Quem está nos bancos centrais veio quase sempre de bancos, são formados para pensar como banqueiros e voltam para trabalhar em bancos ou para bancos. Como deixaremos estes indivíduos “autônomos” dos nossos governos?
Eric Gil*, Pragmatismo Político
De tempos em tempos a questão da autonomia do banco central (BC) volta ao debate público no Brasil. Em um governo de radicais liberais, como é o caso do governo Bolsonaro, era só uma questão de oportunidade para que isto fosse novamente proposto.
Em edição extra do diário oficial desta quinta-feira, foi informado o encaminhamento ao Congresso do projeto de lei complementar que “dispõe sobre a autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira do Banco Central do Brasil, define seus objetivos e altera a Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964″.
Mas primeiramente, o quê que é essa tal de “autonomia do banco central”?
Segundo uma escola econômica específica, a dos novo-clássicos (que são, grosso modo, economistas liberais), há um grande problema em deixar a política monetária (função do nosso banco central) nas mãos de políticos eleitos, pois eles sempre tentarão gastar o máximo possível de dinheiro para agradar seus eleitores com o objetivo de tentar se reeleger, e com estes gastos públicos gerariam inflação. Na cabeça destes economistas existem dois diferentes reinos, o da virtude e a dos vícios.
No reino da virtude estão os economistas, técnicos, que só querem o bem da economia, e quando estiverem no governo perseguirão este objetivo. No segundo, estão os políticos e todos aqueles que querem “gastar” dinheiro público (ou seja, nós, eleitores, que demandamos serviços públicos, através dos políticos que nós elegemos). No mundinho destes economistas, construído por ideologias e preconceito, retirando o banco central da política cotidiana “suja” (insulando) poderemos garantir a sua função “natural” de xelar pela estabilidade monetária (inflação baixa).
Concretamente, estes economistas propõe centralmente mandatos fixos para presidentes e diretores dos bancos centrais, para que assim o Executivo não possa demitir alguém que supostamente o contrarie. No caso do projeto de lei complementar de Bolsonaro, os mandatos destes dirigentes durariam 4 anos, sendo nomeados em datas diferentes e não coincidentes com a posse de novos presidentes, o que faria com que um presidente tenha que ter pessoas no seu governo gerenciando a política monetária indicada por presidentes anteriores.
No entanto, é importante pontuar uma coisa. Os economistas como Paulo Guedes tentam passar com imensa soberba uma certeza sobre suas políticas econômicas que na verdade eles não têm. Quem não lembra das promessas de economistas, empresários e banqueiros de que era só tirar a Dilma que a economia voltaria a crescer? Quem não lembra das promessas de novos empregos com a reforma trabalhista, coisa que nunca aconteceu?
Neste caso não é muito diferente. Nem sequer há comprovações empíricas de causa e efeito entre independência do banco central e baixas taxas de inflação, principalmente em países pobres como no Brasil . Se fala tanto em dar autonomia para o banco central, mas o debate ainda está em aberto sobre os efeitos disto na inflação, principal motivo no argumento dos defensores desta medida.
Mas não discutirei aqui no âmbito na teoria econômica, e sim da teoria política e democrática. A questão que acho central neste debate é que dar autonomia apenas diante do Executivo (como propõe Bolsonaro) fragiliza o banco central, fazendo com que este perca totalmente a autonomia diante de quem ele regula (o BC é responsável também por regular o sistema financeiro nacional), os bancos. Ou seja, dar autonomia ao banco central em relação ao Executivo significa tirar a autonomia que este órgão tem diante dos bancos, a quem ele realmente deveria se resguardar de qualquer tipo de influência.
Como banqueiros podem capturar o BC?
Como inúmeros artigos acadêmicos demonstram , dirigentes de bancos centrais – aqui ou no exterior – são recrutados em grande parte no próprio sistema financeiro. No Brasil, nos governos do PSDB e do PT, metade dos diretores vieram de bancos ou do departamento de Economia da PUC-Rio, onde seus professores são reconhecidamente entusiastas de políticas econômicas defendidas pelos bancos, consultorias e gestoras financeiras. Estes indivíduos carregam interesses e preferências dos seus locais de origem. Assim sendo, se você é economista-chefe no Bradesco e vai trabalhar no BC, é muito pouco provável que você tome uma decisão que vá de encontro aos interesses da sua empresa de origem. Como disse o famoso cientista político marxista Ralph Miliband,
Pode-se admitir facilmente que os empresários que ingressam no sistema estatal, qualquer que seja o seu cargo, não se consideram representantes do mundo de negócios em geral ou menos ainda de suas próprias indústrias ou firmas particulares. Mas mesmo que o desejo de pensar em termos “nacionais” seja muito forte, os empresários que estão no governo ou na administração muito provavelmente não estarão de acordo com uma política que venha a contrariar aquilo que consideram ser o interesse do empresariado, nem muito menos a se tornarem os defensores de tal política, uma vez que, quase por definição, estarão propensos a acreditar que tal política é inimiga do interesse nacional. (Miliband, O Estado na Sociedade Capitalista, p. 78)
Quando lemos defesas de economistas, empresários e banqueiros sobre determinadas políticas econômicas podemos observar que estes sempre colocam que estas políticas são para o bem da economia, logo para o bem geral da nação (mais emprego, mais renda, menos inflação, etc.). Normalmente eles realmente acreditam nisto, afinal de contas o poder da ideologia é forte. Eles foram formados para acreditarem nisto, eles vivem num ambiente que reafirmam isto à toda hora. Obviamente também sempre há um pouco de má-fé, como em reformas tal como a da Previdência e a Trabalhista (quem vai ser prejudicado é pobre, não eles).
