Redação Pragmatismo
África 02/Jul/2019 às 04:02 COMENTÁRIOS
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Nova primavera árabe?

Publicado em 02 Jul, 2019 às 04h02

Nova primavera árabe? Discutindo as revoluções ocorridas no norte de África em 2019.

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Conflitos em Líbia (Imagem: Redaction)

Felipe Antonio Honorato*, Pragmatismo Político

No Sudão, Omar al-Bashir foi deposto após 30 anos no poder. Na Argélia, Abdelaziz Bouteflika caiu depois de 2 décadas de governo. Já na Líbia, o exército do Marechal Haftar tenta avançar em direção a Trípoli, a capital, numa tentativa de unificar um país que está fraturado em três governos desde a queda de Muammar Gaddafi, ditador deposto por uma insurgência apoiada pela OTAN e os EUA em 2011. Estes acontecimentos fizeram com que muitos acreditassem que o que está acontecendo na África islâmica é uma nova primavera árabe.

Para discutirmos se este paralelo é realmente válido e falar um pouco sobre o contexto histórico destes países, conversamos com a professora Anselma Sales. Anselma é bacharel em letras e linguística pela UNICAMP, mestre e doutora em letras pelo Programa de Estudos Árabes da FFLCH-USP, tendo como temas de pesquisa a literatura egípcia e palestina.

Pragmatismo Político: Líbia, Sudão e Argélia não são países conhecidos a fundo pela maioria dos brasileiros. Por isso, gostaria de iniciar esta entrevista fazendo duas perguntas de respostas extensas, mas que são muito oportunas. A primeira: de forma resumida, qual o histórico colonial destas 3 nações?

Anselma Sales: A Líbia foi incorporada pelo Império Otomano no século XVI e no século XX passa a ser controlada pela Itália. No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, o país é ocupado por militares franceses e britânicos, vindo a obter sua independência apenas em 1951, tornando-se uma monarquia. No caso do Sudão, este país é integrado pelo mundo árabe no século VII, passando a ser possessão egípcia entre os anos 1820 e 1822, em que se tornou, consequentemente, área de influência da Inglaterra. Um movimento nacionalista manteve o país independente durante um pequeno intervalo, compreendido entre 1881 e 1889, após essa pequena fase de autonomia os ingleses retomaram a ocupação, de modo que apenas em 1956 o Sudão obteve a independência de fato. Já a Argélia, assim como a Líbia, tornou-se uma possessão otomana a partir do século XVI. Em meados de 1830 a França inicia um processo de ocupação do território argelino, cuja oposição mais significativa foi o levante popular de 1945, que após ser violentamente reprimido cedeu lugar a uma organização mais efetiva de atuação armada contra o domínio francês, a Frente de Libertação Nacional, FLN, que passou atuar a partir de 1954. Adotando a guerrilha e o terrorismo como resposta aos ataques dos colonos direitistas franceses, a FLN saiu vitoriosa do conflito e a França reconheceu em 1962 a independência da Argélia. Constata-se, portanto, a atuação colonialista expressiva da França e da Grã-Bretanha na trajetória desses três países.

PP: A segunda: quais foram os desdobramentos políticos pós independência nestes países?

AS: A monarquia na Líbia foi derrubada em 1969 por um grupo de militares nacionalistas e socialistas, dentre eles Muamar Gaddafi, que proclamou a República, expulsou os militares estrangeiros do país e nacionalizou as empresas. A Argélia adotou o mesmo alinhamento socialista e sob a presidência de Ahmed Ben Bella nacionalizou as empresas de petróleo e distribuiu terras. O caso do Sudão é um pouco mais complicado, pois o país desde a independência enfrenta conflitos com o Sudão do Sul, que conquistou sua independência em 2011, como também tenta conter uma guerra devastadora na região oeste, conhecida como Darfur.

PP: Falando especificamente da Líbia: quem foi Gaddafi e qual foi o grau de participação das potências ocidentais em sua emergência como presidente e queda do mesmo posto?

AS: Gaddafi emerge como dirigente da Líbia após integrar um grupo de militares nacionalistas que depuseram o rei Idris I e instauraram uma república de base identitária árabe e islâmica e ideologicamente alinhada ao socialismo. Essa filiação socialista o fez aproximar da União Soviética, no entanto, o projeto de direção da nação Líbia foi autonomamente criado e conduzido por Gaddafi, que em seu Livro Verde, publicado em 1975, reafirmou o nacionalismo árabe e o socialismo islâmico como fundamentos governamentais. Gaddafi permaneceu no poder por 42 anos e suas medidas de utilização dos recursos do petróleo para gerar progresso social levaram à Líbia a um nível de desenvolvimento bastante significativo. No entanto, após divergências com os Estados Unidos, em decorrência do posicionamento anti-sionista de Gaddafi e acusações de envolvimento em ações terroristas, a Líbia sofre um embargo econômico que em pouco tempo provocou uma generalizada insatisfação popular. Além disso, a repressão à opinião pública e a perseguição a desafetos políticos agravou o descontentamento do povo líbio com o governo de Muamar.

