O pai mãe é o preparador do novo mundo para sua cria: um mundo de justiça, de colaboração, de generosidade. Um mundo sem nenhum dos malefícios da desigualdade.
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
O pai é uma invenção e seu lugar de poder, um hábito e uma gesta. O lugar do pai, com seus privilégios, suas ordens, seus misteres e suas verdades deve vagar diante do tempo já excessivo do seu reinado. Porque o pai está apegado aos determinismos do gênero. Nesse sentido, é uma degeneração do humano, uma redução de sua humanidade, de sua condição de humano terra, um ser vivo que está ligado a toda forma de vida, sem distinção, sem hierarquia, sem poder. Só o pai pode recusar esse lugar velho e desgastado. Pode e deve abandonar sua postura enfezada de senhor.
O pai só nasce depois que nasce a sua cria. Sua cria é sua criação?
Uma outra paternidade pode emergir: são os pais cuna. É um tipo de pai que é mãe também, pois reivindica pra si um papel ativo no cuidar dos filhos.
Já é um doulo passivo, um auxiliar admirado no parto. Mas é bem verdade que muitos pais se encantam com o parto, como parte de uma forma de companheirismo de primeira viagem. É preciso ir muito mais longe para esse tempo de pouco afeto, pouca afeição e muitos presentes.
A relação entre as pessoas é a forma manifesta do pensamento ação que naturaliza e viabiliza as condições de hierarquias do patriarcado. As conexões, por outro lado, são as formas energéticas que ligam os seres nas planuras horizontais do afeto e do amor, cuja manifestação é sempre das energias leves e acolhedoras. As relações são as escadas enquanto as conexões se estendem para romper os horizontes.
O pai cuna é o construtor da cuna. A cuna é um berço adaptado à cama do lado da mãe, sem a grade de proteção para vincular como uma extensão da própria cama. O desimpedimento da grade agora une o bebê à mãe. Mas é o pai quem promove essa união rompendo o isolamento a que muitas crianças são condenadas já no berço.
O pai cuna constrói a cuna que aproxima em simbiose os três corpos numa só cama. O pai cuna renasce com o nascimento do filho, da filha. E a cada nascimento, nasce um novo pai. Universos que se encontram na aurora de uma nova jornada. Mas uma jornada que será conjunta desde a primeira infância.
O pai cuna deve construir a cuna e, uma vez descartada, deve doar para um outro pai com uma única mensagem: a partir de agora tua jornada não será mais solitária. Será conduzido por esse ser que nasce nesse tempo.
A cuna pode ser construída de caixote de feira, desses de madeira com encaixe para as mãos nas laterais e bordas sextavadas. Basta retirar uma das laterais e fixar na cama. Um acolchoado confortável e quando esse bebê sentir a falta do leite, basta a mãe virar-se para ele ofertando o seio.
Quando sentir a falta do pai, este deve enlaçar o filho num colo aconchegante e o embalar noite afora, noite adentro.
O pai cuna nutre um sentimento de eterna gratidão por esse momento com sua cria. Jamais reclama, jamais emana um sentimento de renúncia, de arrependimento, de ansiedade, pois a cria compartilha cada sentimento que trocam.
O leite da mãe e o sentimento do pai cuna é a composição que nutre a cria.
O trabalho não pode retirar dessa composição nenhum teco de tempo, pois esse é o tempo do serviço, do servir a cria e a mãe. Se o pai serve, nutre sua cria e a se mesmo nutre, já que no servir se cura com esse jorro de energias leves.
O cansaço não pode impedir que o pai cuna realize esse envolvimento com sua cria. Esse envolvimento será eterno em cada momento daí em diante. O pai cuna sofre uma metamorfose nesse período de sua vida. É seu momento de engravidar e durará nove meses, como o foi o da mãe. Esses nove meses são cruciais para que toda a metamorfose de complete. Ele deixa de ser um ser do gênero masculino e se torna um pai mãe, por intermédio do pai cuna. O pai cuna é o transporte para a metamorfose completa do pai mãe.
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Para isso, o pai cuna precisa emanar exclusivamente alegria e felicidade. Deve submeter seus pensamentos aos sentimentos. Os sentimentos transportam energias leves e comunicam todos os seres vivos. O ser agora vivente também se comunica pelos sentimentos.
