Era fim de tarde e o vento frio agitava as árvores da praça. Os carros uivando na avenida, no limite da calçada. Alguns aposentados conversavam calmamente perto da fonte desativada, enquanto observavam com um olhar distraído as pessoas em suas bicicletas pedalando pela ciclovia. Como acontece em muitas cidades pequenas, nesta do oeste do Paraná tudo parece seguir um ritmo mais lento. Eu estava do outro lado da rua, defronte à praça, observando a cena que mais parecia uma fotografia amarelada encontrada no fundo de um baú, quando vi um rapaz que caminhava em passos descalços na calçada paralela à praça. A sujeira da cidade tinha se plantado no solo dos seus pés e criado raízes escuras. A calça pertencia a um corpo maior, o moletom encardido a braços mais curtos. Segurava com a mão esquerda uma embalagem amassada com comida. A mão direita se mantinha no bolso, os braços firmes contra o corpo num movimento intuitivo para se esquentar. Ele me viu postado do outro lado da rua e sorriu, acenando com a cabeça. Acenei de volta, apesar de não o conhecê-lo.
Tudo isso aconteceu em um minuto. Um minuto de Brasil, alguém diria. Quis compartilhar esse minuto, transformando-o em palavra. O nosso tempo tem sido atravessado de grandes acontecimentos. Às vezes, de grandes tragédias. Aparentemente, as gerações pós-industriais acreditam cada uma delas estar vivendo um grande acontecimento. E todas estão certas, talvez. Numa época em que o adjetivo “histórico” é reivindicado antes de o dia acabar, gostaria de registrar aqui esse minuto de desacontecimento, mesmo que as palavras, nas minhas mãos, não sejam suficientes para dar conta do movimento da vida. E com essa pequena história gostaria de me despedir desta coluna. Após escrever dezenas de artigos sobre “grandes fatos”, gostaria de encerrar essa trajetória com um desacontecimento.
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Neste momento, centenas de pessoas no Paraná se preparam para se reunir em Curitiba em uma grande manifestação. Em torno de 27 categorias, com destaque para professoras e professores, estão em greve neste Estado por conta da série de ataques à direitos históricos e arduamente conquistados promovido pelos governos anteriores e pelo atual, de Ratinho Jr. (PSD).
Entraram de greve na última terça-feira (25), por tempo indeterminado, para exigir o fim do congelamento dos salários e a retirada do Projeto de Lei Complementar 4/2019 que, além de manter os salários congelados, põe fim as progressões, dentre outros retrocessos. As servidoras e servidores do Estado estão desde 2016 sem reajuste salarial, e a defasagem já ultrapassa os 17%.
Está na baila da vez também a Lei Geral das Universidades, apresentada pelo Governo Ratinho, que promove uma miríade de retrocessos, especialmente no tocante a verba de custeio e gestão de pessoal. Se aprovada, como quer o governo do Estado à toque de caixa, estrangulará ainda mais o orçamento das universidades estaduais do Paraná – o que vem ocorrendo desde os governos de Beto Richa (PSDB) – como também poderá promover demissões em massa de funcionários e professores universitários efetivos e temporários.
Por isso e muito mais que centenas de trabalhadoras e trabalhadores estão em greve e irão às ruas de Curitiba na próxima segunda-feira (1), quebrando o discurso do governo que insiste em dizer que a greve não tem adesão.
É também com esse acontecimento que gostaria de encerrar esta coluna. Nestes três anos, busquei nesta coluna jogar luz nos cantos escuros dos acontecimentos e me esforcei, principalmente, em qualificar a discussão adotando argumentos baseado em fatos comprováveis e verificáveis. É fundamental, para além de discordar ou concordar, basear-se em argumentos baseados em verdades que têm o seu valor definido por sua ligação com os fatos.
— Fatos! — dizia expansivamente a bibliotecária de minha cidade natal, recordo-me agora. — Aonde estão os fatos? — questionava segurando com a mão esquerda erguida O Popular, jornal de maior circulação em Goiás. Na época em que eu era garoto e frequenta a biblioteca pública da cidade, ela era uma mulher alta, de uns trinta anos. Seus cabelos negros eram naturalmente ondeados, e formavam uma moldura elegante para um rosto inteligente e decidido. Tinha os olhos castanhos, muito vivos. Não usava pintura e vestia-se com simplicidade. Habituada ao ambiente sossegado de uma biblioteca, ela sempre fazia gestos extravagantes, como aquele que fez com o jornal. — Aqui é preciso agitar as coisas sempre — ela justificou uma vez, rindo alto.
Compartilho essa memória pessoal para dizer que aprendi muito neste tempo aqui com vocês. E agradeço – profundamente – pelo tempo que cada um me deu ao ler esta coluna, sei o quanto esse gesto é largo. Agradeço, ainda, todo o carinho da equipe editorial do Pragmatismo Político. Decidi me despedir daqui. E buscar novos desafios.
*João Miranda é professor de história. Email: recapiari636@gmail.com
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