Ditadura Militar

Comemoração do Golpe de 1964 é crime lesa-pátria

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Não obstante as atrocidades promovidas pela ditadura que possuem consequências até hoje à sociedade brasileira, vimos na última semana Bolsonaro determinar a comemoração do Golpe de 1964.

A determinação foi divulgada pelo porta-voz da presidência, general Otávio Rêgo Barros, na segunda-feita (25). A notícia foi recebida pela esquerda brasileira com revolta. No entanto, só causou surpresa aos incautos, porque o atual presidente nunca escondeu que, para ele, não houve ruptura antidemocrática por parte dos militares em 1964, apesar de nesse ano Jango ter sido deposto pelos militares e, após o ato, não ter ocorrido eleições diretas para presidente, o Congresso Nacional ter sido fechado, mandatos e militantes terem sido cassados, presos e torturados, a imprensa e os artistas terem sido censurados.

Não causou surpresa porque Bolsonaro acumula na sua história uma série de declarações de apologia à ditadura e seus torturadores. Em 2016, em plena votação no Congresso – em uma das fases do Golpe que derrubou a então Presidenta Dilma Rousseff – as câmeras da suposta “casa do povo” mostraram o capitão votar sim por Brilhante Ustra. Nesse dia Bolsonaro deveria ter saído algemado da Câmara.

Ustra de brilhantismo não possuí nada. Este sujeito é um dos mais conhecidos assassinos e torturadores da ditadura. Foi um coronel e chefe do maior órgão de repressão política durante o período, o DOI-CODI. Uma das atrocidades cometidas por Ustra é relatada pela vítima, Amélia Teles, presa nos porões do regime. Amelinha, como é mais conhecida, conta que o torturador levou os filhos dela para que vissem a mãe torturada. Seus filhos tinham quatro e cinco anos e viram a mãe nua, vomitada e urinada, sentada na “cadeira do dragão” (instrumento de tortura utilizado na ditadura parecido com uma cadeira em que a pessoa era colocada sentada e tinha os pulsos amarrados e sofria choques em diversas partes do corpo com fios elétricos). A menina perguntou: “Mãe, por que você está azul?”. Estava assim por conta dos choques que Brilhante Ustra infringiu em várias partes do corpo dela, dentre elas nos seios e na vagina. É esse o homem homenageado por Bolsonaro, enaltecido também pelo vice-presidente, o general Hamilton Mourão, que definiu Ustra como um “herói”.

Ustra morreu em 2015, aos 83 anos de idade, sem nunca responder por seus crimes. Apesar disso, muitos brasileiros, que parecem desconhecer o tamanho das feridas da ditadura, não deixaram de dar apoio ao torturador e ao seu fã, Bolsonaro, durante as eleições presidenciais.

Em maio de 1999, Bolsonaro defendeu o fechamento do Congresso realizado na ditadura: “deviam ter fuzilado corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique”, afirmou escancarando a sua veia autoritária. Já disse também que “o erro da ditadura foi torturar e não matar”.

Não são só Bolsonaro e Mourão que não perdem uma oportunidade de propagandear as suas monstruosidades semânticas. Em outubro de 2018, na Faculdade de Direito da USP, o Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Sr. José Antônio Dias Toffolli, bradou que não teria ocorrido um Golpe militar no País, mas sim o que definiu como “movimento de 1964”. No mesmo dia esse senhor, que demonstra desconhecer a bibliografia historiográfica sobre o regime e a Convenção Americana de Direitos Humanos, proibiu que a Folha de São Paulo entrevistasse o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, afrontando ao direito à liberdade de expressão do protagonista da entrevista, assim como do meio de comunicação.

Como se não bastasse, nesta quarta-feira (27), o ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, no clima de estupidez dos seus companheiros, afirmou que não considera ter ocorrido um “Golpe” no país em 1964.

Para amplificar a mensagem de Bolsonaro, a líder do governo na Câmara Federal dos Deputados, Joice Hasselman, tuitou: “A esquerda raivosa e os bonecos de ventríloquos estão em polvorosa por causa da decisão do governo de autorizar as comemorações devidas ao Março de 1964. Podem berrar. O choro é livre e graças aos militares, o Brasil também!”.

