O antes e o depois na vida de mulheres sequestradas por militares na ditadura
Durante quatro anos de investigação, jornalista comprovou 19 casos de sequestro de menores pela ditadura militar. O estado emocional das pessoas afetadas pelos crimes impactou o autor: “Estes crimes são um segredo dentro do segredo”
Maria Martha Bruno, Gênero e Número
Ansiedade, força, medo. Esses são alguns dos traços em comum que três mulheres sequestradas por membros das Forças Armadas durante a ditadura cívico-militar (1964-1985) carregam décadas, após a radical mudança de destino imposta a suas vidas ainda na infância.
Suas histórias foram reveladas pelo jornalista Eduardo Reina, que na última terça-feira, 2 de abril, lançou o livro “Cativeiro sem fim” (Editora Alameda), a fim de jogar luz sobre essa prática, quase esquecida nos porões do regime, mas já visibilizada em países vizinhos, como Argentina e Uruguai.
Durante quatro anos de investigação, Reina percorreu 20 mil quilômetros pelo país e comprovou 19 casos de sequestro de menores. Onze deles foram relacionados à guerrilha do Araguaia, movimento de resistência à ditadura na região conhecida como “Bico do Papagaio”, fronteira entre Pará, Maranhão e o atual estado do Tocantins (então Goiás). Das cinco vítimas que conheceu durante a pesquisa, três são mulheres.
O estado emocional das pessoas afetadas pelos crimes impactou o autor. “Não só as vítimas, como as pessoas no seu entorno tinham bloqueios históricos, humanos e físicos. Estes crimes são um segredo dentro do segredo”, avalia Eduardo.
Ele destaca o peso das descobertas para essas pessoas na vida adulta, dividida entre antes e depois das revelações sobre suas origens: “São duas vidas em uma vida só. Mesmo com as dificuldades que passaram durante a juventude, não há como minimizar com o sofrimento psicológico trazido pelas descobertas sobre o passado já na vida adulta. É um momento duro e delicado”.
Vidas espalhadas pelo país
Lia Cecília da Silva Martins começou a buscar suas origens ao constatar sua semelhança física com as tias, depois de vê-las em uma matéria de jornal. Ela é filha de Antônio Teodoro de Castro, um dos membros da guerrilha do Araguaia. A mãe seria uma camponesa ou uma parceira de Antônio no grupo. “Lia não tem mais esperanças de encontrá-la. Mas tem uma ótima relação com as tias, as irmãs de Antônio”, conta Eduardo. Ela já fez dois testes de DNA que, segundo o jornalista, deram mais de 90% de compatibilidade com as irmãs do guerrilheiro.
Ainda bebê, ela foi foi levada por dois militares para Belém (PA) e deixada em um orfanato. Acabou adotada pelo casal que administrava o local e somente em 2009 começou a garimpar de sua própria história, a partir da imagem das tias na imprensa. Hoje, mora no Rio de Janeiro e mantém uma boa relação com as famílias de adoção e de sangue. “É uma pessoa forte, que se autodescobriu e adora de paixão essas pessoas”, diz o jornalista.
A história de Rosângela Paraná tomou um rumo quase que oposto. “Ela sempre teve uma relação conflituosa com a família adotiva e reclama de maus tratos”, relata Eduardo. Nascida no Rio de Janeiro ou no Rio Grande do Sul, ela foi adotada por uma família de militares e levada para o Paraná. Aos 21 anos, soube por uma prima que aqueles não eram seus pais biológicos, que desconhece até hoje. Antes disso, no entanto, o lar adotivo já havia cometido mais uma violência: aos 18 anos, Rosângela foi obrigada a casar com um homem 36 anos mais velho, com quem teve duas duas filhas. Quando ficou viúva, chegou a casar de novo, mas a vida manteve seus descaminhos e Rosângela perdeu o segundo marido assassinado.
O encontro com Eduardo se deu em 2016, quando ele lançou seu romance de estreia “Depois da Rua Tutoia”. Baseado em fatos reais, o livro conta a história de uma mulher sequestrada ainda bebê por militares, em São Paulo. Uma das filhas de Rosângela entrou em contato com o autor, motivada pela narrativa. “É uma pessoa muito ansiosa e mesmo com dificuldades para falar”, diz Eduardo. Rosângela também tem medo de que a divulgação de sua história possa prejudicar suas filhas de alguma forma, mas, por outro lado, sustenta a esperança de que a obra ajude a encontrar sua família biológica.
No Nordeste do país, Iracema de Carvalho Araújo buscou na família que constituiu ainda adolescente força para recompor sua vida, após ser sequestrada junto com a mãe aos nove anos de idade. Ambas foram levadas para o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna, órgão do Exército) de Recife (PE), cidade onde viviam. Iracema foi vítima de torturas e testemunhou a mãe, Lúcia Emilia de Carvalho Araújo, também ser torturada. No início da década passada, ela começou a buscar os rastros de sua história no Recife. Sua mãe está desaparecida até hoje.
Quando saiu das dependências do DOI-Codi, Iracema foi deixada em uma praça, seminua, onde recebeu a ajuda de um casal. Mais tarde, vizinhos da casa onde ela morava conseguiram mandá-la para o Rio de Janeiro, onde se casou ainda adolescente e teve quatro filhos. Hoje, Iracema vive entre Recife e Francisco Morato, na região metropolitana de São Paulo, as duas cidades por onde sua família se espalhou.
Novas denúncias de sequestro
Em pouco mais de uma semana de divulgação do livro, antes de seu lançamento, Eduardo Reina conta que já foi procurado por mais de dez pessoas com novas histórias de sequestros. Nos últimos dias, a decisão de Jair Bolsonaro de estimular as celebrações do aniversário de 55 anos do golpe militar de 1964 teve repercussão negativa em boa parte da sociedade civil.
O presidente foi repreendido pela ONU, pela OAB, pelo Instituto Vladimir Herzog e pelo Ministério Público Federal. Antes do 31 de março, ele mudou o tom e disse que não sugeriu comemorar, mas “rememorar” a data. Além das críticas sobre os elogios ao golpe, Bolsonaro e os militares podem ter agora que lidar com uma caixa-preta indigesta sobre o período.
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