Nem o porta-voz do Facebook consegue explicar o estranho caso da história mais compartilhada na rede social em 2019. Publicação viralizou mais do que o relato da morte de Luke Perry e a história do "Daily Mirror" sobre o "desafio Momo"
Em um domingo comum no final de janeiro, um editor dos sites de uma rede de rádios da região central do Texas, de 32 anos, encontrou uma notícia que achou interessante. Dez minutos depois, ele havia escrito e publicado o que se tornaria a história mais compartilhada do Facebook em 2019 até agora.
A história não tem nada a ver com Donald Trump, celebridades, adolescentes usando bonés MAGA (Make America Great Again ou Faça a América Grande de Novo) ou os candidatos democratas às primárias. É um resumo de 119 palavras sobre um suspeito procurado pela polícia por um crime local. E o homem que o escreveu nunca pretendeu alcançar uma audiência nacional, muito menos acumular mais de 800 mil compartilhamentos do Facebook nas seis semanas seguintes a sua publicação –quase o dobro do qualquer outro conteúdo em inglês neste ano.
Exatamente como esta notícia se transformou em um megaviral é um mistério que ninguém conseguiu desvendar, embora existam pistas, começando com seu título alarmante, ainda que geograficamente ambíguo:
“Suspeito de tráfico humano, predador infantil pode estar em nossa área”
Em tempos em que fortunas podem ser construídas e perdidas no tráfego do Facebook, o sucesso selvagem da história pode parecer um acidente bizarro, uma falha no sistema. Mas também sugere que, apesar de todos os esforços do Facebook para melhorar seu feed de notícias ao longo dos anos, a rede social continua sendo uma fonte de informação inconstante e opaca como sempre.
Era um dia normal, quando…
Aaron Savage trabalhou no mesmo grupo de estações de rádio, baseadas em Temple (Texas), durante toda a sua vida profissional. Seu trabalho inclui escrever e publicar várias notícias por dia nos sites das estações e nas páginas de mídia social, que ele administra sozinho na maioria dos dias.
Em 27 de janeiro, Savage notou um resumo do crime no site da KWTX News 10, uma emissora de TV local com a qual a KTEM NewsRadio tem uma parceria. A história, “Policiais do Texas Procuram Suspeito de Tráfico Humano“, saltou para ele como “algo que precisa ser apresentado ao público de qualquer maneira que pudermos“, ele me disse em uma entrevista por telefone.
A matéria dava o nome e a descrição de um tal Issac-John Bernard Collins, procurado por sequestro, tráfico de pessoas e abuso sexual de uma criança pequena. O caso não foi manchete, mas as alegações eram perturbadoras, e as autoridades tinham motivos para acreditar que ele estava escondido na área de Waco.
Savage reescreveu o texto rapidamente, citou e linkou para o post original, deu-lhe um título com a devida urgência e publicou nos sites de rádio locais que ele gerencia. Uma hora e meia depois, ele postou um link para a história na página do Facebook de uma das estações, a US 105 FM New Country, com sede em Temple. E então, ele diz:
“A história simplesmente decolou”
Savage, que monitora dados de tráfego em suas histórias por meio da ferramenta de análise do Facebook CrowdTangle, diz que os números da história “passaram do teto” da noite para o dia, rapidamente se tornando a postagem mais compartilhada de todos os tempos da US 105 FM.
Savage não sabia, até que eu lhe contasse em uma entrevista por telefone na semana passada, que a história foi nomeada em um estudo recente da empresa de análise NewsWhip como o conteúdo da web mais compartilhado de 2019 até agora.
Ela superou, entre outras histórias extremamente virais, o relato do “TMZ” sobre a morte de Luke Perry, a história da “CNBC” sobre o fim da paralisação do governo dos Estados Unidos e uma história do “Daily Mirror” otimizada agressivamente para o SEO sobre o “desafio Momo”. A nota original da qual o post de Savage foi baseado feita pela âncora de fim de semana do canal KWTX 10 Ke’Sha Lopez não estava em nenhum lugar da lista.
Como isso aconteceu? Pergunte ao Facebook
Nem o pesquisador do NewsWhip nem um porta-voz do Facebook e do CrowdTangle puderam explicar completamente. Nem o próprio Savage, que chamou de “um pouco assustador” o fato de o post ter ido tão bem. Mas cada um oferecia algumas hipóteses intrigantes.
