Redação Pragmatismo
Saúde 15/Mar/2019 às 20:31 COMENTÁRIOS
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Suicídio acontece mais entre as classes médias do que entre pobres

Publicado em 15 Mar, 2019 às 20h31

Para cada suicídio bem-sucedido, cerca de cem fracassam. Isso oculta um dado impossível de ser quantificado: aqueles que pensam na morte voluntária é da ordem de 30% da população global. Entender esse fenômeno é uma tarefa importante

Suicídio acontece mais classes médias e menos entre pobres
Imagem: Reprodução

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Para uma sociedade que cultiva os valores de thanatos, o suicídio é perfeitamente razoável e filosoficamente defensável.

Segundo a OMS, de 800 mil a um milhão de pessoas tiram a própria vida a cada ano no mundo. Uma a cada 40 segundos.

Uma vista d’olhos nos dados confirmam que o suicídio acontece mais intensamente entre as classes médias e menos entre os pobres. Talvez porque os pobres aprenderam a colaborar mais e a sentir compaixão pelo seu vizinho. Os homens se matam mais que as mulheres.

Para cada suicídio bem-sucedido, imagina-se que cem fracassaram. Isso oculta um outro dado impossível de ser quantificado: aqueles que pensam na morte voluntária é da ordem de 30% da população global.

Entender esse fenômeno é uma tarefa importante, pois não podemos lidar com essa energia gigantesca como se o supliciado fosse alguém que não sabe o que está fazendo. Daí que os mecanismos sociais e os mecanismos internos devem dialogar para que a compreensão possa assumir um lugar possível nas forças da vida, uma chance a que eros possa ser conhecido.

A compaixão é uma compreensão do estado emocional do outro. Não é empatia, mas frequentemente combina com o desejo de demonstrar gentilmente que o sofrimento do ser senciente me afeta.

A primeira questão importante é saber o que é a vida.

A melhor definição que conheço foi apontada pelo biólogo Humberto Maturana que a nomeou com um neologismo, autopoiesis, que se cria sozinho.

“Os seres vivos são sistemas autopoiéticos moleculares, ou seja, sistemas moleculares que se autoproduzem, e a realização dessa produção de si mesmo como sistemas moleculares constitui a vida”.

Os seres vivos“, acrescenta, “mantêm sua forma mediante o contínuo intercâmbio e fluxo de componentes químicos“, que são criados pelo próprio corpo.

Além de uma definição para a vida, Maturana e Varela também explicam o que é a morte.

A autopoiesis, diz Maturana à BBC, “tem de ocorrer continuamente, porque quando ela para, nós morremos“.

Na definição listada pela enciclopédia britânica, autopoieses: “Ao contrário das máquinas, cujas funções de controle são inseridas por projetistas humanos, os organismos governam a si próprios“.

Portanto, há convergência entre essa definição e as funções da homeostase, processo que também ocorre a partir das células e que regulam todo o sistema vivo. Um se recria e o outro se cura. Então a vida se cria sozinha e se cura sozinha. Se não atrapalharmos, claro.

Então, se o organismo não mais se recriar, ele morre…ou deseja perecer. Aqui estamos no coração do problema do suicídio.

Como o sistema vivo deixa de emergir de sua vida para se debruçar sobre a entropia.

Para entendermos a aproximação desse estado precisamos retomar o grupo que mais tende a se matar voluntariamente: os trinta por cento da humanidade. Não coincidentemente os trinta por cento inclusos no sistema.

Em outras palavras, a classe média é o grupo social cuja preferência é a morte.

O que é a classe média?

O próprio motor do capitalismo contemporâneo. Dois bilhões e meio de indivíduos cuja única finalidade é vencer.

Mas qual a luta que efetuam? Contra a própria classe média. Lutam contra os filhos, os cônjuges, os pais, os professores, os alunos, os patrões, os colaboradores. Uma luta perpétua contra os semelhantes.

Não por acaso essa luta se transforma em pré-julgamento, preconceito, racismo, homofobia, subserviência, bulling, inveja, ambição, covardia, traição…poderia continuar enumerando toda resultante do sofrimento que é pertencer a esse grupo social.

É o grupo preponderante do consumo de medicamentos, de drogas, de lenitivos, de toda sorte de porcarias para suportarem a miséria de suas vidas.

Vivem solitários, inseguros, nutrindo o ódio e destilando o ácido permanente que invade o organismo e também o acidifica.

