Os massacres em Suzano e Realengo e a mentalidade de extrema-direita: sites de jornalismo independentes mostram, há anos, a ligação entre o pensamento de seus membros anônimos e da alt-right americana, nacionalizada pelos simbolismos dos Bolsonaro
O Brasil agora tem dois grandes massacres com armas de fogo com um ponto-chave em comum: os atiradores que protagonizaram os assassinatos em Realengo (2011, 12 mortos) e Suzano (13 de março de 2019, com 8 vítimas fatais) interagiam e foram influenciados por grupos de ódio da chamada “dark web”, onde transitam todo tipo de ataque contra negros, portadores de deficiência, homossexuais e, sobretudo, mulheres.
Os últimos atiradores, de Suzano, Guilherme Taucci Monteiro, 17 anos, e Luiz Henrique de Castro, 25, teriam deixado rastros no fórum Dogolachan.
Saiba mais: Atiradores de Suzano viram heróis em fórum brasileiro de extremistas
O portal R7 conseguiu mergulhar no chan (nome dado a fóruns do tipo anônimo, geralmente não indexados pelo Google, ou seja, parte da “deep web”, mas nem sempre da “dark web”, que é a camada essencialmente criminosa) e resgatar mensagens de um perfil administrador confirmando ter sido procurado pelos dois jovens.
O mais velho dos assassinos teria conversado sobre o acesso a armas de fogo e outros equipamentos e o outro, enviado mensagens de agradecimento pelas dicas de como levar um atentado em local público a cabo, nos dias que antecederam o tiroteio.
As razões do massacre, que teve até trilha sonora inspirada no episódio americano, em Columbine, não foram reveladas pelo membro do chan, embora ele diga textualmente que foi ombro amigo para os dois jovens a ponto de considerá-los “injustiçados” e “vítimas” de bullying e frustrações da vida.
As autoridades estão tocando as investigações do novo caso. Enquanto isso, críticos do atual governo não conseguem dissociar a tragédia em Suzano do decreto da posse de armas de Jair Bolsonaro e de sua promessa de facilitar ainda mais o porte em todo o País.
Irônica e sintomaticamente, na mesma manhã em que os atiradores tiravam a vida de 5 alunos, 2 funcionárias da escola e do tio de um deles, em São Paulo, Jair Bolsonaro, de Brasília, falava em antecipar o envio ao Congresso do projeto de lei que vai armar a população como forma de combater a violência.
Mas não é só na questão das armas que os massacres refletem as bandeiras da família Bolsonaro. Há toda uma mentalidade intolerante, supremacista e misógina – que casa com o discurso de grupos da extrema-direita no Brasil, da mesma forma como ocorre com os chans e a alt-right estadunidense – permeando fóruns de onde saíram os atiradores das duas histórias.
Nas profundezas do ódio: Dogolachan
Para entender o que pode ter passado na cabeça dos atiradores nos dois massacres, uma revirada nas entranhas do que é e o que representa o Dogolachan.
O Dogolachan foi criado em 2013 por Marcello Valle Silveira Mello, o primeiro brasileiro a ser acusado por crime de racismo na internet, em 2009. Não teve punição dura porque passou atestado de “insanidade mental.” Em 2012, foi alvo de outra Operação, batizada de Intolerância, e ficou apenas 6 meses preso.
Relembre:
2012: Blogueiro e amigo racista, homofóbico e anticomunista são preso pela Polícia Federal
2012: Internauta preso por racismo e homofobia já havia espancado a própria mãe
2015: Eles defendem a “legalização do estupro e da pedofilia” e continuam impunes
Quando solto por um indulto, Valle foi expulso de outros fóruns e acabou criando seu próprio chan. Em maio de 2018, depois de quase 5 anos fertilizando todo discurso de ódio contra minorias no Dogolachan, ele foi preso novamente no Paraná, na Operação Bravata.
Disso decorreu uma demonstração do alcance da mentoria de Valle: um mês após sua prisão, um moderador do grupo anunciou que iria se matar e foi incentivado pelos “confrades” a levar mais gente junto. Resultado: o moderador perseguiu uma garota que nunca tinha visto antes, insistiu com ela num encontro a dois e, depois de ser rejeitado, atirou na nuca da moça e, na sequência, se matou com um tiro no peito.
Depois disso, segundo relatos da professora Lola Aronovich – a feminista por trás do blog “Escreva, Lola, Escreva” é um dos alvos favoritos de Marcelo Valle e sua gangue virtual há anos – o Dogolachan acabou migrando para a “dark web” e ela não conseguiu mais acompanhar o fórum.
Mas os quatro anos em que leu as postagens dos participantes renderam a seguinte mensagem, publicada por Lola na tarde do massacre em Suzano.
“(…) posso dizer que não houve um só dia em que os membros não fantasiavam com o dia em que teriam acesso livre a armas de fogo. Todos votaram em Bolsonaro, o candidato que lhes prometia isso. Eles sempre falavam em cometer massacres. Suponho que a tragédia de Suzano não seja surpresa nenhuma pra Polícia Federal.”