Reforçando a questão ideológica, também temos que normalmente existe apenas uma visão econômica nos bancos centrais, a mesma que defende a sua autonomia. Como é demonstrado em meu artigo “Economic mainstream and power”, a formação no mainstream econômico é totalmente hegemônica no Banco Central do Brasil (BCB). Se você sentar num banco da Unicamp (universidade reconhecidamente opositora à esta visão) você não tem praticamente nenhuma chance de chegar ao cargo de diretor do BCB. Diferentemente de outros órgãos públicos, como os finados Ministério da Fazenda, do Planejamento, da Indústria, ou entidades como o BNDES, no banco central nem em governos petistas entram economistas com uma visão diferente do mainstream, o que prova a total falta de debate existente ali.
Por fim ainda temos a famosa porta-giratória. Os diretores e presidentes dos bancos centrais em todo o mundo usam e abusam disto. Eles entram no banco central e depois voltam a trabalhar nas entidades que eles regulavam.
Em artigo a ser publicado no mês que vem, na revista francesa de administração pública Gouvernement et action publique e intitulado de “La connexion financière: le pantouflage dans la Banque centrale du Brésil”, eu e outros pesquisadores mostramos que quase todos os presidentes da história do BCB utilizaram-se da porta-giratória. São casos como o do tucano Gustavo Franco, que sai do cargo de presidente e funda a Rio Bravo Investimentos, ou de Henrique Meirelles, que depois de deixar a presidência do banco, onde ficou nos 8 anos dos governos petistas, foi para a J&F Investimentos S.A.. O professor de Ciência Política da University of Washington, Chris Adolph, cunhou o termo de Shadow Principals (um tipo de “chefe nas sombras”) para falar dos efeitos da porta-giratória no Federal Reserve (BC dos EUA).
Segundo Adolph, diretores e presidentes de bancos centrais sempre atuam pensando na suas carreiras futuras, pois eles sairão do BC (que passarão apenas um ou dois anos) e continuarão as suas carreiras, provavelmente em grandes bancos ou abrindo suas consultorias (que serão contratadas por grandes bancos). Se existe sempre um futuro chefe te avaliando nas sombras, é difícil que um diretor ou presidente de banco central queira ir de encontro aos interesses destes .
Utilizando-se novamente das palavras de Ralph Miliband, “[…] o capitalismo contemporâneo não dispõe de servidores mais devotados e mais úteis do que os homens que ajudam a administrar a intervenção do Estado na vida econômica”. (p. 159).
Quem está nos bancos centrais veio quase sempre de bancos, são formados para pensar como banqueiros e voltam para trabalhar em bancos ou para bancos. Como deixaremos estes indivíduos “autônomos” dos nossos governos? Se o Executivo não quer mandar neles, os bancos saberão muito bem como fazê-lo. Por isto dar autonomia para o banco central é terceirizar para os banqueiros a gestão da política monetária e a regulação do sistema financeiro.
Alguém já viu um banqueiro ser contra a autonomia do banco central?
*Eric Gil Dantas é economista do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais (IBEPS), mestre e doutorando em Ciência Política pela UFPR
Referências:
[1] Artigo de Helder Ferreira de Mendonça, “A mensuração do grau de independência do Banco Central: uma análise de suas fragilidades”, publicado na Revista de Economia Política vol. 26, nº 4 (104), pp. 552- 563, outubro-dezembro/2006.
[2] Dentre eles incluso um escrito por mim e outros três pesquisadores, “Economic mainstream and power: a profile analysis of Central Bank directors during PSDB and PT governments in Brazil.”, publicado na Revista Nova Economia (UFMG) vol. 26, nº 3, pp. 687-720, 2016.
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