Política

Como o “hacker de Araraquara” mostrou quem é quem no Brasil

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Por vias tortas, o hacker de Araraquara mostrou que por mais mecanismos que se tente implementar nas democracias modernas, o papel do Estado continua sendo o mesmo da sua origem: proteger os interesses dos detentores dos meios de produção e garantir a hegemonia do capitalismo

(Imagem: Reprodução/RepórterAM)

por Anderson Pires*

Um hacker escancarou as entranhas do Estado Brasileiro. Por vias tortas, Walter Delgatti mostrou que por mais mecanismos que se tente implementar nas democracias modernas, o papel do Estado continua sendo o mesmo da sua origem, proteger os interesses dos detentores dos meios de produção e garantir a hegemonia do capitalismo.

Além disso, o episódio permitiu verificar que as percepções a respeito das mensagens de autoridades que foram roubadas do Telegram, como o ex-juiz Sérgio Moro e o Coordenador da Lava Jato, Deltan Dalagnol, estão impregnadas de moralismo.

Para os apoiadores da Lava Jato, majoritariamente eleitores de Jair Bolsonaro, a moral que os guia vai no sentido de proteger seus heróis e direcionar todas as atenções para o ato ilegal praticado pelo hacker, tentando fazer correlações ilícitas com partidos e personalidades de esquerda, como forma de diluir os crimes que porventura sejam apurados nas mensagens. É a ótica de quem acredita no Estado como condutor de interesses da parcela dominante e que aos seus todos os pecados são permitidos. E, como legítimos herdeiros da moral cristã, a absolvição é fruto da cruzada que travam com o propósito de eliminar os demônios que assolam a sociedade brasileira.

São condescendentes com contradições as mais absurdas, como a proliferação de armas, a banalização do direito de matar, a flexibilização da atuação de milícias, o patrimonialismo, o uso da justiça de forma relativa, a condenação de quem lhes convém sem provas, o abuso de autoridade por agentes públicos, a interferência em processos eleitorais e a busca de ganhos financeiros privados a partir dos “resultados” da função pública.

Por outro lado, os identificados mais a esquerda, que dizem condenar essas práticas, talvez não percebam que essa armadilha estatal também é fruto das concepções que defendem. O Estado Brasileiro é uma radiografia da desigualdade, da divisão de espaços por critérios socioeconômicos. Os donos continuam sendo os mesmos. Os filhos de juízes são juízes. Os filhos de procuradores são procuradores. Majoritariamente, as funções públicas de maior remuneração e poder são ocupadas por pessoas vindas das classes de maior renda, com a conivência e defesa de quem diz combater a desigualdade. O mesmo ativismo de esquerda que questiona distorções sociais é o que defende a estabilidade no emprego público e a permanência dos concursados ad eternum, como um dogma que não pode ser questionado. Colaboram para perpetuarem desigualdades e garantem o controle do Estado por quem sempre o controlou.

A lógica que se tornou regra, dado que é legitimada por todas as classes, é que a entrada no serviço público garante a propriedade de uma parcela do Estado e, sendo assim, muitas funções chegam a ter um perfil hereditário. Nas mais diversas áreas é comum familiares ocuparem as mesmas funções por gerações seguidas. Isso pode ser verificado no judiciário, no executivo e até nas universidades.

Por mais que se aprofundem mecanismos democráticos, como eleições e consultas, será uma tarefa milenar quebrar essa lógica que estabelece quem são os donos do Estado e que, sendo assim, a esses é permitido fazer uso dele como um posseiro, muitas vezes passando por cima da lei e corrompendo o caráter público. Uma lógica que perpassa extremos da direita à esquerda. A diferença básica é qual o tamanho que o Estado deve ter e a quais prioridades servirá. O direcionamento político irá determinar para qual lado pender, mas em qualquer situação os agentes continuarão sendo os mesmos e, por conseguinte, a desigualdade mantida.

Todo esse resgate serve para debater as origens das práticas da Operação Lava Jato, que durante seu percurso vem fazendo uso da posse estatal, passando por cima de limites da legalidade e, por que não dizer da razoabilidade? Sobra moralismo, juízo de valor, e, principalmente, sob a lógica de que se são os donos e vivem numa sociedade capitalista, tudo se justifica, pois agem em torno dos interesses que defendem, a exemplo da busca por lucratividade, moralmente aceita, mesmo que ilegal.

Se as mensagens que o hacker expôs são verdadeiras ou não, isso é um questionamento que deverá ser feito ao longo das investigações. Mas uma coisa é certa, o conteúdo atesta que juízes e procuradores agiram de forma intencional e na busca de ganhos privados, tendo o serviço público como trampolim.

Na hora em que ministros do Supremo e membros do Ministério Público Federal passam a agir como consultores sobre os destinos das eleições brasileiras para grandes investidores, a exemplo dos ligados a XP Investimentos, fica claro que essa parcela do Estado transfigurada em proprietários é só uma extensão de grandes corporações financeiras, as quais resolveram dividir parte dos lucros, através do pagamento por palestras e reuniões secretas de consultoria.

Independente da condução dos processos da Operação Lava Jato, a relação perniciosa verificada entre promotores, juízes e ministros com setores do empresariado, deixa claro que existe lado e que os desdobramentos dessa operação favoreceram politicamente o presidente eleito, quebraram os principais grupos do setor produtivo brasileiro e proporcionaram um ambiente, no qual o rentismo voltou a ser a atividade mais lucrativa no país, basta verificar os recordes sucessivos que os bancos vêm acumulando.

Mas se os bancos ganham bilhões, alimentam seus agentes públicos com pequenos quinhões. Cachês por apresentações em que, além de se comprometerem fazendo previsões, ainda assumem compromissos formais posteriores, como fez o Ministro Luiz Fux no evento para investidores Expert XP 2019, quando prometeu aos seus ouvintes que na presidência do Supremo, a Lava Jato terá seu amparo para continuar a missão que vem cumprindo. Para quem acha que a corrupção é o maior dos males, isso pode servir de justificativa. Mas precisam fechar os olhos para as ilegalidades praticadas em torno desse fim.

Para quem enxerga que a principal mazela do Brasil é a desigualdade social, Fux fez um juramento: no que depender dele, o caminho continuará sendo o mesmo, com mais proteção aos banqueiros, portanto aumento da pobreza e, como “bom carioca” garantiu que o show vai continuar, porém espera ser reconhecido pelo seu desempenho. Saiu do evento aplaudido.

Num país onde Moros, Dallagnols, Fuxes, Fachins e outros sobrenomes pomposos agem como donos do Estado, falta discernimento para os Silvas entenderem que não será defendendo essa estrutura secular que irão mudar uma história de dominação. O hacker deu uma forcinha para relembrar quem é quem no Brasil, quais interesses estão em jogo e que em meio a tudo isso, escolheram até o ator político que lhes garanta mais segurança. Se para Moro e Dallagnol vale a máxima, “in Fux we trust”, lá em Portugal, diriam: “Tudo como dantes no quartel d’Abrantes”.

Anderson Pires é jornalista formado pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), publicitário e cozinheiro.

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