Bastariam os delitos que o próprio Sergio Moro relatou para tirá-lo do governo – talvez, rumo à prisão. Sua persistência, e as ações explícitas dos EUA para protegê-lo, confirmam: ele é um nó central da guerra híbrida na qual o Brasil foi mergulhado
Antonio Martins, Outros Quinhentos — Do alto de décadas de experiência, o jornalista Jânio de Freitas chamou-a de operação virada de mesa. Seu fulcro ocorreu na quinta-feira (25/7). O ministro Sérgio Morto tentou, num movimento de ousadia extrema, destruir os sinais cada vez mais abundantes de que, quando juiz, agiu com parcialidade flagrante, visando interferir na disputa pela Presidência e favorecer uma coalizão de forças que o levaria ao governo.
Jânio reconstrói os fatos, utilizando-se das próprias declarações (ou tuítes) do ministro. Em evidente abuso de poder, ele apoderou-se dos registros de uma investigação que corria em sigilo de justiça. Passou a disparar, para altas autoridades da República, telefonemas nas quais as “alertava” para o fato de suas comunicações terem sido supostamente vazadas por hackers. É muito duvidoso que se referisse apenas aos autos do processo. Tudo indica que se apoiou, principalmente, em informações (e violações) produzidas nos EUA. Seus objetivos eram claros: a) construir rapidamente um consenso em favor da destruição do material; b) ainda mais importante, estigmatizar – e tornar politicamente inócuas – as revelações feitas por The Intercept sobre sua conduta. O plano era óbvio: tudo recairia na vala comum dos vazamentos produzidos por criminosos e, portanto, de efeito nulo e divulgação condenável.
Mas a tentativa de Sérgio Moro fracassou.
Primeiro porque, já pela manhã, o jornalista Glenn Greenwald revelou a Veja diálogos que manteve com o hacker que o abastece de informações. Ficou claro, então, que há em curso dois vazamentos: o de The Intercept, que teve como foco os diálogos do procurador Deltan Dallagnol no Telegram; e um outro, incomparavelmente mais vasto, que é atribuído a pequenos estelionatários paulistas – mas só pode ser obra de agentes muito mais poderosos. O segundo motivo do fracasso é a dignidade que ainda resta no STF. Na tarde da quinta, o ministro Marco Aurélio Mello frisou, em entrevista à jornalista Monica Bergamo, que Moro não tinha nem a mínima autoridade para destruir o conteúdo das gravações, nem mesmo direito de acesso a elas.
A operação virada de mesa foi, em sua primeira tentativa, abortada. Pior, para Moro: começaram a surgir sinais de que o feitiço poderia virar contra seu inábil urdidor. No fim de semana, a Folha de S.Paulo lembrou que, de acordo com o princípio constitucional de “ampla defesa” e segundo a jurisprudência do STF , os réus têm direito a obter e invocar, em seu favor, mesmo as provas produzidas de maneira ilícita. Ou seja, os registros das “centenas de violações de sigilo na internet” além de não serem destruídos, teriam de aparecer. Talvez por isso, veio nova reviravolta acrobática. Nas últimas horas, a hipótese de “cerca de mil” vazamentos, afirmada com tanta certeza e alarde há poucos dias, começou a ser relativizada. Agora seriam “algumas dezenas”, “talvez trinta”, dizem fontes da PF – e surge uma nova explicação para o milhar antes propagado. Seriam 976 os números de telefone existentes na agenda dos hackers-estelionatários (imagine quantos você possui…) – e não a quantidade de autoridades invadidas…
Seja como for, o malogro da operação virada de mesa deixou totalmente a nu as ilegalidades praticadas por Moro. Não são mais suposições a serem investigadas. São informações de malfeitos que o ministro postou para que fossem difundidas – crente no sucesso da pressão produzida. Falta-lhe, agora, toda autoridade moral para permanecer ministro; e talvez o caso seja, como aventou Ciro Gomes, de prisão preventiva – já que o ministro tentou claramente destruir provas de um caso em que é o provável transgressor.
Mas então, por que Moro se mantém? Aqui, é melhor evitar as afirmações altissonantes e genéricas, como “O Estado de direito há muito tempo foi rompido”. Sim, foi – mas constatá-lo de muito pouco serve. É preciso identificar claramente as forças e interesses que se articulam para nos manter em estado de exceção.
A chave parece estar num artigo desbravador de José Luís Fiori e William Nozaki, publicado em Outras Palavras. O Brasil tornou-se há alguns anos, mostra o texto, alvo pioneiro da mudança de orientação estratégica operada pelos EUA, visando a conservação de sua supremacia ameaçada. Esta estratégia supõe declaradamente a “guerra híbrida”, as intervenções externas, as formas “constitucionais” de golpes de Estado. A “luta contra a corrupção” é o pretexto principal da cruzada. E Sérgio Moro, até há alguns anos um obscuro juiz de primeira instância, ganhou destaque porque ligou-se aos planos norte-americanos desde 2009, quanto o Bridge Project estabeleceu a “colaboração” entre certas varas do Judiciário brasileiro e o Departamento de Justiça dos EUA. A proteção que Washington procura lhe oferecer chega a detalhes: como o esforço do consulado norte-americano, esta semana, para dificultar viagem internacional dos filhos de Glenn Greenwald, o jornalista cujas revelações incomodam o ministro.
Significa que ele e Bolsonaro são imbatíveis? Certamente não. Em outro texto, escrito há dois meses, o mesmo Fiori mostra que a virada estratégica de Washington fracassou em diversos países onde foi adotada, sendo a “operação Bolsonaro” seu êxito mais significativo. Em meio a uma coleção de derrotas, uma vitória rara, que pode ser revertida.
Mas o enorme esforço que necessário para tanto surge num ensaio dos sociólogos franceses Pierre Dardot e Fraçois Laval, que também estampamos hoje. Moro e Bolsonaro não cairão nem por sua indigência intelectual e moral, por suas suas patetadas, ou por seus atentados à Constituição ou às leis, sugere o texto. Eles expressam um neoliberalismo transformado, que visa impor a qualquer custo a lógica do capital em todas as esferas da vida humana e já despreza a democracia e o direito. Este projeto não recua diante de suas próprias derrotas – ao contrário, transforma-as em novas exigências. “Se a austeridade gera déficit orçamentário, é preciso acrescentar uma dose suplementar. Se a concorrência destrói o tecido industrial ou desertifica regiões, é preciso aguçá-la ainda mais entre as empresas, entre os territórios, entre as cidades. (…) Se a diminuição de impostos para os ricos ou empresas não dá os resultados esperados, é preciso aprofundar ainda mais nisto”.
Para vencer esta ameaça – expressa no espetáculo de horrores que parece se renovar a cada dia no Brasil – talvez já não baste uma esquerda que se limite aos programas, estratégias e táticas que marcaram os séculos XIX e XX.
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