Então, no domingo (31), 55 anos após o Golpe de 1964, o Palácio do Planalto divulgou um vídeo negando que um golpe de estado instaurou a ditadura civil-militar no Brasil. A Secretaria de Imprensa afirmou que o governo não produziu o material nem sabe quem o produziu. Disse que o vídeo foi enviado em um grupo de WhatsApp para distribuição de informações a jornalistas. O vídeo também foi postado no Twitter pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente.

Houve manifestações pequenas em apoio aos militares em duas grandes capitais do país: Belo Horizonte e Goiânia.

A 6ª Vara Federal do Distrito Federal proibiu os atos de comemoração. Mas, a desembargadora de plantão no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Maria do Carmo Cardoso, concedeu liminar permitindo a comemoração. A magistrada afirmou que embora “reconheça a sensibilidade do tema em análise”, não visualiza “violação ao princípio da legalidade, tampouco a violação a direitos humanos”.

O Ministério Público Federal e a Ordem dos Advogados também recomendaram aos quartéis que não comemorassem o Golpe, repudiando a determinação de Bolsonaro. Mas, independentemente disso, foram feitas comemorações nos quartéis, com a leitura de uma ordem do dia, taxando o golpe como “movimento de 1964” e recordando a suposta importância do regime para o progresso do país e manutenção da ordem.

Leia aqui todos os textos de João Elter Borges Miranda

Em 2011, a então Presidenta Dilma, que foi torturada durante o regime, havia suspendido qualquer celebração da data, mas agora, numa época em que há o maior número de militares nos altos escalões do governo desde a ditadura, Bolsonaro escancara o cadáver insepulto com a celebração ao Golpe.

Ainda que seja algo esperável desses atos falhos ambulantes defensores caninos do capital e lambedores de botas de milico, comemorar o Golpe de 1964 e a Ditadura Civil-Militar, que tanto sacrificou – e ainda sacrifica – a população brasileira, é um crime lesa-pátria.

Sabendo disso, uma série de estudantes e trabalhadoras e trabalhadores da educação, em universidades e escolas por todo o país, farão nos próximos dias encontros e atividades para descomemorar o Golpe de 1964.

Também ocorreram no domingo (31) manifestações contra a ditadura em várias cidades do país, como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Recife.

Também neste domingo mais de 50 organizações divulgaram uma nota de repúdio às declarações do presidente de rememorar o golpe de 1964. O documento denuncia a “tentativa de relativização e revisão histórica proposta pelo presidente.

“Que o dia 31 sirva para nos lembrar daquilo que não queremos repetir e para que possamos olhar para frente, imaginar e construir uma democracia que seja promotora de liberdades, mais plural e menos desigual”, afirmara a nota.

Uma série de outras notas de repúdio foram escritas, assinadas e publicadas por organizações políticas de esquerda.

Essas manifestações de repúdio foram fundamentais e assumem suma importância por conta do Brasil de hoje viver em uma conjuntura em que temos na presidência e em outros altos escalões do governo sujeitos fascistas e, também, por a cada dia que passa tomar forma no horizonte a terrível ameaça fascitizante.

Contudo, as manifestações não podem parar. Como muita gente da área de história sabe muito bem, devemos ir além. A ditadura que o Brasil sofreu é um cadáver que não foi sepultado por conta de um processo de redemocratização pautado pela conciliação pelo alto que anistiou os torturadores, ditadores e apoiadores do regime, como o empresariado, grandes meios de comunicação, banqueiros, etc.

É fundamental, por isso, fazermos justiça, julgando e condenando os atores do processo, de forma a constituirmos uma memória nacional que evidencie o quão drástico foi o regime militar; de forma que a população constitua anticorpos contra qualquer um que ouse fazer uma homenagear ao período e aos seus protagonistas; e para que a nossa sociedade nunca mais cogite a intervenção militar, como parcelas dela tem feito nos últimos anos.

A Argentina é um exemplo positivo neste sentido. Esse país marcou a história ao processar e julgar os integrantes do aparato repressivo da ditadura que assolou o povo argentino entre 1966 e 1973, deixando marcas até hoje. Além disso, fizeram uma série de centros de memória, dentre outras políticas públicas de reflexão e escancaramento do regime.

Devemos trilhar um caminho assim. Nesse processo, podem até tentar nos enterrar, mas saibam desde já que somos sementes.

*João Elter Borges Miranda é professor de história. Email: recapiari636@gmail.com

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