Uma das críticas do Facebook como fonte de notícias é que seu algoritmo tende a circular histórias com manchetes provocativas, independentemente de o conteúdo ser confiável. Essa é uma grande razão pela qual a propaganda partidária enganosa e até mesmo as notícias falsas e fabricadas prosperaram na plataforma no período que antecedeu as eleições de 2016, mesmo com as notícias das fontes da mídia tradicional indo mal.
É por isso que publicações inteiras e grupos de mídia surgiram ao longo dos anos para ganhar dinheiro jogando com o algoritmo do Facebook: o ViralNova, o Elite Daily, o Distractify e o Independent Journal Review.
O Facebook respondeu a isso com incontáveis ajustes ao longo dos anos para promover “conteúdo de alta qualidade”, desencorajar caça-cliques, checar histórias falsas e punir páginas que propagam desinformação.
Em 2018, o Facebook anunciou um conjunto de importantes mudanças no algoritmo projetados para priorizar notícias de fontes “confiáveis” e “locais”, e para impulsionar o conteúdo compartilhado por amigos e familiares dos usuários sobre o conteúdo publicado por páginas profissionais do Facebook. Ele disse que os usuários receberão menos notícias em seus feeds, mas o que eles poderão ver será mais confiável, e que focará na facilitação de “interações significativas” entre os usuários.
Na prática, as alavancas que os engenheiros do Facebook puxam tendem a ser instrumentos mais suaves do que você imagina.
O mecanismo do Facebook para determinar “fontes confiáveis”, por exemplo, acabou sendo uma pesquisa com duas perguntas. Ela pressupõe que as notícias são “locais” para você, se estiverem sendo compartilhadas por uma publicação que tenha um público bem agrupado em sua área, independentemente de o tópico da história ser realmente local.
Ele define “interações significativas” parcialmente se baseando no número de comentários em um post. O estudo da NewsWhip mostra que os veículos que recebem a maior parcela de comentários tendem, no espectro da mídia, para o lado dos tabloides: como o LifeZette, o Sun, o New York Post e nosso velho amigo LADbible.com.
De acordo com dados do CrowdTangle fornecidos pelo Facebook, a história de Savage sobre o predador infantil suspeito acumulou mais de 50 mil compartilhamentos apenas no post original da US 105 FM –embora a página do Facebook da estação de rádio tenha apenas cerca de 7.000 seguidores.
Em poucos dias, a história estava sendo compartilhada por páginas muito maiores, incluindo o Departamento de Polícia de Longview, a Donald Trump Republic 2016 e o Good Times With Trump 2016-2024.
Durante o mês de fevereiro, encontrou força em uma variedade cada vez maior de subredes, incluindo a página da cantora de R&B Sarahi Allende e um grupo chamado Truckers Wall of Shame.
Em cada caso, a história atraiu não apenas “compartilhamentos” tradicionais, nos quais as pessoas repostam para seus próprios amigos e familiares, mas um grande número de comentários nos quais os usuários marcariam outras pessoas conhecidas, supostamente para alertá-los do perigo. Esse padrão pode ajudar a explicar por que várias histórias sobre crimes formam a lista das 10 mais compartilhadas do NewsWhip.
(O NewsWhip publicou um ranking separado de histórias “Mais Engajadas”, uma métrica que conta outras interações, como curtidas e comentários, além de compartilhamentos. A matéria da US 105 FM ficou em 15º nessa lista, com a história de Luke Perry da “TMZ” ocupando o primeiro lugar.)
Embora o Facebook não tenha confirmado exatamente quais aspectos de seu algoritmo ajudaram a história ao longo caminho, o resumo do crime escrito por Savage parece ter marcado quase todos os itens que a rede social está tentando priorizar.
Primeiro, foi compartilhado por uma organização de notícias local, tornando mais provável que as pessoas na área de Waco o vissem no topo de seus feeds.
Segundo, gerou um grande número de comentários, que o Facebook conta como “interações significativas”.
Por fim, seu compartilhamento foi impulsionado pesadamente por usuários individuais do Facebook, e não por editores profissionais com grande número de seguidores, o que significa que teria sido ajudado pelo foco da empresa em publicar posts de “amigos e familiares primeiro”.