Vice e Ponte Jornalismo são dois portais que há alguns anos acompanham as ocorrências envolvendo Valle e os garotos influenciados por seu chan a transformar ódio em mortes, seja exterminando a “escória” ou tirando a própria vida. Ou os dois, como em Realengo e Suzano.
Segundo a Vice, imediatamente após a chacina na escola Rui Brasil, os “chanero” lamentaram que os dois atiradores “não conseguiram ultrapassar o número de mortos do Massacre de Realengo.”
Somente em 2012 foi que as autoridades descobriram que Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, que executou 10 meninas (todas com tiros na cabeça) e 2 meninos (baleados em outras partes do corpo) fora influenciado no Massacre de Realengo pela seita criada por Marcelo Valle em associação com Emerson Eduardo Rodrigues Setim. Da “Homini Sanctus” onde descende o Dogolachan.
Em maio de 2018, a Vice publicou:
“Os Homini Sanctus propagavam sua mensagem através de fóruns, chans e sites criados estritamente para o fim de causar revolta aos internautas e gerar grande atenção e tráfego. Era o modus operandi mais conhecido dos trolls brasileiros que jamais davam as caras em público para destruir o que eles pensam ser os verdadeiros inimigos do homem: mulheres. Wellington mudou o jogo levando isso para a vida real e dando um exemplo nefasto para jovens que até então eram apenas pessoas tristes e perturbadas escondidas por trás de uma tela de computador.”
Ponte Jornalismo, em 2017, aprofundou as motivações:
“Dogolachan reúne homens que têm raiva de muita gente: negros, gays, lésbicas, trans, esquerdistas, judeus… Mas nenhum ódio merece tantos posts e desperta uma torrente tão caudalosa de ofensas quanto o ódio que sentem pelas mulheres. No fórum, criado em 2013, os usuários culpavam as mulheres pelos fracassos pessoais. Se julgavam vítimas do sexo feminino e, principalmente, do feminismo, por não conseguirem nutrir relacionamentos amorosos e sexuais, já que as mulheres nunca se interessariam por homens ‘legais’ e ‘de bem’ que nem eles.”
Sem sucesso num relacionamento na vida real, os “confrades” trocam nos chans algumas dicas sobre como abordar meninas (menores de idade são mais fáceis de dominar com a força física) “brancas”, bonitas e com boas condições socioeconômicas (não querem miscigenadas ou negras e pobres) para aplacar o desejo de tocar as genitais, os seios e a boca de uma “lolita”. Pedofilia, como se pode imaginar, estava no cardápio.
Em paralelo às monstruosidades que discutiam internamente, Marcelo Valle tinha como modus operandi usar o nome de seus desafetos em ações de assassinato de reputações. Foi o que ocorreu com Lola e seu marido em 2015, quando o criador do Dogolachan lançou um um site falso, atribuído à professora, “defendendo absurdos desde o infanticídio de bebês do sexo masculino, queimas de Bíblias e denúncias de que Lola fez um aborto em uma de suas alunas numa sala de aula da UFC”.
“Em uma caso emblemático, criaram um site que postava imagens de pornografia infantil e o vincularam ao esposo de Lola – nomes ilibados da extrema-direita nacional, como os cantores Roger e Lobão, se prestaram a espalhar a mentira”, anotou a vide.
Para Lola, Suzano foi claramente a reprodução do que ocorreu em Realengo. “Nós avisamos o que iria acontecer se liberassem armas. Bolsonaro, você tem sangue nas mãos”, escreveu no Twitter.
A Vice explicou como esses grupos de ódio atraem os chamados “incel”, contração de “involuntary celibates”, que pode ser traduzido como “celibatários involuntários”.
Nos Estados Unidos, onde os massacres em escolas são relativamente mais recorrentes, o conceito de incel não é tão desconhecido, e está associado a “ativistas dos direitos dos homens (Men’s Rights Activists, em inglês) e os próprios jovens que se identificam como alt-right (muitas vezes são a mesma coisa).”
O americano Dale Beran escreveu a respeito do “4chan” – o fórum é o “coração da alt-right” estadunidense e uma das plataformas de apoio a Donald Trump e às teorias de Steve Bannon – que se trata de “homens sem emprego, sem perspectivas na vida e, por extensão (como eles declamavam), sem namoradas. (…) Em consequência de seu fracasso, o conceito distante e abstrato de mulheres de carne e osso provoca neles sentimentos de humilhação e rejeição.” Ponte Jornalismo notou que a descrição serve para o Dogolachan.
“O racismo e a misoginia que os Dogolachan despejam na internet não são a do homem branco que se vê como membro de uma casta superior. Ao contrário, são o racismo e a misoginia de seres que se vêm como inferiores: como dizem em vários posts, os anônimos do fórum se acham mais feios, mais patéticos, mais gordos ou mais pobres do que seus semelhantes. Talvez por isso, enxerguem na sua identidade de homem branco a última possibilidade para se agarrar em busca de algum fiapo desesperado de amor-próprio. Como que saudosos de um tempo mítico em que teriam acesso às mulheres do mundo apenas pelo fato de serem homens e brancos, os jorges do Dogolachan passam a lamentar a “decadência da civilização ocidental” por dar poder às minorias.”
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