Darcy Ribeiro, uma das mentes e corações mais grandiosos desse país, parece ter sido esquecido. Conheceriam Darcy as novas gerações de alunos e professores?
Luís Felipe Machado de Genaro*, Pragmatismo Político
Hoje, mais que qualquer outro período, Darcy merece ser revisitado, lido e relido. Antropólogo, professor, político, ministro exilado, candidato a vice-presidente, militante, educador e romancista. Darcy Ribeiro teve muitas vidas em uma só. “Foi muitos”, como costumava dizer.
Em tempos sombrios, mais que qualquer outro momento, precisamos de Darcy, suas palavras, reflexões e seu engajamento pelo povo brasileiro. Não é por acaso que o seu mais importante livro, como disse no programa Roda Viva, em 1995, se chamou O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. Apesar de obras de fôlego, em face da brutalidade dos nossos dias, é nele que precisamos nos ancorar.
O Povo Brasileiro é – e não há quem diga o contrário! – uma das obras mais importantes do país. Em 332 magnificas páginas (ed. Global), com erudição assustadora e pitadas cômicas de coloquialidade, Darcy Ribeiro constrói uma teoria geral do Brasil, pensando de forma profunda a formação e a transfiguração do povo brasileiro, o seu destino e sentido nas Américas e no mundo.
Diferente dos arcaicos manuais escolares, Darcy inicia a nossa trajetória não no império luso do além-mar, mas nas regiões litorâneas brasileiras, explicando com detalhes etnográficos singulares a vida de centenas de milhares de tribos indígenas. Só depois comenta a nossa lusitanidade e, por consequência, a negritude africana.
Darcy Ribeiro, antropólogo de formação, passou a vida defendendo a causa indígena. Habitante semovente das mais diferentes regiões brasileiras habitadas por indígenas, passou anos em tribos diversas, registrando, aprendendo e defendendo povos e culturas inúmeras.
Preocupado também com os rumos dos povos latino-americanos, Darcy Ribeiro vai propor em outra obra, Pátria Grande, reflexões potentes e cirúrgicas sobre os nossos ‘irmãos do Sul’. “Aqui [na América], a metrópole colonialista teve um projeto explicito e metas muito claras, atuando de forma mais despótica. Conseguiu, quase de imediato, subjugar a sociedade preexistente, paralisar a cultura original e converter populações em uma força de trabalho submissa”. Nações, identificadas por Darcy, como “moinhos de gastar gente” – negra e pobre.
Em Pátria Grande, Darcy Ribeiro sai em defesa da soberania dos povos do Sul, de suas riquezas e de suas classes oprimidas e exploradas a exaustão pelas classes dominantes latino-americanas. É categórico: “O mais certo, porém, é que não estamos representando uma farsa política e sim vivendo situações dramáticas de despotismo e opressão e de sucessivas frustrações”.
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Como professor de História do Ensino Fundamental dos bairros rurais de Itararé/SP, Darcy Ribeiro foi referência constante em minhas aulas de Brasil. Confesso: minha principal base de sustentação. Alunos do 6º ao 9º anos, curiosos e ignorantes do sentido do próprio povo e da própria história, passaram a refletir sobre o país e questionar os rumos de seus cidadãos. Eles mesmos como “fazedores de seu próprio destino”.
Como aguçar aquela velha indagação – a “de onde viemos?” – que todo aluno possui? Darcy Ribeiro tinha a resposta.
Como professor, no iniciar da manhã, escrito com giz numa lousa média, reproduzia o inicio de seu Povo Brasileiro: “Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos aliciados como escravos”. A partir de então, duas horas de aulas não eram suficientes para a quantidade de questionamentos que pululavam pelas carteiras.
Entre tantas indagações, muitos alunos pareciam querer fazer a mesma pergunta que Darcy Ribeiro se apossou para escrever a sua obra: “Por que o Brasil ainda não deu certo?”.
Por que ainda vivemos rodeados de violência? Por que é o negro periférico que diariamente morre e é apresado como os escravos de outrora? Por que existe um enorme preconceito contra indígenas e sua cultura milenar? Por que as classes trabalhadoras brasileiras continuam exploradas e oprimidas? Por que muitas crianças ainda são analfabetas?
Como educador brasileiro, travou uma batalha – até a sua morte, como Senador da República – contra o analfabetismo e a escola “para poucos”, como dizia. Em seu artigo A educação e a política, não poupou palavras àqueles que, dentro do cosmos da Educação, não tomaram partido na defesa dos que mais necessitavam: “Quem não luta seriamente por uma educação popular democrática ajuda os poderosos a manter nosso povo condenado a viver à margem da civilização letrada, sofrendo as consequências do desemprego e de uma fome e ignorância crescentes”.
Em tempos de ‘Escola sem Partido’ e ministros que acreditam ser ‘a Universidade um lugar para poucos’, não espanta que Darcy Ribeiro esteja relegado ao esquecimento.
Artífice e fundador da Universidade de Brasília (UnB), e ministro da Casa Civil do presidente João Goulart, teve de enfrentar a ira boçal dos militares golpistas de 1964. Darcy clamava a Goulart pela resistência e pelo enfrentamento direto – através das armas, se necessário. O golpe se impôs. Tinha início a ditadura civil-militar de 21 anos e seu exílio de mais de uma década.
O Brasil não foi construído para ser uma nação de cidadãos conscientes, mas uma feitoria, uma grande fazenda dum império ultramar feito pra “gastar gente”, como carvão que se usa para queimar. Consciência cidadã, insurgência e rebeldia popular, aqui, eram resolvidas a base do grito, do chicote, do tronco e da repressão policial-militar – ainda o são.
A escravidão negra africana e indígena é, para Darcy, “a mais terrível de nossas heranças. É esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista”. Gerou-se aqui, uma sociedade de desigualdades extremas. Acabar com estas desigualdades, denunciando as brutalidades e corrupções da classe dominante brasileira, foi a luta central de Darcy Ribeiro.
Compreender o Brasil, a formação e transfiguração de seu povo, é o primeiro passo para transformá-lo. Isso provocará – e vem provocando – crescente indignação. Para isso, precisamos conter os possessos, os racistas e uma classe dominante cruel, atroz, mesquinha, medíocre e parasitária. Classe de mandantes, descendentes de senhores de escravos, latifundiários e concentradores de riquezas à custa do povo pobre. Só assim faremos do Brasil a “nova Roma” que tanto sonhou o antropólogo mineiro.
No programa citado, Roda Viva, de 1995, Darcy deixa escapar uma frase belíssima, cheia de significado: “Uma das coisas mais belas do mundo foi a aventura do Brasil se fazendo a si mesmo”.
Hoje, parece que essa aventura tem nos trazido mais revezes e destruição que qualquer outra coisa. O entulho autoritário e irracional deste desgoverno têm nos consumido.
Urge repensarmos e revisitarmos Darcy Ribeiro, a sua vida e obra. Não há mais tempos a perder.
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*Luís Felipe Machado de Genaro é historiador, mestre em história pela UFPR e professor da rede municipal de Itararé
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