França começa a expulsar pessoas trans soropositivas originárias da América do Sul que vivem há muitos anos no país. “Fiquei sem entender. Como que uma pessoa que mora aqui há dez anos recebe uma carta para deixar o território em 30 dias? Isso desabou o meu mundo”, desabafa uma das atingidas
O governo francês vem emitindo ordens de expulsão a vários soropositivos originários da América do Sul que vivem há vários anos na França, boa parte deles transexuais. Entre as nacionalidades principalmente visadas estão cidadãos do Brasil, Peru, Argentina e Equador.
Segundo a associação Autres Brésils, uma pessoa transexual já foi reenviada ao Brasil e outra está em vias de expulsão, entre os cerca de 20 cidadãos brasileiros que receberam ordem de deixar o solo francês.
“Fiquei sem entender. Como que uma pessoa que mora aqui há quase dez anos pode receber uma carta para deixar o território em 30 dias? Isso desabou o meu mundo!”, conta Mônica, de 40 anos, transexual e trabalhadora do sexo.
A pernambucana de 40 anos chegou à França em 2009, onde recebeu um visto temporário de permanência na qualidade de “estrangeiro doente”, podendo receber tratamento gratuito contra o HIV. A doença foi contraída quando Mônica era adolescente, deixou a casa da família no interior do Estado e começou a se prostituir em Recife.
À RFI, ela contou que veio para França na esperança de poder mudar de vida e pode usufruir do tratamento de ponta contra o HIV que o país oferece, mesmo para pessoas em situação irregular. No entanto, em 2017, seu pedido de renovação de permanência na França foi rejeitado.
Na ordem de expulsão enviada pelo Ministério do Interior, a justificativa é que nenhuma atividade remunerada foi registrada nos anos de permanência da brasileira na França e que o sistema de saúde brasileiro também oferece tratamento contra o HIV. Mas Mônica contesta: “no Brasil não é igual aqui”.
Ela afirma que no Brasil o sistema de saúde não dá prioridade aos pacientes soropositivos. “Tive que esperar três meses para fazer uma ressonância magnética”, lembra Mônica que também sofre com uma hérnia de disco. No hospital público de Ambroise-Paré, na periferia de Paris, a pernambucana recebe toda a assistência que necessita sem longas esperas, como manda o protocolo com as pessoas com HIV.
Desesperada, sua primeira reação foi se isolar em casa. Sem saber como agir, entrou em depressão, ganhou peso e viu sua imunidade baixar. Com a ajuda da associação parisiense de apoio aos transgêneros, trabalhadores do sexo e migrantes Acceptess-T, Mônica está recorrendo da decisão na Justiça e diz que vai fazer tudo o que for possível para permanecer na França. A pernambucana também teme ter que voltar ao Brasil em um momento em que a violência contra a comunidade LGBT está em aumento.
“Todas nós, o que queremos, é um trabalho. Essa vida de trabalhadora de sexo não é fácil. Mas, infelizmente, dependemos disso para sobreviver. Não falo apenas por mim, mas por muitas amigas que querem essa mudança na vida, que querem apenas um trabalho aqui”, diz.
Cerca de 20 brasileiros podem ser expulsos
Casos como os de Mônica vêm se multiplicando na França desde 2017. Segundo informações da associação Autres Brésils, uma pessoa transexual brasileira já foi expulsa e outra está em vias de expulsão.
A associação de apoio aos transgêneros Acceptess-T acompanha atualmente cerca de 50 pessoas soropositivas que receberam a ordem de deixar a França, entre elas, cerca de 20 são originárias do Brasil, afirma Giovanna Rincon, diretora da Acceptess-T.
Em entrevista à RFI, Rincon indica que decretos adotados em 2016 na lei francesa sobre os direitos dos estrangeiros modificaram o funcionamento de um dispositivo até então exemplar na França. Ele permitia que estrangeiros com doenças graves e impossibilitados de receber tratamento em seus países de origem pudessem ter sua permanência autorizada.
