Os indígenas alertaram: o governo se prepara para dizimar a natureza. Está em curso uma ofensiva dos poderosos para acabar com as reservas florestais. A natureza, a diversidade cultural e a própria condição humana estão em risco
Nirlando Beirão, CartaCapital
A antropologia deu errado. Aquela antropologia que começou a se desenhar na segunda metade do século 19, na trilha da expansão colonial dos impérios europeus África adentro, para decifrar os nativos e, assim, propiciar para os invasores as ferramentas de submissão mais sutis do que a ostentação das armas.
A antropologia deu certo. Antropólogos e etnólogos acabaram descobrindo o fascínio de seu objeto de estudo, ao perceberem a riqueza cultural e a densidade humana dos povos a quem os poderes autoinvestidos do monopólio da “civilização” desprezavam como exóticos, excêntricos, quando não “primitivos”.
Uma das rupturas mais clamorosas com o dogma do eurocentrismo, aconteceu graças a uma geração de pesquisadores que se interessaram pelas inúmeras comunidades dos Mares do Sul, na Oceania. O polonês Bronislaw Malinowski (1884-1942) e, depois, a norte-americana Margaret Mead (1901-1978) escarafuncharam sociedades matriarcais que se revelaram muito mais livres, muito mais funcionais e muito mais felizes do que o padrão patriarcal do Ocidente cristão e do Levante islâmico.
A cavalaria da milícia sonha em aniquilar as reservas das 225 etnias restantes. Sem o índio, o ecossistema falece
Ms. Mead, em especial, observou, entre os adolescentes de Samoa, um comportamento que os freudianos iriam interpretar como a saudável ausência do complexo de Édipo. Sendo a mãe o núcleo da vida social e o pai biológico uma figura secundária, espectral, passageira, às vezes até desconhecida, a criança e o adolescente estão livres do fardo ambíguo de se submeter e ao mesmo de desafiar a autoridade patriarcal, usurpadora do amor da mãe.
A percepção de que as tribos humanas são diferentes, sem que isso signifique a primazia de uma sobre a outra, sedimentou a travessia de milhares de antropólogos e etnólogos por um largo acervo de culturas africanas, asiáticas, norte e sul-americanas. Os povos chamados selvagens foram buscando uma respeitabilidade nem sempre fácil de ser reconhecida.
No Brasil, o fluxo de pesquisadores franceses recrutados por ocasião da inauguração da USP, nos anos 1930 e 1940, desviou-se a princípio para o estudo de outra cultura igualmente polimórfica, oprimida, desprezada e eventualmente clandestina nos subterrâneos da cultura branca dominante.
Com scholars de renome como Roger Bastide à frente, a Academia invadiu os terreiros de candomblé e de umbanda, e encontrou nos cultos afro-brasileiros a riqueza, a beleza, a alegria, a liberdade, a dança, a musicalidade, que ajudaram os escravos traficados da África a resistir, sem perder a identidade étnica, coletiva e afetiva em meio ao ambiente hostil e mesmo opressor do catolicismo hegemônico.
Já os povos indígenas do Brasil foram brindados pelo estudo de campo daquele que foi considerado o mais renomado antropólogo do século 20. O belga de formação francesa Claude Lévi-Strauss internou-se, na segunda metade dos anos 1930, nas profundezas de Mato Grosso e frequentou as comunidade Bororo e Kadiwéu. Em 1938, organizou a Expedição Serra do Norte, com apoio do Museu do Homem, de Paris, estendendo seu interesse científico aos Nambikwara, Mundé e Tupi-Kawahib.
Ali, entre os menosprezados silvícolas do Centro-Oeste, um Lévi-Strauss de 20 e poucos anos começou a fecundar aquela que seria sua obra da maturidade, a mais revolucionária: O Pensamento Selvagem (1962). Mesmo as comunidades iletradas são capazes de produzir sistemas de apreensão da realidade, de conhecimento do mundo, de produção simbólica de mitos e lendas de uma extrema sofisticação – por que não? – intelectual. Uma das mais citadas frases de Lévi-Strauss diz: “Para serem felizes, os cidadãos dos países ricos precisariam incorporar algumas lições das sociedades primitivas”.
A perspicácia de antropólogo e o amor pela fotografia conduziram Lévi-Strauss até as tribos do asfalto. Em contraste com os “selvagens da floresta”, despejou sua fina ironia naquela São Paulo que se espelhava na Europa, mas que não conseguia ser senão provinciana e caipira.
Ao cidadão urbano submetido à platitude diária do que os franceses chamam de metro-boulot-dodo, aprisionado à ilusão insípida de quem se acha informadíssimo ao assistir ao Jornal Nacional, não há argumento capaz de convencê-lo da supremacia de povos que andam nus nas selvas, usam cocares e botoques e não dispõem de um Starbucks Café na esquina.
Assim pensam igualmente os fanáticos inescrupulosos do agronegócio e o ministro do Meio Ambiente, o qual despreza de tal forma o meio ambiente que decidiu acossar os nativos brasileiros exatamente por eles protegerem o que ainda é, sabe-se lá até quando, o mais rico ecossistema do mundo.
Enquanto a cavalaria miliciana se preparava em Brasília para o assalto aos 800 mil brasileiros nativos que sobraram, distribuídos em 225 etnias, percorria a Europa, com sua dignidade majestática, o único dignitário aqui da terra, salvo aquele outro que virou preso político, a ser recepcionado com respeito e atenção em lugares em que o presidente farsante e caricato é escorraçado o tempo todo.
O cacique Raoni Metuktire, líder dos Kayapó, refez sua histórica peregrinação de 30 anos atrás com o músico Sting, para reivindicar o mesmo de sempre: respeito às reservas de seu povo no Xingu. Passou pelo Festival de Cinema de Cannes, encontrou-se com o presidente francês, Emmanuel Macron, e recebeu a comovida solidariedade e um caloroso abraço do papa Francisco.
A sabedoria ancestral dos povos da floresta prega, pela voz de Raoni, que, se a mata for destruída, “não é só o índio que vai morrer”.
Fundador do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1910, o militar Cândido Rondon assinaria embaixo. Rondon, que tinha sangue índio, tornou-se marechal do Exército brasileiro ao fim de suas infindáveis missões para instalar uma rede de telegrafia no sertão mais profundo. Entendeu a importância e solidarizou-se com as comunidades da selva. Um patriota que o Exército entreguista do Capitão Zero hoje ignora.
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