Sempre que vou me despedir de alguém, a paisagem de volta para casa me parece banal e fútil. No entanto, é a mesma paisagem, que não me incomoda em absoluto nos dias comuns.
15:55!
Freguesa (em um só fôlego): Boa tarde, moço. Eu gostaria de dar um presente para o meu futuro namorado (“futuro namorado”). É, a gente ainda não ficou, mas é que eu estou investindo na relação (“investindo na relação”).
Eu (respirando fundo): hum, sei!
Sempre odiei trabalhar naquela pequena loja de conveniências de um posto de gasolina, usando todos os dias a droga de um uniforme da Shell. Sempre odiei a obrigação de usar uniformes. Não obstante o patrão nos explorar, ainda sente a necessidade de colocar um carimbo na gente, só pra frisar que durante aquelas oito horas somos dele e somente dele.
Freguesa pega uma garrafa de vinho e cigarros mentolados.
Freguesa (com uma cara de ?): dá a entender que sou uma namorada descolada (“descolada”) se eu der isso para ele?
Eu (sentindo uma pontada na cabeça; a noite anterior deixou marca): hum, acho que sim.
Satisfeita com a resposta, freguesa decide, imediatamente, levar tudo.
Freguesa (aparentemente alegre): obrigada, vocês embrulham?
Eu (praticando a paciência budista): Hum, não, desculpe.
A freguesa me fez pensar em uma ex-namorada, ou ex-ficante, não sei dizer. A V. era vinte anos mais velha (ops, ainda é) e nos conhecemos ali na lojinha. Todos os domingos ela ia abastecer o carro e fazia questão de comprar um picolé de limão e trocar algumas palavras comigo, atrasando um pouco a fila — o que, para o meu bel-prazer, deixava os clientes irritados. Um dia, na hora de pagar a conta, ela entregou junto com o cartão de crédito um papelzinho com um número de telefone. Fiquei vermelho e guardei no bolso esquerdo do uniforme horroroso. Enviei uma mensagem assim que cheguei em casa. Desde então, era ela quem entrava em contato, era a regra.
Só me levava para lugares pouco badalados, muito longe do centro, aonde sentávamos na mesa do fundo.
Eu gostava, principalmente porque num dos bares em que íamos era sempre oferecido uma caipirinha de abacaxi maravilhosa. A melhor caipirinha que já tomei, na real. Mesmo no inverno eu contrariava o bom-senso e pedia com bastante vodka e gelo.
Ela também adorava as caipirinhas. A senha era sempre sair do bar depois de cada um ter terminado a quarta. Cambaleando, íamos até o carro, aonde ficávamos namorando durante um tempo e depois seguíamos para a casa dela. Sempre às escondidas, entrávamos devagar no condomínio, eu escondido no banco de trás. Ela saía primeiro do carro, entrava em casa fingindo naturalidade e deixava a porta destrancada para mim. Depois de alguns minutos, eu corria para dentro, fechando a porta atrás de mim.
Não havia tempo para mais diálogos. Corríamos para cama, tirando a roupa no caminho. Uma relação clichê, eu sei.
16h!
Hora do velho abastecer a mercedes conversível. Sempre pontual, o desgraçado. A minha colega de caixa, linda como a luz da manhã, corre para os fundos da lojinha assim que avista o carrão importado. Quando me encontrou sozinho no caixa, o velho fez naquela cara murcha e enrugada — que sempre tive vontade de socar — uma expressão de decepção misturada com irritação. Uma vez chegou a passar a mão na bunda de uma das frentistas. A menina gritou de raiva, mas o patrão relevou pro lado do velho, afinal, é homem e patrão.
A melhor parte de ficar com a V. era observa-la após a relação. Ainda um pouco bêbada e aparentemente aliviada, ela gostava de ficar estendida na cama, nua.
Eu dava espaço, aproveitando para fumar na janela do quarto que dava pro quintalzinho. À luz da Lua, seu corpo reluzia.
Parecia que era o único momento na vida em que ela relaxava um pouco. Nessas horas sentia-me como se fosse a droga dela que, misturada com álcool, fazia-a deixar de lado um pouco a cruz durante alguns instantes.
Não durava muito. Sempre de sopetão, ela se levantava e corria para o banheiro, de onde eu ouvia o som do batente do vazo caindo, seguido por um esguicho forte. Depois disso, ela seguia para o banho.
De volta ao quarto, com a pele quente da água do chuveiro, ela pegava o cigarro da minha mão, dava uma tragada e apagava-o numa caneca sempre a postos em cima da penteadeira. Pegava-me pela mão e me puxava novamente para a cama. Deitados, inclinava-me sobre ela e, com os olhos fechados, beijava-a toda, com calma, como se o tempo não existisse mais – beijava a boca, o pescoço, seguindo direto para as pernas para, aos poucos, voltar ao centro-sul, onde procurava encontrar o seu ritmo. Ela me respondia com vibrações em cada polegada de sua pele, e em cada uma encontrava um calor diferente, um sabor próprio, um gemido novo, e ela inteira ressoava por dentro como um arpejo. À medida que a beijava aumentava o calor de seu corpo e uma fragrância de montanha envolvia o quarto.
Mais tarde, era hora de devolver o brinquedinho. Na volta para a minha casa era o único momento em que de fato conversávamos. Nesses minutos ela desabafava, relatando as durezas que sofreu e sofria.
Durou cinco meses. Não cheguei a me apaixonar, ela também não, imagino. Foi tudo muito rápido, prático e intenso. Não houve sequer despedidas. De repente, ela não me mandou mais mensagens e ficou por isso mesmo.
Senti-me como Bacon, que amava a natureza sem manter nenhum tipo de relação de posse.
16:10!
O velho saí arrancando forte. Sempre faz isso quando está puto. Um dia, no fim do expediente, ele foi seguindo a gente até o ponto de ônibus, encarando e mexendo com as minas. Fiquei com vontade de jogar uma pedra, mas nem precisei. Elas o xingaram, em coro, e chutaram o carro, afugentando-o.
Um dia pedirei demissão e as abraçarei com força. Nunca mais as verei, mas não as esquecerei jamais. Sei que me sentirei vazio, porque sempre que vou me despedir de alguém, a paisagem de volta para casa me parece banal e fútil. No entanto, é a mesma paisagem, que não me incomoda em absoluto nos dias comuns. Ficarei a observar pela janela do ônibus a cidade, o seu rito causticante, o rio de gente perambulando pelas interrogações do dia, sozinhas em seus carros populares abastecidos por meninas e meninos fortes.
No dia em que pedirei demissão, não chegarei a mandar tomar no (palavrão) o meu chefe, porque sou uma pessoa educada. Porém, terei a coragem de não devolver o uniforme. Irei queima-lo num terreno baldio perto de casa. Um adolescente passará na rua, me verá de frente para a fogueira e assobiará. Eu rirei, satisfeito.
16:14!
* João Elter Borges Miranda é professor de história. Email: recapiari636@gmail.com
Acompanhe Pragmatismo Político no Twitter e no Facebook