Além disso, antigamente, as demandas de permanência para tratamentos de saúde eram analisadas por médicos de agências regionais ligadas ao Ministério da Saúde. Atualmente cabe a profissionais do Escritório Francês de Imigração e Integração, que faz parte do Ministério francês do Interior, avaliar os casos antes de o Departamento de Imigração dar o aval final.
“Questionamos qual é o conhecimento desses médicos sobre os sistemas de saúde nos países dessas pessoas que receberam ordem de deixar a França”, protesta Rincon. Segundo ela, medicamentos antirretrovirais de última geração utilizados contra o HIV nos hospitais franceses ainda são inexistentes em vários outros países. “Não há nenhuma garantia de que essas pessoas terão continuidade em seus tratamentos fora da França”, reitera.
A diretora da Acceptess-T conta que no ano passado acompanhou dois médicos do Hospital Bichat, de Paris, a uma missão em dois estabelecimentos de referência no tratamento de pessoas transexuais com HIV no Brasil, a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, e o Centro de Referência e Treinamento DST/Aids, em São Paulo.
“Eles mesmos nos confirmaram que no Brasil não há uma política nacional para o tratamento dos soropositivos transexuais e muitas problemáticas relacionadas às questões de modificações corporais devido às hormonoterapias, além de doenças relacionadas a problemas no metabolismo dos pacientes que mudaram de sexo, não são consideradas. Por isso, há muitas complicações e mortes”, afirma.
Desrespeito aos direitos dos doentes
A ONG francesa Aides, membro da coalizão internacional de luta contra a aids, protesta contra a decisão do governo francês de expulsar as pessoas soropositivas em pleno tratamento. “Para nós, é uma degradação insuportável do direito das pessoas doentes”, afirma a responsável jurídica da Aides, Caroline Izambert.
Segundo ela, o principal objetivo do Ministério francês do Interior com a medida é principalmente tentar limitar e controlar o fluxo migratório. “É uma nova forma de analisar os pedidos de estrangeiros para viverem na França. Recusando o máximo de pessoas, emite-se menos documentos de permanência. Assim, eles podem anunciar orgulhosamente depois que a França foi rígida na questão da imigração”, avalia.
Izambert lembra que há na França a propagação da falsa ideia de que os pedidos de permanência são feitos por estrangeiros que vêm ao país para realizar o tratamento contra o HIV. “O conjunto das pesquisas mostra que a maioria dos estrangeiros com aids na França ignoravam que viviam com o HIV. Uma outra pesquisa recente e incontestável mostra que a metade dos estrangeiros com aids na França foram contaminados em solo francês”, ressalta.
A responsável jurídica da Aides reclama que a decisão do governo francês complica o trabalho de luta contra o HIV no país. “Até há pouco tempo, podíamos dizer às pessoas qual era o estado da jurisprudência, quais eram as determinações em relação aos países de origem e a situação destas pessoas sobre as possibilidades de que o dossiê médico delas daria direito de obter um documento de permanência para tratamento. Hoje não podemos dar mais nenhum tipo de garantia a ninguém. Isso coloca em risco o objetivo dessa iniciativa que até então era de saúde pública”, afirma.
Izambert também critica o desdém das autoridades francesas em relação à deterioração dos direitos LGBT no Brasil. “O país está mudando e é preciso ser cego e surdo para não perceber o risco de expulsar essas pessoas. O fato de que isso não seja levado em consideração na avaliação dos pedidos de permanência para o tratamento contra a aids me parece absurdo”, reitera.
A associação de apoio aos transgêneros Acceptess-T criou uma célula de acompanhamento especial para os destinatários da ordem de expulsão com atendimento jurídico e a disponibilização de advogados para contestar a decisão diante da Justiça francesa. Já a associação Autres Brésils notificou a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, sobre os casos de cidadãos brasileiros ameaçados pela decisão. Afirmando desconhecer a medida, Hidalgo prometeu intervir junto ao Ministério do Interior e ao Ministério da Saúde da França.
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Daniella Franco, RFI
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