Predador “na nossa área”
Mas o curinga pode ter sido o título da história. Embora tenha ficado claro ao ler a história que se tratava de Waco e da região central do Texas, a manchete apenas dizia que o predador estava na “nossa área”. Qualquer um que leia o título sem ler a história poderia razoavelmente pensar que a nota era sobre sua área, mesmo se estivessem longe do Texas.
Quando mencionei essa possibilidade para Savage, ele concordou e disse que geralmente tem mais cuidado em localizar suas histórias no título e no texto.
Essa hipótese foi reforçada quando liguei para o telefone de denúncias listado na história, que é dirigido pelo Departamento de Segurança Pública do Estado do Texas. O atendente, que se recusou a dar seu nome, inicialmente me disse que não poderia fornecer informações sobre qualquer caso individual.
Mas quando eu mencionei alguns detalhes, ele rapidamente se deu conta: “Esse é o cara do artigo do Facebook?”, perguntou.
O sujeito, no fim, poderia dar detalhes. “Ele foi levado sob custódia há mais de um mês –alguns dias depois que o artigo foi publicado.”
(O departamento de comunicações do Departamento de Segurança Pública do Estado do Texas não respondeu a várias chamadas e emails que buscavam mais informações sobre o caso).
A prisão não foi feita com base em uma dica de quem leu a história, acrescentou. Mas isso não impediu as pessoas de tentarem. O telefone se “iluminou como uma árvore de Natal, senhor“, ele me disse:
“Recebi três ligações por dia durante mais de três semanas de costa a costa”
Isso apesar do fato de que Collins aparentemente já estava sob custódia por grande parte da vida útil da história –o que tornou o artigo em si fundamentalmente enganoso. A nota se tornou, ainda que não intencionalmente, uma forma de desinformação viral, que é exatamente o tipo de conteúdo que o Facebook está tentando evitar amplificar.
Suspeito não-branco mexe com os texanos
Embora nenhuma fonte com qual conversei tenha sugerido isso, vale a pena considerar que também pode ter havido um fator mais sombrio na ação da viralização da história. A assustadora manchete sobre um predador de crianças procuradas ao longo do corredor I-35 do Texas trazia uma foto de um suspeito que parecia não-branco, numa época em que o assédio do presidente Donald Trump aos imigrantes e a pressão por um muro de fronteira dominavam as manchetes nacionais.
Algumas das centenas de milhares que compartilhavam provavelmente temiam por sua segurança pessoal ou de seus filhos. Mas também é provável que muitos –incluindo as páginas populares de apoio a Trump que ajudaram a notícia a viralizar– a compartilhasse porque parecia reforçar uma narrativa política racista.
Se você considerar todas as declarações públicas do Facebook pelo seu valor aparente, é esperado que os feeds de notícias de hoje sejam dominados por amigos, familiares e várias comunidades que compartilhem conteúdo significativo e original de alta qualidade. Na prática, as alterações no algoritmo da empresa tendem a ser mais eficazes na redução das estratégias existentes para enganar o sistema do que em promover qualquer objetivo social específico.
No mínimo, a estranha saga do texto sobre o crime cometido por Collins é um lembrete de que as interações entre os usuários do Facebook e seu algoritmo são nebulosas e complexas, e muitas vezes produzem resultados que refletem a ideia oposta de um consumo saudável de notícias.
Por todo a preocupação em torno da decisão do Facebook de apresentar menos notícias em 2018, a análise da NewsWhip descobriu que os níveis de engajamento do conteúdo da web no Facebook até agora em 2019 voltaram aos níveis de 2017. Em outras palavras, as peculiaridades do algoritmo do Facebook são mais importantes do que nunca para determinar o que as pessoas leem e quais fontes de notícias prosperam.
Quando perguntei a Savage qual lição ele tirou da viralização de seus textos, ele pensou por um momento e depois disse:
“Eu acho que é o mundo do sr. Zuckerberg, e estamos apenas vivendo nele”.
Leia também:
68 páginas e 43 contas pró-Bolsonaro são banidas pelo Facebook
“Mestre” das fake news dos EUA elogia Jair Bolsonaro
Rede de fake news do MBL é removida do Facebook
MBL reclama de “censura no Facebook” após exclusão de página
Zuckerberg cita eleição do Brasil ao comentar escândalo do Facebook
Will Oremus, Slate
Siga-nos no Instagram | Twitter | Facebook