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PP: Gamal Nasser foi uma grande influência do jovem Gaddafi. Quem foi Nasser e qual era sua linha de pensamento?

AS: Nasser, militar assim como Gaddafi, liderou um movimento em 1952 que depôs o rei Faruk I e instaurou em 1953 a independência definitiva do Egito. Considerado o principal idealizador do pan-arabismo moderno, Nasser promoveu através da divulgação de sua ideologia nacionalista a união do mundo árabe contra o neo-colonialismo. Nasser modernizou o Egito e através de medidas de nacionalização de empresas, principalmente a Companhia do Canal de Suez, levou o país a um elevado desenvolvimento econômico.

PP: Em minhas aulas, sempre dou os acontecimentos políticos na Líbia como um exemplo de dilema ético: havia um ditador no poder, mas que mantinha o país coeso; hoje não há mais um ditador, porém a Líbia nunca mais atingiu a estabilidade política. Você concorda que a Líbia atual representa um dilema ético? Fale, também, do presente panorama político no país, sobre quem é o Marechal Haftar e o que ele representa.

AS: Concordo que a Líbia hoje representa um dilema ético, por um lado havia uma estabilidade política mantida pelo poder central de Gaddafi, por outro, após a deposição do ditador, houve uma fragmentação generalizada de forças que se encontram em permanente confronto. O general Haftar, antigo desafeto de Gaddafi e de visão pró-ocidental, assumiu a missão de estabilizar o país através do ataque sistemático às milícias locais que continuaram a se enfrentar desde a morte de Muamar Gaddafi. A necessidade de retomada econômica e política da Líbia faz com que as ações de Haftar sejam vistas com bons olhos pela população do país.

PP: Migrando o foco para a Argélia: quem é Abdelaziz Bouteflika, o que é o chamado “le pouvoir” e qual a responsabilidade deles dentro da onda de protestos massivos e descontentamento que tomou o país em 2019?

AS: Bouteflika atuou no processo de independência da Argélia como membro da Frente de Libertação Nacional, sendo posteriormente Ministro das Relações Exteriores no governo de Ben Bella. Tornou-se em 1999 o quinto presidente da Argélia, cargo para o qual foi reeleito sucessivas vezes, ficando no poder até 2019, em que foi obrigado a renunciar em decorrência de denúncias de corrupção num contexto grave de crise econômica e política. Essas denúncias de corrupção dizem respeito aos chamados “le pouvoir”, grupo formado por militares e civis poderosos que interferem arbitrariamente nas decisões políticas como também na escolha dos presidenciáveis.

PP: Vamos falar sobre o Sudão agora: o que está se passando, politicamente, por lá?

AS: Para entendermos os acontecimentos atuais é preciso voltar um pouco no tempo, especificamente no período anterior à independência do Sudão. No ano de 1955 a parte sul do país entra em guerra com a parte norte em oposição à dominação islâmica que partia do governo central do Sudão e era imposta ao Sul, cuja identidade era incompatível às determinações desse centro decisório sudanês. Esse conflito inicial, chamado de Primeira Guerra Civil Sudanesa, entendeu-se até 1972. No entanto, em 1983, inicia-se a Segunda Guerra Civil Sudanesa em oposição à instauração da Lei Islâmica (Charia) por todo o Sudão; este conflito terminou apenas em 2005, deixando um saldo de mais de 2 milhões de mortos. A partir desse segundo conflito civil foi instituída a Região Autônoma do Sudão do Sul, cuja independência de fato foi concluída em 2011, tendo o Movimento de Libertação do Povo Sudanês (SPLM) como parte integrante do novo governo. Porém, um outro grave conflito iniciado em 2003 a oeste do Sudão, na região denominada Darfur, envolvendo etnias muçulmanas e não muçulmanas locais, tem impossibilitado a pacificação efetiva do Sudão e a materialização de uma estabilidade política.

PP: Qual (ou quais) foi o estopim de todos estes desdobramentos?

