de carnaval em que é “anti-homenageado”, pois aquilo que o “glamouriza” é também aquilo que o destrói. Essa é a uma das ambiguidades típicas do contexto de quem faz uso abusivo de álcool.
Sinto-me motivada a escrever desde quando foram publicados aqueles vídeos em que ele é exposto após uma noitada em que “bateu a nave” no Pernambuco. Afinal, nós os cristãos sempre precisamos de um judas para justificar que nossos pecados não são tão graves assim, malhar um igual é quebrar o espelho sem se ferir.
Sinto-me motivada a escrever porque trabalho com usuários de álcool e outras drogas diariamente e tenho doado um tanto da minha energia em busca de construir relações de afeto e cuidado que extrapolem meu conhecimento técnico e profissional. Acredito cada dia mais na construção dos vínculos, neste sentido sou partidária do saudoso Antonio Lancetti, psicanalista antiproibicionista, segundo o qual “para suportar paixões violentas como essas ou mergulhar na biografia de pessoas silenciadas carcerariamente, além de plasticidade psíquica, os profissionais do CAPS-AD exercitam uma espécie de atletismo afetivo”.
Sinto-me ainda mais motivada porque neste momento histórico estou a lutar incessantemente com outros tantos militantes antimanicomiais contra os retrocessos do Governo Bolsonaro anunciados na Nota Técnica (nº 11/2019) do Ministério da Saúde, que pretende destruir as iniciativas potentes que estruturam a política de saúde mental, fruto da luta antimanicomial e das estratégias de redução de danos. Um dos pontos altos do documento é a valorização das comunidades terapêuticas em substituição ao trabalho dos CAPS-AD, o que pode até fazer sentido individualmente para algumas pessoas, mas está longe de ser uma política pública de enfrentamento de um problema tão grave de saúde mental.
Mas acima de tudo sinto-me muito motivada porque é muito fácil falar dos vícios e das compulsões dos outros. A cultura de fetichismo do alcoolismo é um embuste! Temos que falar dela, sem caretice, sem julgamentos morais, sem culpabilizações e, acima de tudo, fazendo as distinções necessárias. E são muitas!
Quem se preocupa com o amigo(a) que bebe de maneira compulsiva (sempre, quase todos os dias) e anda causando nas festinhas? Ah… Mas é o jeitão dele(a), né? É uma fase!
Quem nota que tornamos os encontros com os nossos amigos pretexto para ingerir álcool? O convite é: Vamos tomar uma? Quando estamos querendo dizer: Que saudade! Vamos nos encontrar?
Quem não tem um tio, tia, primo, prima ou parente próximo que já não tenha tido problemas com o uso abusivo de álcool?
Quem ousa enfrentar a ambígua relação existente entre prazer e angústia de beber mais um copo quando já sabe que no outro dia a ressaca será terrível?
Sempre retorno a uma reportagem incrível que afirma que “a formação alcoólica é, ainda que se negue, um dos tijolos da identidade masculina.”
Portanto, se queremos enfrentar também o machismo e o patriarcado teremos de falar da relação insidiosa entre alcoolismo e machismo, afinal, escutar que você “bebe como uma moça” é ofensa grave. E dizer que você, uma moça, bebe como um homem é o mesmo que lhe entregar um troféu.
Quem nunca ouviu uma história de violência doméstica em que o álcool foi o grande álibi?
Na semana passada a CartaCapital publicou reportagem importante com dados alarmantes do consumo de álcool no Brasil e sobre sua indústria predatória. Na ocasião escrevi que “a abstinência total não é única solução, ela pode ser importante (e até mesmo necessária!) para algumas pessoas, mas não para todas. As pessoas são diversas, e os objetivos-formas-razões-sentidos de usos são múltiplos. Construir propostas de atendimento coletivo sem perder a dimensão do sujeito é o nosso desafio. Transformar “pacientes” em sujeitos ativos e potentes no autocuidado é parte fundamental do tratamento.”
O aumento do consumo de álcool guarda profunda relação com a sociabilidade cotidiana, com a forma com que nos relacionamos e com as nossas vivências. A questão não é simples e exige política pública sólida, além de equipe multiprofissional preparada.
Uma política alicerçada no voluntarismo religioso não sanará um grave problema de saúde pública. Em tempos de destruição das políticas de saúde, levantar a bandeira da reforma psiquiátrica é um ato mais que necessário. É uma luta de todo militante antimanicomial e antiproibicionista.
Cresci convivendo na cultura do álcool. Sou uma apreciadora de vinho, por vezes propositalmente excedo e rendo-me ao prazer por puro deleite. Quero continuar assim!
Estamos na semana do carnaval, vamos beber, vamos ingerir substâncias psicoativas que vão nos proporcionar bem estar (ou não, diria Caetano). Porém outras pessoas não terão essa “opção” por motivos de saúde, de saturação do organismo e/ou da mente. Abdicar desse gozo é um luto, é frustrante, portanto, não banalize a condição e os limites dos outros. Cuide do seu, já é o bastante!
Fabio Assunção não é um herói, tampouco é um vilão.
Não o conheço pessoalmente, mas deve ser um sujeito comum com qualidades e defeitos. No entanto, ele é mais um entre tantos outros que enfrentam a dor dilacerante de conseguir controlar seus impulsos e compulsões. O que difere ele de nós é sua condição de artista, é a alegoria criada a partir da banalização da condição do outro, é a MÁSCARA (invisível, além dessa ridícula reproduzida comercialmente) com que cobrimos nossa face sobrepondo-lhe a imagem da personagem “Fábio Assunção”, pois temos um medo danado de olhar no espelho e perceber que nosso problema é o mesmo, ou maior e mais grave!
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A propósito assisti na semana passada o espetáculo “Dogville” que está em cartaz no teatro Porto Seguro. Fábio Assunção dá um show! Com um elenco formidável, ele interpreta um texto que nos remete para a sociabilidade perversa dos tempos atuais. Taí, uma boa identidade a ser construída.
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*Fernanda Almeida é Assistente Social, atua em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, CAPD-AD. É coordenadora do curso de Pós-Graduação em Serviço Social e Saúde da Faculdade Paulista de Serviço Social – FAPSS. Pesquisadora desde 2005 do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ética e Direitos Humanos (NEPEDH) da PUC-SP.
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