Povos indígenas

A cruzada evangélica para exercer domínio sobre indígenas

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Missionários usam evangelização para exercer domínio sobre indígenas. Relatório da Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB) aponta que 53,5% etnias indígenas da Amazônia têm presença missionária evangélica

Imagem: Documentário Ex-Pajé

Sputnik

Se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderam bem a sua fala [dos índios] e os entenderam, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor, que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade”.

O trecho anterior foi retirado da carta que o português Pero Vaz de Caminha enviou a Portugal relatando as primeiras impressões dos navegantes portugueses sobre os habitantes nativos da terra que posteriormente se chamaria Brasil.

Mesmo após 519 anos do descobrimento, é possível identificar ainda grupos religiosos que atuam com o mesmo intuito descrito por Pero Vaz de Caminha na carta: fazer com que os índios deixem suas crenças ancestrais para se converterem ao cristianismo.

Um relatório feito em 2010 pela Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB) apontou que das 340 etnias indígenas presentes na região da Amazônia, 182, ou seja, 53,5% do total, têm presença missionária evangélica.

O levantamento, publicado pelo Jornal O Globo, mostrou que em 132 comunidades os trabalhos são feitos pelos próprios indígenas.

Segundo a antropóloga Lucia Helena Rangel, assessora do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e coordenadora do “Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil”, há diversos tipos de missionários atuando junto aos povos indígenas. Alguns com o intuito de defender os direitos desses povos e outros com o objetivo de praticar evangelização, semelhante ao desejado por Pero Vaz de Caminha.

Tem alguns evangélicos que estão lá para evangelizar do jeito deles, que é para traduzir a bíblia, para dessa forma exercitar um domínio sobre os povos”, disse à Sputnik Brasil.

O controle de acesso de grupos religiosos a tribos indígenas é feito pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A entrada de missões em terras indígenas só pode ocorrer com autorização da presidência do órgão ou em caso de as lideranças das aldeias autorizarem a entrada dos grupos.

Segundo Eduardo Luz, pastor da organização Missão Novas Tribos do Brasil, que trabalha com evangelização dos povos indígenas há aproximadamente 40 anos, o trabalho não se limita a levar o evangelho.

Nós levamos o evangelho, tanto pela vida quanto pela palavra transmitindo o ensinos da bíblia, mas nós cuidamos da área de saúde, educação, desenvolvimento comunitário, aquilo que traz benefícios para as comunidades que nós trabalhamos”, justificou à Sputnik Brasil.

Durante sua carreira, Lucia Helena Rangel pôde acompanhar de perto o trabalho de algumas organizações que fazem práticas parecidas com a da Missão Novas Tribos do Brasil. Para a antropóloga, esse tipo de atividade é “complicadíssima” e deve ser acompanhada com atenção.

O mal sempre está ligado às tradições indígenas, o bem está sempre ligado as proposições doutrinárias evangélicas, isso é um negócio muito complicado. Alguns exemplos que eu vi são estarrecedores”, disse.

Sobre as críticas feitas por defensores dos direitos dos povos indígenas de que na verdade o processo de evangelização representa um suposto “ataque à cultura desses povos”, o pastor Eduardo Luz responde dizendo que na verdade o que ataca os povos é a falta de acesso à saúde.

Você conhece algo que abala mais a cultura indígena do que a saúde ou a educação? Você chega em um lugar em que está um índio doente com malária e ele acredita que aquela doença da malária vem por causa de um feitiço”, diz. “Ao dar o remédio para a malária você fala que ela é causada por um mosquito que picou e transmitiu a doença, você está mostrando para ele que a crença dele era equivocada”, completou Eduardo Luz.

“Discutir a presença de missionários evangélicos em comunidades indígenas brasileiras é também o assunto principal do documentário brasileiro ‘Ex-Pajé”, do diretor Luiz Bolognesi.

O filme conta a história de Perpera Suruí, pajé do Território Indígena Paiter Suruí, na fronteira de Rondônia com Mato Grosso. A atuação de pastores evangélicos contra as crenças tradicionais, tirou a função de Suruí e fez com que ele deixasse de receber remédios, bolsa de assistência social e carona para a cidade.

O documentário foi vencedor do prêmio Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) de melhor Documentário de longa ou média-metragem da Competição Brasileira do Festival É Tudo Verdade.

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