AS: A não aceitação do governo islâmico de Cartum, capital do Sudão, por parte do Sudão do Sul, de maioria não-muçulmana, provocou as duas guerras civis. Mesmo após o acordo de paz assinado entre o governo e o Exército de Libertação do Povo Sudanês (SPLA), que resultou na independência, questões relativas à exploração do petróleo ainda causam desentendimentos. O Sudão do Sul possui a maior parte das reservas de petróleo, mas depende da infraestrutura do Sudão para o escoamento do produto e consequente geração de receita. No caso do Darfur, os conflitos entre etnias, desencadeados por disputas de terras, têm provocado uma das mais graves crises humanitárias no continente. As guerras entre as tribos rivais resultam em assassinatos, estupros, destruição de povoados e miséria, além de um elevado número de refugiados. O presidente deposto em abril deste ano, Omar Hassan al-Bashir, é acusado de apoiar a limpeza étnica promovida pela milícia Janjaweed.

PP: Você poderia nos contar sobre quem é Omar al-Bashir?

AS: Omar al-Bashir é um militar de 75 anos que mediante golpe de estado depôs o governo democraticamente eleito de Sadiq al-Mahdi e tornou-se presidente do Sudão em 1989, cargo para o qual foi reeleito diversas vezes mediante acusações de fraudes. Após 30 anos no poder, foi deposto do cargo em abril de 2019 como resposta às manifestações populares que exigiam a sua retirada. Omar al-Bashir é acusado de genocídio e crimes de guerra pelo Tribunal Penal Internacional (TPI).

PP: O Sudão, sob a batuta de al-Bashir, tem um histórico de crimes de guerra. Pode falar sobre este histórico e em qual contexto ele se deu?

AS: Bashir é acusado de patrocinar diversos ataques às tribos rebeldes da região do Darfur que resultaram na morte de mais de 400.000 pessoas e no refúgio de cerca de 2, 6 milhões de pessoas. A opção de Bashir pelo extermínio em detrimento da negociação fez a Corte Internacional Penal expedir alguns mandados de prisão contra ele, no entanto, esses mandados não foram cumpridos, uma vez que sua legitimidade foi questionada pela União Africana, Liga Árabe e o Grupo dos Não-Alinhados.

PP: O Tribunal Penal Internacional acusou o mandatário destes crimes de guerra. Porém, o ex-presidente nunca foi preso e fez várias viagens internacionais após as acusações. Desde sua deposição, Omar al-Bashir está sob custódia da junta militar que assumiu o governo do país. De que forma esta prisão pode colaborar para que ele, finalmente, seja responsabilizado por estes crimes?

AS: Observadores e ativistas de Direitos Humanos como também pacifistas em geral esperam que essa prisão resulte em um julgamento justo, que possa servir de exemplo a outros líderes que cometeram e cometem atitudes semelhantes às de Bashir.

PP: Você acha que haverá um acordo que privilegie a via democrática entre a junta militar e civis dentro desta transição no Sudão?

AS: Esse acordo necessita urgentemente ser firmado e mais nações deveriam envolver-se na mediação desses conflitos, porque enquanto isso não ocorre milhares de pessoas estão morrendo ou sendo forçadas a abandonar seus locais de origem. A instabilidade provocada pela guerra gera milhões de refugiados e inviabiliza qualquer possibilidade de desenvolvimento do Sudão. Todos os esforços para que se busque uma saída democrática devem ser tentados, como forma de mostrar ao mundo que conflitos graves como esses que ocorrem no Sudão podem ser resolvidos mediante o exercício de uma solidariedade coletiva.

PP: Para finalizar: na sua opinião, é possível traçar paralelos entre a Primavera Árabe e o que está acontecendo agora na África islâmica?

AS: São possíveis sim esses paralelos, sobretudo se considerarmos as mobilizações populares que expressam um anseio pela construção de uma representatividade política mais efetiva e justa nesses países. No caso do Sudão, as manifestações contra Omar al-Bashir mostram o descontentamento da população com a instabilidade econômica e política do país, já no caso da Argélia, se constata a ineficácia de ações políticas que possam contemplar as demandas mais imediatas da população. A Líbia tenta depositar sua confiança nas medidas de estabilização que estão sendo levadas a cabo pelo Marechal Haftar, após a onda de conflitos que se instaurou no país com o fim da era Gaddafi. Por fim, o que se espera é que não haja uma repetição dos arbítrios e que os recursos naturais, sobretudo o petróleo, sejam efetivamente utilizados em benefício do desenvolvimento dessas nações, para que possam progredir autonomamente sem conflitos graves e sem a interferência das potências ocidentais.

*Felipe Antonio Honorato é professor universitário, bacharel em gestão pública e mestre em estudos culturais pela USP, especialista em gestão de políticas públicas de gênero e raça pela UnB

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