O decreto de Jair Bolsonaro que altera as regras para porte e posse de armas de fogo e também para a aquisição de munição e armamento, tornou mais fácil a vida de milícias na cidade e no campo. Ou seja, ajuda a trazer um verniz de legalidade para quem toca a morte como um negócio
Leonardo Sakamoto*
O decreto nº 9.785 de Jair Bolsonaro que altera as regras para porte e posse de armas de fogo e também para a aquisição de munição e armamento, tornou mais fácil a vida de milícias urbanas e rurais. Ou seja, ajuda a trazer um verniz de legalidade para quem toca a morte como um negócio.
O ato presidencial considera que uma longa lista de categorias não precisa “demonstrar a sua efetiva necessidade [de portar a arma] por exercício de atividade profissional ou de ameaça à sua integridade física“, critério previsto na lei 10.826/2003.
Caminhoneiros, conselheiros tutelares, políticos, jornalistas estão na lista. Mas também “residentes de áreas rurais” e agentes de forças de segurança da ativa e inativos. Nessas categorias, há quem faria uso para autodefesa e que, mediante justificativa, já pode pleitear porte ou posse. O problema é que as mudanças facilitam a vida de quem já usa armas em atividades criminosas.
Conforme este blog mostrou, tão logo o conteúdo do decreto veio a público, movimentos sociais que atuam na defesa do direitos dos trabalhadores rurais e dos povos tradicionais demonstram sua preocupação com as mudanças. De acordo com José Batista Afonso, advogado e coordenador da Comissão Pastoral da Terra no Pará, o decreto deve contribuir para o aumento das milícias rurais formadas por seguranças contratados e armados por fazendeiros e grileiros, dando um verniz de legalidade a uma situação já existente.
Milícias como essas têm sido acusadas de envolvimento nas mortes de trabalhadores e lideranças no campo. “Quem as usava [as armas] para cometer crimes, vai ter a situação legalizada. Quem não usava, poderá começar a usar“, afirma.
Mudanças também beneficiam milícias urbanas
Armas que eram de uso privativo de agentes de segurança passam a poder ser adquiridas pelo cidadão comum, como pistolas 9 mm e calibre .40. E o limite para compras de cartuchos de uso permitido (que, agora, englobam esses dois modelos) passou de 50 para 5 mil anuais. No caso de munição para armas de uso restrito, foi de 50 para 1 mil.
Ou seja, o mercado será inundado com munição anteriormente restrita a agentes de segurança – o que inclui aqueles que mudaram de lado e tornaram-se bandidos, os milicianos. Com mais projéteis em circulação e sem o anúncio de medidas específicas para identificá-los, torna-se mais difícil afirmar de onde eles saíram em futuras investigações.
“Foi ampliada a quantidade de munição que pode ser adquirida, mas sem exigência de marcação de lote“, afirma Bruno Langeani, gerente da área de Sistemas de Justiça e Segurança Pública do Instituto Sou da Paz. Ele lembra que esse tipo de marcação foi o que ajudou no esclarecimento de assassinatos, como o da juíza Patrícia Acioli, em 2011, por milicianos.
“Como justificar a liberação de armas ao cidadão comum que só a policia tem acesso?“, questiona Langeani. “E como justificar 5 mil cartuchos para quem tem arma para defesa em casa?” A partir de agora os próprios agentes e ex-agentes de segurança poderão comprar legalmente essa munição em quantidades suficientes para promover uma guerra.
O deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ), que presidiu a CPI do Tráfico de Armas e Munições e a CPI das Milícias, quando deputado estadual na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, afirmou anteriormente ao blog que as armas que cometem 82% dos homicídios no Rio de Janeiro vem do mercado legal e, em algum momento vai para o mercado do crime. São desviadas, roubadas, vendidas. “Existe um mercado legal de armamento que não é bem fiscalizado.”
Especialistas em direito que conversaram com o blog afirmam que a expectativa é de que o decreto de Bolsonaro seja derrubado no Supremo Tribunal Federal, através de uma das Ações Diretas de Inconstitucionalidade que foram apresentadas, ou pelo Congresso Nacional. Afinal, o Poder Executivo tomou o poder de legislar dos parlamentares ao propor essas alterações.
“O presidente só pode emitir um decreto, ou seja, criar uma norma, se ela seguir os estritos limites da legislação aprovada pelo Congresso Nacional e pela Constituição. O decreto de Jair Bolsonaro claramente extravasa os limites da lei, ampliando as possibilidades para o porte de arma de fogo. E, por isso, é um claramente ilegal.” A análise é de Eloisa Machado de Almeida, professora da FGV Direito SP e coordenadora do Centro de Pesquisa Supremo em Pauta.
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O problema é que, até que qualquer uma das situações aconteça, ele já está valendo. A obtenção do porte de armas não é imediata, mas quem já tem porte ou posse pode adquirir cartuchos em grandes quantidades. “Pode haver gente estocando munição neste momento“, afirma Bruno Langeani.
Isso abre uma outra discussão: como revogar a aquisição de munição e armamentos se o decreto vier a cair? Será uma disputa jurídica complicada, que pode incluir até pessoas que foram condenadas por estar com armas de uso restrito, como uma 9 mm, sem autorização para tanto e, com o decreto, pedirão a revisão da pena. Não se sabe se essa foi sua intenção, mas o presidente criou problemas em cascata ao assinar esse decreto. A questão é se isso não era planejado.
“Elegemos alguém de perfil autoritário e populista que aposta no ‘nós contra eles’ e na violência, o que inclui a liberação de armas, para legitimar e manter sua autoridade.” Para Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, medidas como o decreto devem ser analisadas em meio à situação política para poderem ser compreendidas.
De acordo com ele, Bolsonaro vem trabalhando nesse populismo e o autoritarismo violentos para deixar claro quem devem ser os inimigos. Ao mesmo tempo, libera armas para as categorias que são seus apoiadores políticos, como caminhoneiros, ruralistas e agentes de segurança. Sabota generais que estão em seu governo e conversa diretamente com cabos e soldados. Ignora a política institucional e fala direto com seus seguidores.
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“Analise o que ele disse na época em que defendeu milícias, o que falou durante as eleições, quem um de seus filhos empregou em seu gabinete [a esposa e a mãe do líder de uma das principais milícias do Rio de Janeiro trabalhava no gabinete do então deputado estadual e, hoje, senador Flávio Bolsonaro]. Ninguém está inventando nada, isso é objetivo. As instituições democráticas precisam estar preparadas para se defender“, afirma.
*Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo
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