O que acontece com um corpo quando se acidifica. Um ambiente ácido é um ambiente propício à propagação de toda sorte de doenças. E é um ciclo interminável, pois esse organismo pede medicamentos e esses medicamentos acidificam o organismo até que a exaustão sinalize pelas urgências da finalização.

A competência, a competitividade, o desempenho, a colaboração, a eficiência, são sintomas da exaustão a que esse grupo está destinado. Desde jovens são movidos por sonhos alheios. Estão sempre tão acessíveis que consomem esses sonhos quase sem resistência e transferem para a geração seguinte desejos sistêmicos.

Desejos sistêmicos são emblemas e sonhos de sucesso que as pessoas importam como valores. São promessas que se herdam dos mais velhos no uso do poder. São empoderamentos.

Todos os valores e sonhos aqui imaginados são formas de poder. São biopoder e as formas de governabilidade institucional do corpo, micro poder das relações sutis de afetação e empoderamentos variados em sua forma mais destrutiva e letal. É o poder o capital da herança. E é ele que entra e entroniza do hospedeiro. Mas ao mesmo tempo em que entra, que internaliza, o poder retira do interior do indivíduo um dispositivo fundamental de fruição: e o faz com pequenas quantidades que são suficientes para impulsionar o hospedeiro em busca de seus sonhos. Então vai retirando pedaços de autopoiesis como forma de se alimentar como um vampiro daquele que o acolheu. A autopoiesis e a homeostase, lembremos que são habilidades dos organismos para recriarem e se curarem impulsionando o imperativo da vida. Então, com mais dia menos dia, esse dispositivo vai funcionando de modo capenga. Isso mina o hospedeiro e vai perdendo o encanto pela vida, assediado por toda sorte de patologias em graus variados.

Angústias, medo, ansiedade, depressão, cansaço, desilusão, desencantamento, solidão, abandono, insegurança, pavor, horror, demência, loucura, isolamento cada vez mais profundo entre seus semelhantes, tudo isso tem um peso na jornada pela vida. Esse peso só cresce em momentos variados, pois o sucesso, as vitórias, as realizações, as compras, os bens, as casas, os carros, o brilho, tudo isso vai produzindo a gangorra emocional que leva a uma vida miserável.

Leia aqui todos os textos de Eduardo Bonzatto

Enquanto escrevo esse texto encontro a notícia do massacre em Suzano. Sabemos pouco sobre os que tiram a própria vida, como se esse saber tivesse o poder do contágio venenoso. Normalmente não testemunhamos o gesto, mas vez por outra alguém torna a sua imolação um martírio coletivo. O componente do espetáculo não está fora desse tempo de sofrimento. Como se gritassem seu direito póstumo de entrar pra história, ter o seu nome inscrito no hall das danações.

Mas essa vida miserável também é herdada. Os filhos recebem de seus pais parte do caminho já cumprido. Recebem uma carga de honorários variáveis que devem cumprir e pagar.

Nosso sistema vital em sofrimento e perecimento vai enfraquecendo e deixando de municiar com os florescimentos da homeostase.

Aí a dor engrandece e vai se tornando insuportável. A solidão então assume seu aspecto mais sombrio de abandono e corta o fornecimento do amor como se fosse o ar. O desespero toma outra proporção e a escuridão cai sobre o mundo. Dentro desse humano, um buraco agora é já tão gigantesco que a única porta de acesso é o suicídio. Sob o peso da grande herança de thanatos, eros se esvai e só fica o desamor de si, do mundo.

Antígona é uma tragédia acerca da manifestação dessa morte desejada pelo impulso externo. Até que ela tire a própria vida, uma sequência de trágicas complicações em que todas as decisões levam ao inevitável fim. Mas as tragédias gregas são de uma simbologia que hoje já não encontramos espelho diante do enorme buraco em que se transformou o cotidiano.

Hoje as decisões são mecanismos de aceitação e a rebeldia terminou seu mandato social há pelos menos trinta anos.

O neoliberalismo transformou qualquer gesto de rebeldia num catálogo de consumo.

Consumir pra fora é consumir por dentro e na mesma medida que um sem fundo do desejo suga tudo, vai minando o movimento em metamorfose da autopoiesis.

Se a suficiência fosse o movimento exterior, com o desapego, a fluência da vida se expandiria em alegria e felicidade. Suficiência é prosperidade. Então o sofrimento é expulso do interior e o exterior vibra em harmonia com uma egrégora que só cresce acolhendo tudo à sua volta.

