Do Stonewall à Parada do Orgulho LGBT+
Foram anos de pressão até que a Parada obtivesse apoio e reconhecimento do Estado brasileiro.
Luis Gustavo Reis*, Pragmatismo Político
“Por que é que, culturalmente, nós nos sentimos mais confortáveis vendo dois homens segurando armas do que dando as mãos?” Ernest Gaines
Sem recorrer a eufemismos, a reflexão de Ernert Gaines escancara a barbárie ao questionar por que estamos mais habituados à violência do que ao amor. A frase dispensa complementos, mas vale outra indagação semelhante: por que o amor entre pessoas do mesmo sexo provoca incômodos e a morte de homossexuais e transgêneros indiferença?
Não é de hoje que o conceito de amor é relativizado para atender demandas específicas de parcelas da sociedade, condenando ao escárnio aquilo que é considerado “desvio de conduta”. A homossexualidade compõe esse rol de reprovações, milenarmente vilipendiada em diferentes sociedades, que serviram de referência para a banda ocidental do planeta.
A condenação aos homossexuais é notória nas diversas rotulações empregadas para descrever essa prática amorosa: doença, vadiagem, abominação, insolência, descaramento, transgressão à natureza, sodomia, pecado, frescura etc.
Em diferentes períodos históricos, os homossexuais, amargaram os dissabores por ousarem amar pessoas do mesmo sexo: apedrejados, conforme versava a Lei Judaica; degolados desde 342 d.C. na cristandade governada pelo imperador Constantino; queimados vivos nas fogueiras da Inquisição durante a Idade Média; trucidados e humilhados pelos nazistas nos campos de concentração.
No Brasil, durante os 322 anos de Período Colonial, eram previstas leis que puniam severamente os chamados sodomitas. A pena incluía confisco de bens, encarceramento nas masmorras, açoite em praça pública e diversos outros tipos de violência. Os descalabros não cessaram na Colônia, invadiram o Império, prosseguiram durante a instauração da República e continuam a manchar a história brasileira, mesmo após três décadas de estabelecimento do “Estado Democrático de Direito”.
Em 1988, um clima festivo contagiou diferentes segmentos da população, entusiasmados com a promulgação da chamada “Constituição Cidadã”. Os objetivos do documento, conforme constam em seu preâmbulo, eram assegurar “o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” para todos os cidadãos. Contudo, revelaram-se, na prática, uma garantia de direitos seletiva, com grupos visivelmente excluídos ou em situações evidentes de vulnerabilidade – marcados pelo descaso e ilegalidade–, como é o caso dos LGBT+.
Leia aqui todos os textos de Luis Gustavo Reis
Um relatório divulgado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) aponta que, em 2018, 420 lésbicas, gays, bissexuais e transexuais morreram no Brasil. Em outras palavras, conclui o estudo, significa dizer que a cada 20 horas um LGBT+ é assassinado ou se suicida vítima da “LGBTfobia”, o que classifica o país como campeão mundial desse tipo de crime. Considerando apenas as mortes, o relatório ainda destaca que os estados com maior número de suicídios e assassinatos de LGBT+ foram São Paulo (58), Minas Gerais (36), Bahia (35) e o Rio de Janeiro (32). Os menos violentos foram Amapá, que registrou 1 morte, e Roraima, Tocantins e Acre, com 2 cada.
Os dados são eloquentes, sobretudo num país onde cotidianamente repetem-se frases do tipo: “Viado tem mais é que morrer!”, “Viado bom é viado morto!”, “Prefiro ter um filho morto do que homossexual”, conforme pronunciou o presidente da República, Jair Bolsonaro.
Entre a opinião pública, há pessoas que alegam que a homofobia é uma farsa, tratando-se de uma invenção dos homossexuais para ganhar visibilidade. Cinicamente silenciam e fazem questão de não enxergar que o ódio aos LGBT+ não apenas existe, aqui e em diferentes países, como faz centenas de vítimas, e que, neste exato momento, há pessoas presas por serem gays, outras sendo executadas por serem lésbicas, além daquelas que estão sendo torturadas por serem transgêneras.
Uma semana após o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir que a homofobia e a transfobia devem ser enquadradas na lei dos crimes de racismo, demanda negligenciada pelo Congresso desde 2006, acontece a 23º Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, que relembra os 50 anos da Revolta de Stonewall. Cansados dos insultos e das frequentes abordagens truculentas da polícia, um grupo de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT) se revoltaram e partiram para o confronto aberto com policiais em um bar (Stonewall Inn) na cidade de Nova York (EUA), em julho de 1969. A revolta durou três dias e tornou-se o marco de diversas reivindicações por direitos LGBT, tanto nos Estados Unidos como em outros países. Passado um ano do episódio, em 28 de junho de 1970, cerca de 10 mil pessoas participaram da primeira Parada do Orgulho de Nova York, em celebração à Revolta de Stonewall. Desde então, a Parada foi organizada em outras diferentes cidades do mundo, sucessivamente, até os dias de hoje.
No Brasil, os movimentos de luta dos homossexuais surgem no final dos anos 1970, encabeçados pelo Somos – Grupo de Afirmação Homossexual. No entanto, é somente na segunda metade dos anos 1990 que o movimento LGBT ganha corpo e passa a empreender ações de maior visibilidade. Em 1995, aconteceu no Rio de Janeiro a 17º conferência do ILGA (Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersex) que terminou com um ato na praia de Copacabana. Dois anos mais tarde, ocorre a primeira Parada LGBT de São Paulo, onde cerca de 2 mil pessoas ocuparam a Avenida Paulista, no centro da cidade. Com o passar do tempo, o evento paulista se tornou o maior em todo o mundo, superando inclusive sua congênere nova-iorquina.
Foram anos de pressão até que a Parada obtivesse apoio e reconhecimento do Estado brasileiro. Conforme destaca um trecho do comunicado da 23ª Parada do Orgulho LGBT 2019,
a Parada de São Paulo é inspirada na coragem daquelas pessoas que se revoltaram contra a ordem ideológica, econômica, política e legal imposta por uma sociedade e um Estado de uma época. Como repetia a travesti negra Marsha P. Johnson, considerada a pessoa que arremessou a primeira pedra contra a fachada do Stonewall, dando início à revolta, “não há orgulho para alguns sem a libertação de todos nós”.
É inegável que a luta do movimento LGBT+ tem avançado e conquistado direitos no Brasil, como a união estável, a adoção, o casamento civil e a criminalização da homofobia. Todavia, ainda há um longo caminho pela frente. Por trás do arco-íris estampado nas bandeiras, existe um vermelho-sangue representado pelas centenas de homossexuais assassinados nos diferentes rincões deste país. Embora a euforia dos trios elétricos seja contagiante durante as Paradas, o abandono familiar, o preconceito e o arbítrio mutilam a cidadania de centenas de seres humanos todos os dias.
Leia também:
Joice Hasselmann ataca projeto anti-homofobia: “fere a liberdade religiosa”
Bolsonaristas estão furiosos com as cenas gays de “Bohemian Rhapsody”
Brasileiro assedia criança na Rússia com “piada” homofóbica
7 frases homofóbicas que as pessoas falam sem perceber
Ellen Page enfrenta Jair Bolsonaro sobre homofobia em documentário
O homem que desfilou com o ‘bikini quadradão’ em Salvador
*Luis Gustavo Reis é professor e editor de livros didáticos