Crônica para tempos difíceis
Doutor: Ficha trinta e sete! Pode sentar. Qual é o problema?
Paciente 37: Um desânimo só, veja: sinto-me atada, não sei o que fazer, não sei para aonde ir, estou desesperada.
Dr: A senhora vai fazer o seguinte: de manhã, logo que acordar, ainda em jejum, vai ler “O que fazer?” do Lenin. Tome, pode levar este exemplar. Se após a leitura você quiser botar fogo na casa do vizinho rico ou fugir para o mato, tudo bem, o esquerdismo faz parte do processo. Releia a obra e, à tardinha, quando o bom-senso voltar, vá até este endereço ouvindo nos fones de ouvido “El Pueblo Unido”, de Inti Illimani. Alguma dúvida?
Pcte 37: Mas, doutor, não duvidando do senhor, a minha vizinha tinha o mesmo problema que eu e o médico receitou uns comprimidinhos.
Dr: Minha senhora, a minha escola é ortodoxa. Você sofre de um problema muito comum chamado capitalismo. Já vi inúmeras intoxicações por esse gênero. Só sara com formações, organização e revolução. Quando sair chame a próxima ficha.
Pcte 38: É a raiva, doutor. Tá me comendo por uma perna. Será que não entendem que independentemente de qualquer característica específica, nós somos a divina comédia. Somos bestas e estamos condenados a trabalhar toda a vida por manter magamos de além mar. Não há o que fazer, estamos condenados.
Dr: Tome esta crítica ao pós-modernismo da Maria Lygia e leia-a de doze em doze horas, durante três dias. Após isso, sempre ao som de “Maria, Maria”, do Bituca, leia este manifesto. Na contra-capa tem um número de telefone. Ligue para ele se sentir a necessidade de organizar a raiva.
Pcte 39: O pessoal tá dizendo que eu tô atado. Que o cavalo já passou encilhado várias vezes e eu não montei. É que eu tô esperando a hora certa. Compreende?
Dr: Sim entendo. Suor. Jorge Amado. Quarenta!
Pcte 40: Trago uma forte amargura dos encontros perdidos, doutor. E outra vez me perdi no fundo dos meus sentidos. Não acredito mais em sonhos e mais nada.
Dr: Em sequência, ouça “Ainda há tempo”, assista “Linha de passe” e “O prisioneiro da grade de ferro”. É um tratamento de choque. Mas, se o senhor sobreviver, ligue para esta organização. Seguinte!
Pcte 41: Ai, doutor, o que eu queria, mesmo, era me conhecer melhor por dentro. Sabe? Tipo assim uma análise. Pelo que eu li podia ser Lacaniana.
Dr: Lacaniana? Somos gente séria, minha cara. Depois do almoço, durma uma sonequinha e, quando acordar, ouça “Preciso me encontrar”. Leve este exemplar do “Socialismo o muerte” do William Yohai e leia-o após ouvir o Cartola. A próxima ficha que já fique de pé do lado da porta pra gente agilizar isso aqui, gente! Tem gente me esperando na outra clínica, gente!
Pcte 42: Tô preso aqui nessa cidade, doutor. Estudei tanto e continuo nessa província de merda.
Dr: Sei. Pegue esta passagem para Sampa e leia no caminho o “Mini-manual do guerrilheiro urbano”. Toma, pode levar este exemplar. Quando chegar na metrópole, ligue para o número que anotei na sobre-capa.
Pcte: Qual é o meu caso? É não me encontrar. Não percebo, nem sinto.
Dr: “Caçador de mim” de doze em doze horas. Próximo!
Pcte 44: Longe se vai sonhando demais, mas aonde se chega assim, doutor?
Dr: Você nada tem a temer. Nada a fazer senão esquecer o medo. Só aqueles que conseguem aguentar o calor e a pressão têm a chance, enfim, de abrir o peito a força, numa procura, e fugir às armadilhas da mata escura. Alexandra Kollontai de oito em oito horas. O filme Olga depois das refeições. Quarenta e cinto!
Pcte 45: Doutor, o que houve? Parece pálido!
O doutor retira um pequeno revólver do bolso e, mirando-o debaixo da mesa, atira no paciente, espalhando sangue por todo o consultório. Da porta da salinha, ele grita:
Dr: Alguém por favor traga algo para eu limpar essa porra toda. O desgraçado do P2 sujou tudo aqui.
* João Elter Borges Miranda é professor de história. Email: recapiari636@gmail.com
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