O pai cuna transgrediu as regras do gênero e foi migrando, pelos sentimentos, para uma região de amor incondicional. Vai percebendo que o amor incondicional é o amor sem condições, é o respeito absoluto pelo outro, por qualquer outro, mas chega a isso por seu vínculo magnífico com sua cria. Vínculo de sentimento, vínculo de amor.
Depois de nove meses, já será um pai mãe, pois migrou em sua jornada rumo ao amor incondicional.
Tudo começou com a feitura da cuna, essa pele que se estende pelos três corpos e os integra numa colônia amorosa, num presépio de paz, em que todas as noites se encontram para o servir, para doar, para receber. Todas as noites a intensidade do amor.
O pai cuna jamais reclama, jamais titubeia, jamais recusa o amor de sua cria e mesmo com a exaustão do cotidiano, do trabalho, das noites mal dormidas, o pai cuna não recusará o amor de sua cria. Estará lá no momento preciso em que ele for oferecido. Assim se metamorfoseará e se tornará um pai mãe sem gênero.
O pai cuna não é o provedor material, mas é o provedor do amor que vem com os sentimentos que por ele medra como fonte e se amplifica ao encontrar os sentimentos da mãe e da cria. A circularidade sentimental cria um vórtice amoroso que facilmente espirala e muda de dimensão. O pai cuna deixa de ser o provedor material e se torna o provedor do amor incondicional com sua cria. E essa será só a primeira experiência do pai cuna no mundo em que prevalece o amor incondicional. Pois o amor incondicional é o respeito, a aceitação do outro como ele é e não como gostaríamos que ele fosse, a abolição de todos os preconceitos, a recusa ao julgamento. O pai cuna aprenderá tudo isso com sua cria, fonte de toda sua criatividade.
O pai cuna não se preocupa com presentes, só com os sentimentos. Não deixa de ter seus afazeres, mas pelo contrário os amplifica, aderindo também aos afazeres domésticos entre suas atribuições. Mas em cada momento, flui em sentimentos a comunicação com seu núcleo de afetos. Afeta e é afetado por sua cria. Sente, quando lhe oferece o colo, a energia circulante da cria e de si. Sente porque vibra alegria e felicidade em tempo integral e ao emanar esse bem-estar energético, também suas outras atribuições, bem menos encantadoras, serão afetadas.
O pai cuna é, em sua união com sua cria, o gerador da egrégora colaborativa. Atrai energias espirituais atenciosas e cuidadoras. Quando completar sua metamorfose, será um outro ser vibrante e entusiasmado com a vida, em gratidão virtuosa à egrégora que ajudou a gerar e que o acolhe amplificando os benefícios de uma vida boa.
A vida boa é a simplicidade. Na simplicidade não se doa todo o tempo ao trabalho, não se esforça para ganhar mais, não se preocupa com o sucesso da cria. É o afeto que prevalece, o carinho, o cuidado, a circularidade de energias leves envolvendo a todos e a nenhum desenvolvendo, a nenhum separando, a nenhum afastando.
O pai mãe se afastará do patriarcalismo e se unirá com a mãe com um vínculo de compartilhamento. Pela sua metamorfose, o pai mãe não é machista, chauvinista ou muito menos misógino. O pai mãe é tranquilo em sua jornada sempre rumo ao presente. E com a mãe compartilham tarefas, dúvidas, apoios, defeitos, desejos, serviços.
Vivem para satisfazer as necessidades do presente e procrastinam sempre que a afeição clamar urgências e a atenção for solicitada.
A mutação do pai mãe o afasta dos valores da classe média. Querem nutrir o seu círculo com os valores da colaboração, do pertencimento, do cuidado. O pai mãe é como o lobo, gregário com sua família, atencioso com sua cria e implacável com as ameaças. E as ameaças são sempre o egoísmo, a competitividade, a segurança em nome do futuro, o dinheiro. Esse novo pai não está preocupado com o sucesso do filho, mas com seu bem-estar, com seu afeto, com a confiança que só o amor promove. Não é mais o pai ensinador, mas é unicamente o doador generoso das energias leves, é o pai curador que altera todo o social em prol de sua cria. Recusa a ideia do mal do mundo em favor de seus benefícios e assim constrói também um novo mundo, em que tudo é bom desde seu nascimento. Essa bondade será o combustível da inteligência. Sabe, intuitivamente, que ser bom é a expressão das energias leves que emana. Ser bom é um sentimento inconsútil que alinhava toda forma de vida. Ser bom é ser amoral com uma realidade que instila ser injusto e convida incessantemente a se enfiar no mundo seres desumanos e desprovidos de sensibilidade. Ser bom é recusar a frieza da racionalidade e dar vazão ao caos dos sentimentos. Ser bom é deixar livre o fluxo da imprevisibilidade, pois desde o nascimento o humano terra já sente o fluxo das energias leves que tudo contagia. Ser bom é um sentimento interior que extravasa e expande novos universos. Ser bom é não construir jamais resistências diante do fluxo da vida.
