Lucio Massafferri Salles*, Pragmatismo Político
Há alguns dias assisti a uma fala, em vídeo, da jornalista investigativa britânica Carole Cadwalladr [1]. Em uma palestra, Carole não só criticou a função das redes sociais (especialmente o Facebook) no processo que afastou o Reino Unido da União Europeia, denunciando um movimento estratégico de manipulação das subjetividades dos usuários das redes, como também estendeu sua crítica/denúncia até o papel cumprido por essas redes nos processos de desestruturação das democracias, em diversas partes do mundo atual.
O mais grave é que, no curso desse forte abalo, leis formais fundamentais e regras solidárias de convivência estão sofrendo o risco de ir “para o espaço”, sendo dissolvidas num ácido corrosivo de alienação e ignorância, a serviço de interesses criminosos balizados na ganância desmedida do poderio econômico.
O que parece haver de novo, nesse caso, não é o fato de várias democracias estarem desmoronando frente a emergência violenta de autoritarismos por toda parte. A novidade, que experimentamos nesse agora – em plena vigência – é que esse processo plural de destruição está ligado ao estranho fenômeno da disseminação massiva de ódio e intolerância que brota dos subterrâneos de certas estruturas desse mundo virtual, para manifestar-se com visibilidade no rastro de um apagamento das relações sociais presenciais.
De certo modo – poderão dizer – há algum tempo que esse dito apagamento das relações presenciais dá sinas de estar se constituindo com solidez, o que se vê a olhos nus nos ônibus, nos metrôs, nas ruas e mesas de bares, entre tantos outros lugares, com um grande número de pessoas fixadas nas telas dos seus celulares, absortas, capturadas por imagens e palavras compartilhadas, escritas ou em viva voz, com os conteúdos que esse “outro virtual” oferece ininterruptamente [2].
O que parece ainda carecer de tempo para ser entendido com profundidade, a fim de, quem sabe (?), poder ser modificado, é a complexidade que envolve o alcance e as consequências desse relativamente novo modo de se relacionar, que tanto se assemelha a uma bizarra e distorcida versão futurista do antigo mýthos de Narciso. Nessa distorção, um tanto quanto grosseira (como muitos exemplos o são), tudo se passa como se uma parte dos capturados pelas telas, imagens, espelhos ou “lagos virtuais”, ao invés de definharem até o fim (quem sabe produzindo alguma depressão terrível?), tornam-se progressivamente pessoas odiosas, intolerantes e profundamente ressentidas, convictas de que a chamada realidade provém prioritariamente das imagens e das falas que invadem as suas mentes, as suas almas, fazendo-as crer em tudo o que está sendo estrategicamente disseminado. É um tipo de adoecimento, do corpo e da mente (indissociáveis).
Imersas em uma virtualidade que parece ter desequilibrado fortemente a balança das relações com o mundo aqui fora, do contato corpo a corpo, das conversas olho no olho, muitas dessas pessoas podem não estar conseguindo ou sabendo escapar, inclusive, do círculo vicioso de dialetizar com seus próprios perfis virtuais e até mesmo com perfis-robôs, que disparam toda sorte de distorções, falsificações de imagens, mentiras e agressões, uma vez que, nesses específicos espaços da cybernuvem (sabemos hoje) ocorreram e ocorrem manipulações estratégicas de medos e fantasmas, visando diversos fins escusos, para não dizer criminosos.
A gravidade dessa questão a ser pensada, para poder ser mais bem compreendida, talvez não esteja tanto no fato de que há pessoas querendo sustentar ideias semidelirantes sobre o formato da Terra, uma bobagem sem nenhuma originalidade, ou que existam pessoas repetindo (também via teia social) que não somente os brasileiros que votaram em Lula, Dilma, Haddad, Ciro, Marina ou Alckmin são comunistas, como também Hitler era comunista, algo que uma leitura rápida do seu manual de psicopatia, de caráter autobiográfico, Mein Kampf (Minha Luta), refuta facilmente.
Fronteiras de todas as ordens e graus parecem estar se apagando nesse fenômeno que agrega um estranho culto à ignorância, movido no ódio e no ressentimento, onde, não por acaso, atividades fundamentais como as artes, a filosofia e as ciências sociais, de um modo geral, passaram a ser covardemente atacadas.
Talvez, o mais espantoso seja notar que está em curso uma espécie de projeto caótico de destruição de quase tudo o que ainda permite chamar esse mundo de habitável, o que justifica insanamente os apagamentos de fronteiras representadas pelas leis, no que elas, em tese, podem barrar injustiças e prevenir/impedir a barbárie. Perigoso apagamento, também, é o das fronteiras, recentemente construídas é já postas em xeque, entre a dose de ficção que é própria à subjetividade de cada um, e essa gigantesca e ainda não suficientemente compreendida (em termos de alcance; consequências) teia de comunicação virtual. Não podemos entender um momento de ruptura dessa natureza somente com o olhar do passado, não sendo possível prever ainda o que virá.
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Notas:
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[1] – A palestra da jornalista Carole Cadwalladr se chama “O papel do Facebook no Brexit -e a ameaça à democracia”. Disponível: https://www.ted.com/talks/carole_cadwalladr_facebook_s_role_in_brexit_and_the_threat_to_democracy?language=pt
[2] – Sobre esse fenômeno de ordem virtual vale conferir a arte de Moby & The Void Pacific Choir, com o seu vídeo “Are you lost in the world like me”.
*Lucio Massafferri Salles é filósofo, psicólogo e jornalista. Doutor e mestre em filosofia pela UFRJ, especialista em psicanálise pela USU, foi supervisor no Instituto Municipal Nise da Silveira. Criador do Portal Fio do Tempo (You Tube).
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