O que pode ter abrido as portas para a ascensão ao poder de um “paladino salvador da pátria” que, supostamente, colocará via força bruta e de cima para baixo “ordem na casa”?
Como pode um sujeito insignificante como Jair Bolsonaro (PSL), capaz de repercutir barbaridades até na vírgula e no pingo do i, transcender a condição de político desconhecido à outsider famoso nas redes sociais, tornando-se a opção de milhares de brasileiras e brasileiros para a Presidência da República?
Nas minhas poucas luzes, diria que para entendermos os motivos pelos quais “se fazem necessários” na fase atual do capitalismo fenômenos como Bolsonaro no Brasil, Trump nos Estados Unidos, Le Pen na França, dentre outros, é fundamental refletirmos a respeito das transformações desse sistema, principalmente a partir dos anos 1970, momento em que ocorre uma profunda crise.
Trata-se de uma crise histórica que vai para além de uma crise cíclica do capitalismo mais ou menos extensa, como as vividas no passado. O filósofo húngaro István Mészáros interpreta esse momento da história do sistema capitalista como uma crise estrutural, severa, do próprio sistema do capital, na qual esse sistema, caracteristicamente incontrolável e destrutivo, dá-se de encontro a partir dos anos de 1970 com seus próprios limites intrínsecos.
Acima de tudo, essa crise estrutural faz emergir uma nova temporalidade histórica do processo civilizatório, permeada por um conjunto de processos que configuram a fenomenologia do sistema capitalista global em seus “trinta anos perversos” (1980-2010).
Após a crise estrutural, o capitalismo global mergulha em uma época histórica de reestruturações nas diversas instâncias da vida social. No campo político-econômico, uma intensa campanha apresentava o neoliberalismo como novo espectro de políticas e reformas econômicas, advogando em favor de políticas de liberalização econômica extensas, como as privatizações, austeridade fiscal, desregulamentação, livre-comércio, corte de despesas governamentais a fim de reforçar o papel do setor privado. Para garantir os interesses do capital, os governos e organismos internacionais iniciaram o processo de alteração da dinâmica da acumulação capitalista, iniciando a consolidação da financeirização do capital – o que alterou o regime capitalista, de fordista para o regime financeiro. O regime fordista que dependia, essencialmente, do ciclo de produção, consumo, distribuição e troca de mercadorias, é transcendido para uma nova fase, com o intuito de superar os limites da acumulação capitalista. Nessa nova fase, o que interessa e realmente importa é a relação em que o dinheiro emprestado volta com dinheiro e lucro, através da cobrança de juros. Qualquer um que já tenha feito um empréstimo consignado já sentiu na pele o que é ver a própria renda ser tomada por conta da cobrança altíssima de juros.
Na América Latina, o neoliberalismo é implantando principalmente a partir dos anos de 1980. Considerada a “década perdida” para o desenvolvimento desse continente, muitos países latino-americanos foram, como parte da renegociação de sua dívida externa, “orientados” a implementar uma série de políticas e reformas neoliberais – receituário que ficou conhecido como “Consenso de Washington” –, que promoveu a abertura, desregulação e privatização de suas economias nacionais. Isso ampliou o decréscimo dos resultados sociais e econômicos e apresentou-se no fim dos anos 1990 como incapaz de superar os problemas estruturais desses países, apesar de em alguns deles o processo inflacionário ter sido controlado.
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A variante neoliberal implementada no Brasil em fins dos anos 1990 e durante os anos 2000 é de caráter moderado. A classe dominante passa a implementar uma série de reformas, por intermédio do Estado, com o intuito de promover a atualização gradual do capitalismo brasileiro. Esse processo se dá de cima para baixo, não envolvendo as classes subalternas; consequentemente, trata-se de um movimento de uma hegemonia, ainda que restrita, da classe dominante sobre nós — os “de baixo”.
Contudo, após a crise de 2008, a contingência apresentou a necessidade de reordenação diante da crise aberta, intensificando ainda mais as relações de exploração nas relações sociais capitalistas; acima de tudo, tal mudança não permitia mais espaço para o neoliberalismo moderado.
As contradições sociais criadas pela radicalização da exploração dos de baixo em um sistema capitalista dependente-associado, acirradas pela crise do modelo neoliberal moderado, explode no seio da sociedade brasileira em uma série de manifestações, como as jornadas de junho de 2013; como os protestos de 2014 contra os desmandos na preparação para Copa do Mundo e para as Olimpíadas; como as manifestações de 2015 pró-impeachment e as ocupações de escolas em 2016; as manifestações de 2017 e 2018 contra o governo Temer.
A classe dominante, o bloco no poder, não consegue, então, responder aos anseios e ao desencanto da classe dominada, não atendendo mais (ou não atendendo plenamente) às carências de orientação dos “de baixo”; o equilíbrio entre força e consenso é dissolvido e a classe dominante entra, assim, em uma crise de hegemonia, na qual perdem o papel de dirigentes.
Não basta isso para que haja o avanço do fascismo. É preciso que seja fermentada no seio da sociedade uma conjuntura da luta de classes muito específica, em que, ao mesmo tempo, ocorre a crise de hegemonia da classe dominante e a crise de ideologia da classe trabalhadora e de suas organizações. O conjunto da classe trabalhadora se vê em uma conjuntura de crise em que as formas como estão acostumados a lidar com os desafios da realidade, como o sistema político-institucional, não funcionam mais e as novas formas ainda estão engatinhando. Diante dessa falta de um horizonte definido, essa classe perde uma visão de longo prazo e as suas ações, não raro, consistem quase que exclusivamente em reagir às crises mais recentes. O historiador Leandro Konder aponta que o fascismo pressupõe também condições históricas especiais em que as forças antifascistas sejam minadas — o que pode ocorrer pela ação da mídia, igrejas, partidos, organizações políticas de variados tipos, que vão gestando na sociedade a preparação reacionária.
O filósofo Antonio Gramsci discorre que quando prevalece a imaturidade das forças progressistas e nem o grupo conservador dispõe da força necessária para vencer a crise, a necessidade de um senhor toma forma.
Portanto, trata-se de uma conjuntura muito específica da luta de classes, em que as frações hegemônicas do bloco no poder vivem em crise de hegemonia (crise esta que tem como fator o avanço da crise estrutural do capital que chega ao seu ápice em 2008) e as classes operárias em crise de ideologia e de suas organizações, abrem as portas para a ascensão ao poder de um “paladino salvador da pátria” que supostamente colocará, via força bruta e de cima para baixo, “ordem na casa”.
*João Miranda é professor de história.
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