Armas de Fogo

Decreto de Bolsonaro sobre armas de fogo beneficia milícias

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O decreto de Jair Bolsonaro que altera as regras para porte e posse de armas de fogo e também para a aquisição de munição e armamento, tornou mais fácil a vida de milícias na cidade e no campo. Ou seja, ajuda a trazer um verniz de legalidade para quem toca a morte como um negócio

Jair Messias Bolsonaro (Imagem: Marcos Corrêa | PR)

Leonardo Sakamoto*

O decreto nº 9.785 de Jair Bolsonaro que altera as regras para porte e posse de armas de fogo e também para a aquisição de munição e armamento, tornou mais fácil a vida de milícias urbanas e rurais. Ou seja, ajuda a trazer um verniz de legalidade para quem toca a morte como um negócio.

O ato presidencial considera que uma longa lista de categorias não precisa “demonstrar a sua efetiva necessidade [de portar a arma] por exercício de atividade profissional ou de ameaça à sua integridade física“, critério previsto na lei 10.826/2003.

Caminhoneiros, conselheiros tutelares, políticos, jornalistas estão na lista. Mas também “residentes de áreas rurais” e agentes de forças de segurança da ativa e inativos. Nessas categorias, há quem faria uso para autodefesa e que, mediante justificativa, já pode pleitear porte ou posse. O problema é que as mudanças facilitam a vida de quem já usa armas em atividades criminosas.

Conforme este blog mostrou, tão logo o conteúdo do decreto veio a público, movimentos sociais que atuam na defesa do direitos dos trabalhadores rurais e dos povos tradicionais demonstram sua preocupação com as mudanças. De acordo com José Batista Afonso, advogado e coordenador da Comissão Pastoral da Terra no Pará, o decreto deve contribuir para o aumento das milícias rurais formadas por seguranças contratados e armados por fazendeiros e grileiros, dando um verniz de legalidade a uma situação já existente.

Milícias como essas têm sido acusadas de envolvimento nas mortes de trabalhadores e lideranças no campo. “Quem as usava [as armas] para cometer crimes, vai ter a situação legalizada. Quem não usava, poderá começar a usar“, afirma.

Mudanças também beneficiam milícias urbanas

Armas que eram de uso privativo de agentes de segurança passam a poder ser adquiridas pelo cidadão comum, como pistolas 9 mm e calibre .40. E o limite para compras de cartuchos de uso permitido (que, agora, englobam esses dois modelos) passou de 50 para 5 mil anuais. No caso de munição para armas de uso restrito, foi de 50 para 1 mil.

Ou seja, o mercado será inundado com munição anteriormente restrita a agentes de segurança – o que inclui aqueles que mudaram de lado e tornaram-se bandidos, os milicianos. Com mais projéteis em circulação e sem o anúncio de medidas específicas para identificá-los, torna-se mais difícil afirmar de onde eles saíram em futuras investigações.

Foi ampliada a quantidade de munição que pode ser adquirida, mas sem exigência de marcação de lote“, afirma Bruno Langeani, gerente da área de Sistemas de Justiça e Segurança Pública do Instituto Sou da Paz. Ele lembra que esse tipo de marcação foi o que ajudou no esclarecimento de assassinatos, como o da juíza Patrícia Acioli, em 2011, por milicianos.

Como justificar a liberação de armas ao cidadão comum que só a policia tem acesso?“, questiona Langeani. “E como justificar 5 mil cartuchos para quem tem arma para defesa em casa?” A partir de agora os próprios agentes e ex-agentes de segurança poderão comprar legalmente essa munição em quantidades suficientes para promover uma guerra.

O deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ), que presidiu a CPI do Tráfico de Armas e Munições e a CPI das Milícias, quando deputado estadual na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, afirmou anteriormente ao blog que as armas que cometem 82% dos homicídios no Rio de Janeiro vem do mercado legal e, em algum momento vai para o mercado do crime. São desviadas, roubadas, vendidas. “Existe um mercado legal de armamento que não é bem fiscalizado.”

Especialistas em direito que conversaram com o blog afirmam que a expectativa é de que o decreto de Bolsonaro seja derrubado no Supremo Tribunal Federal, através de uma das Ações Diretas de Inconstitucionalidade que foram apresentadas, ou pelo Congresso Nacional. Afinal, o Poder Executivo tomou o poder de legislar dos parlamentares ao propor essas alterações.

O presidente só pode emitir um decreto, ou seja, criar uma norma, se ela seguir os estritos limites da legislação aprovada pelo Congresso Nacional e pela Constituição. O decreto de Jair Bolsonaro claramente extravasa os limites da lei, ampliando as possibilidades para o porte de arma de fogo. E, por isso, é um claramente ilegal.” A análise é de Eloisa Machado de Almeida, professora da FGV Direito SP e coordenadora do Centro de Pesquisa Supremo em Pauta.

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O problema é que, até que qualquer uma das situações aconteça, ele já está valendo. A obtenção do porte de armas não é imediata, mas quem já tem porte ou posse pode adquirir cartuchos em grandes quantidades. “Pode haver gente estocando munição neste momento“, afirma Bruno Langeani.

Isso abre uma outra discussão: como revogar a aquisição de munição e armamentos se o decreto vier a cair? Será uma disputa jurídica complicada, que pode incluir até pessoas que foram condenadas por estar com armas de uso restrito, como uma 9 mm, sem autorização para tanto e, com o decreto, pedirão a revisão da pena. Não se sabe se essa foi sua intenção, mas o presidente criou problemas em cascata ao assinar esse decreto. A questão é se isso não era planejado.

Elegemos alguém de perfil autoritário e populista que aposta no ‘nós contra eles’ e na violência, o que inclui a liberação de armas, para legitimar e manter sua autoridade.” Para Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, medidas como o decreto devem ser analisadas em meio à situação política para poderem ser compreendidas.

De acordo com ele, Bolsonaro vem trabalhando nesse populismo e o autoritarismo violentos para deixar claro quem devem ser os inimigos. Ao mesmo tempo, libera armas para as categorias que são seus apoiadores políticos, como caminhoneiros, ruralistas e agentes de segurança. Sabota generais que estão em seu governo e conversa diretamente com cabos e soldados. Ignora a política institucional e fala direto com seus seguidores.

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Analise o que ele disse na época em que defendeu milícias, o que falou durante as eleições, quem um de seus filhos empregou em seu gabinete [a esposa e a mãe do líder de uma das principais milícias do Rio de Janeiro trabalhava no gabinete do então deputado estadual e, hoje, senador Flávio Bolsonaro]. Ninguém está inventando nada, isso é objetivo. As instituições democráticas precisam estar preparadas para se defender“, afirma.

*Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo

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