Essa harmonização da egrégora com a autopoiesis promove expansões em todas as direções e a força da vida se solta do hospedeiro e o inclui em conexão com tudo e todos à sua volta. Então, só quando o ciclo vital se completar e a autopoiesis deixar de ocorrer por sua peculiar limitação, a vida terminará. Então transmutará, em que qualquer reação nuclear transforme um nuclídeo em outro. Se encerra a última metamorfose desse plano.

Não deixa de ser um indicativo sobre o suicídio que é justamente no final do ano que ocorrem mais suicídios. Um bombeiro que conheço diz que é porque o sujeito, no final do ano, faz um inventário dos sonhos do início e percebe que fracassou.

Se existe um movimento pela extinção da raça humana, se existe um livro prescrevendo os modos mais fáceis de usar para o caminho do suicídio, então deve haver também um manual da diversão, um movimento para disseminar a alegria e a felicidade integrais dos seres humanos. Nada de ilhas de alegria ou de felicidade, mas oceanos da imprudência e do bem viver.

Diversão como um meio de desviar, de mudar de rumo, de alterar a direção de uma jornada. Pensemos sobre essa prática tão salutar para os sistemas de vida.

Segundo os entendidos, rir movimenta uma infinidade de músculos da face e do tórax. As descargas químicas que afloram na autopoiesis e faz emergir cargas de energias leves faz da diversão um ato político fundamental para enfrentar os constrangimentos desse tempo de thanatos.

A diversão começa de modo político dentro de nós. Não é um evento casual, embora isso também ocorre, mas diante das forças de thanatos, a diversão de eros é uma convocação para a alegria.

Vou descrever como isso acontece como uma receita do bem-estar e da vida boa.

O primeiro passo a ser seguido é não se levar a sério. Isso pode acontecer se você começar a defender ideias que a maioria das pessoas ridicularizam. Dizer em bom tom que a terra é plana é um bom começo. Diga pra si mesmo quais os argumentos existem para justificar a terra esférica. Depois vá demolindo-os e substituindo por argumentos frágeis de que ela é plana.

É preciso deixar de ser um julgador e assumir um ponto de vista do observador, com uma atenção relaxada, despreocupada, mas percebendo movimentos de vistas amplas e os detalhes, sem ordenamentos.

Esse ser que quer viver em alegria e felicidade deve abraçar todos que o cumprimentarem. O abraço liga o plexo ao plexo e torna complexa, com esse simples gesto, a conexão. No momento do abraço, se demore um tantinho e sinta fluir a energia que entre os seres é envolvente e generosa. Basta um tempo a mais de abraço.

Esteja pronto a cozinhar para os seus e se não tiver essa oportunidade, convide um passante para o almoço e saiba dele sua história que é sempre bizarra porque desconhecida e sempre além do pré-julgamento.

Tenha um instrumento musical. Pouco importa se aprendeu a tocar, um pandeiro, uma flautinha indígena que basta soprar, um tambor, o que for, mas tenha como se distrair tocando suas próprias músicas.

Nunca reclame. A reclamação é chata e atrai sempre mais motivos pra reclamar. Pelo contrário, pronuncie todos os dias a palavra gratidão como forma de reconhecer que tudo que tem é parte da bondade do cosmos, de deus.

Conheça tudo que puder sobre o Butão, o país do sudeste asiático que, embora minúsculo, é famoso pela genuína felicidade dos seus habitantes. Em 1972, seu rei que tinha então 17 anos, decretou que o produto interno bruto não é mais importante que a felicidade interna bruta. Criou então uma economia de ponta cabeça.

A filosofia interna bruta é a convicção de que o objetivo da vida não pode ser limitado a produção e consumo seguidos de mais produção e mais consumo, de que as necessidades humanas são mais do que materiais”, diz Thakur S. Powdyel, diretor do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento Educacional da Universidade Real do Butão.

Invente coisas. Durma bem. Aprenda a ver a beleza. Recuse partilhar o sofrimento anunciado pelas mídias. Procure equilibrar felicidade espiritual com esforço material.

Pratique a masturbação todos os dias. Difícil descrever os benefícios que ela proporciona. Todos os dias, é fundamental. Vai sentir, depois de algum tempo, as energias que te envolverão dia adentro. Ou noite adentro.
Aprenda a deixar-se ficar sem fazer nada, só procrastinando.

Conecte-se a seres vivos, plantas, animais, gente, espíritos diáfanos da ionosfera. O ar está coalhado de íons, de faíscas eletromagnéticas, de amorosidade. Elimine o vazio entre os seres. Sinta que tudo está ligado.