Esse pai que nasce do amor incondicional é o pai da autonomia, aquele que recusa submeter a si mesmo e aos outros, que recusa a heteronomia como regra social de um mundo injusto.
Uma sociedade patriarcal reproduz sua desigualdade no nascimento da filha, do filho. O pai é o reprodutor da injustiça que depois beneficiará o sistema. Mas o pai não faz isso sozinho. A mãe pai é corresponsável pela geração que irá servir ao sistema, como opressores e como oprimidos. Ambos ensinam a submissão, o certo e o errado para nutrir um mundo injusto, a moral, a ética desse mundo. A ética diz que a desigualdade é natural. A moral diz que isso está certo. E que é errado não preparar o filho, a filha, para esse mundo desigual.
O pai cuna é a incubadora de um novo mundo, em que a cria nutre o pai cuna a criar um novo modo de se relacionar.
O mundo da criatividade criado pela cria que cria o pai cuna e o metamorfosear para o pai mãe supera a dualidade pai-mãe.
O pai cuna aprende com sua cria que não é o ensinador do velho mundo, mas o aprendedor do sentimento como forma comunicativa de troca, simbiose, gestação, criatividade. Aprende a viver o imprevisível que o amor incondicional acolhe. Aprende a recusar o futuro como moeda da vida. Aprende que o tempo é só o tempo de amar.
Aprende com sua cria nos nove meses em que vai construindo e nutrindo sua cuna.
A mãe pai, por sua vez, aprende que não pode haver tolerância ou resiliência, que também é causa da gestação de sua cria, do fluxo que nega a dualidade homem mulher como parte da geração da sociedade desigual. Então, abandona seu papel de coprodutora do mundo da desigualdade em nome do amor incondicional que flui do ninho de afetos da cuna.
O caminho de criatividade não mais aceita nenhuma forma de submissão, pois não mais aceita submeter. Será desnecessário ofertar à cria um animal de estimação como símbolo de toda submissão que também é fruto de afetos. Pois ensinamos a submissão pela afeição ao domínio, à posse, ao júbilo de um mundo de objetos que está à nossa disposição.
O pai cuna se recusa a ensinar ao filho, à filha, o seu lugar no topo da cadeia alimentar. Abandona as certezas de um mundo que transforma tudo e todos em objetos, para as infinitas possibilidades que a incerteza liberta.
Em algum momento de sua peculiar transitoriedade, o pai cuna deixa de nutrir o centro nervoso da família nuclear burguesa e abdica dos pronomes possessivos MINHA MULHER, MEU FILHO, MINHA FILHA. Então pode se abrir para as inesperadas paisagens da família extensa, em que a cria lança suas conexões para muito além de seus afetos e encontra a tribo, a comunidade, o mundo. Aí estará aberta para os encontros com universos possíveis e impossíveis.
O pai cuna é o berço de um novo mundo pois junto a sua cria inunda de amor o seu mundo e faz isso porque pode fazer, porque compreende que é ele o gestor de sua própria vida.
O pai mãe é o acolhedor condivíduo que não se individualiza jamais. Não se sujeita, pois não é sujeito e não mais sujeita. Não se separa e se integra no círculo dos afetos. Doa o que tem de melhor, o amor. E por isso nunca é um sofredor. Está sempre bem e de bem com a vida boa.
A cuna é o ninho de onde nascerá o pai mãe.
É chegado o tempo do nascimento de uma outra paternidade. O novo pai transgride o lugar que lhe é atribuído pela sociedade patriarcal e recusa seus falsos privilégios do poder em nome do privilégio de amar incondicionalmente.
O pai mãe é o preparador do novo mundo para sua cria: um mundo de justiça, de colaboração, de generosidade. Um mundo sem nenhum dos malefícios da desigualdade.
Viva o pai cuna! Viva o pai mãe!
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e permacultor
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