Aceite tua fragilidade, pois ela é tua força.

Siga, se puder, o ditado: se o problema tem solução, não há porque se preocupar; se não tem, se preocupar é inútil.

Ouça pessoas que falam coisas que tu não gosta. Aprenda a aceitar que as diferenças são mais importantes do que ouvir o que gostamos. Aprenda a tomar café sem açúcar. Coma coisas amargas também, como jiló. Sinta o gosto amargo do alimento e, em silêncio, imagine que está num deserto há dias sem ter o que comer. Vai perceber que o sabor será bem diferente do habitual.

Comece a viver com menos dinheiro do que está acostumado. Viver com menos é importante pra gente perceber que tudo é relativo.

Ouça música sempre que puder.

Todos os pensamentos são ilusórios. Todo sentimento, toda intuição, é a promotora da conexão vital. Se sentir alegria, siga o caminho. Se sentir insegurança, abandone-o sem pensar.

Sempre que tiver oportunidade, dê presentes. Dar presentes é melhor do que ganhar.

Aprenda sempre, pois o aprendizado é a única coisa que podemos fazer com desprendimento. Nunca ensine, todavia. Ensinar é negar ao outro o supremo direito de decidir. Troque figurinhas, jogue bafo, grite.

Fotografe menos e conecte-se.

Se encontrar alguém que te seja recíproco, ame sem posse ou apego. Se não, ame sua solidão como um bom ouvinte do cosmos. Aceite que não te falta nada. Você tem tudo de que precisa pra viver o dia de hoje. Isso é muito importante. Aí tu vai sentindo que quase tudo que tens é suficiente e que nada te falta.

Viver um dia de cada vez é outra condição da alegria e da felicidade. Estude, se for o caso, mas porque é gostoso estudar, não como uma penitência em nome do futuro. Se não curtir, se não encontrar nada na escola que te atraia, faça outras coisas, trabalhe em lugares que te atraem e não pelo dinheiro que vai ganhar.

Imagine um planeta em que tudo ocorra como tu gostaria.

Nunca diga não, mas só faça o que quiser fazer. O não cria um impedimento desnecessário. Fazer o que tu quiser será sempre um fazer com o coração e não com a obrigação.

Aceite o fato de que a sorte de um amigo é uma benção. Os amigos nos chegam de forma incondicional.

Não aceite sofrer provisoriamente. Não negocie em nome do futuro. Ele não existe. Só existe o hoje e ele deve ser vivido em abundância.

Não se submeta nunca, mas faça voluntariamente, servindo ao humano e nunca ao poder.

Não poderia faltar num manual da vida boa a simplicidade. A simplicidade é um jeito de levar a vida sem pesar, sem ambição, sem competitividade.

Saiba mais: Conheça homens e mulheres que optaram por uma vida mais simples

Aprenda a ouvir o outro. Essa habilidade é um atestado de generosidade se puder ouvir sem julgar, pois o outro só precisa falar.

Faça as coisas porque são gostosas de se fazer, esse é um critério fundamental para vivenciar a experiência da alegria e da felicidade. Nada sabemos de nossa jornada nesse tempo, então viver segundo um imperativo de alegria é indubitavelmente melhor do que viver sob a égide do sofrimento.

Aprenda a pensar por conta própria, pouco importa se isso é esquisito. Nunca negocie pra ser aceito pelos outros, pois todo esforço nesse sentido será vão. Aceite primeiro como tu és que os outros também o aceitarão assim.

A vida é um recriar-se contínuo, então reinvente-se longe da normalidade, pois a normalidade está contaminada com o apego e o sofrimento. Um pouco de loucura é saudável.

Beba muita água, pois o organismo precisa de viver num meio alcalino pra servir bem ao seu usuário. Coma o que quiser sem restrições sociais. Não passe privações desnecessárias.

Caminhe sempre que puder. Andar a pé é uma forma de passeio em que nos conectamos a tudo sem a pressa dos horários. Se possível, assobie.

Aceite sua invisibilidade como uma vantagem num tempo de espetáculos do ego.

Existem outras tarefas que compõem a vida boa e a alegria constante, mas paro por aqui a tempo de ir ali fora, contemplar o dia que está lindo.

Ah! Agradeça o tempo todo a deus, ao cosmos, ao mistério que é estar vivo.

Mude de rota, divirta-se, que a vida boa tá logo ali. Basta ficar um pouco em silêncio e ouvir a vibração sutil da autopoiesis se manifestando.

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*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e permacultor

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