Um samurai negro no Japão
Luis Gustavo Reis*, Pragmatismo Político
Uma das figuras mais associada à História do Japão é o samurai. Símbolo basilar da cultura japonesa, os samurais foram e ainda são temas de filmes, novelas, desenhos aminados, jogos de videogame, livros e de várias interpretações produzidas pelo Ocidente.
Os filmes hollywoodianos, por exemplo, foram pródigos em difundir a imagem do samurai destemido, conhecedor de golpes sofisticados e movimentos espetaculares. Personagens habilidosos figuram como exímios cavaleiros, empunhando espadas afiadas, lanças e arco e flechas robustos. Quem nunca assistiu à uma das lutas homéricas entre o folclórico Bruce Lee e algum samurai, invariavelmente finalizada com a vitória do primeiro?
Os samurais eram guerreiros e formavam o grupo dominante no Japão. Sua origem remonta ao século VIII, época em que começaram a atuar como coletores de impostos e servidores do imperador. Como essa tarefa exigia pessoas severas para controlar a insatisfação dos camponeses, selecionavam-se os mais destemidos. Aqueles que eram destinados a seguir a carreira de samurai – escolha bastante restrita, a bem da verdade –, recebiam treinamento rigoroso desde muito cedo. Entre os ensinamentos primordiais, estavam a coragem e a lealdade acima de qualquer outro valor.
Em japonês, a palavra samurai significa “aquele que serve”. Por isso, a responsabilidade maior do samurai era servir, com extremo empenho, os daimyôs (senhores de terras) que os contratavam. Esses guerreiros juravam fidelidade ao seu senhor, defendiam o território e, em troca, recebiam terras ou parte da produção agrícola. Seguiam um austero código de honra chamado Bushido que, por séculos, norteou a conduta moral de seus signatários. De acordo com este código, diante da derrota, um samurai deveria cometer suicídio em um ritual intitulado seppuku, que significa “cortar o ventre”. O Bushido era inspirado em uma máxima muito difundida em terras nipônicas: a vida é limitada, mas o nome e a honra duram para sempre.
Para o samurai, a morte era um meio de perpetuar a existência. Tal filosofia potencializava a eficiência durante os conflitos, o que fazia do samurai o mais letal dos guerreiros. Quando a morte ocorria em campo de batalha, quase sempre era acompanhada de decapitação. A cabeça do derrotado era um troféu, uma prova de que ele realmente fora vencido. Ao tomar conhecimento desses fatos, vários ocidentais passaram a propagar a ideia de que os samurais eram exclusivamente bárbaros.
Em meados do século XVI, o Japão era divido em províncias governadas pelos daimyôs. Envoltas em uma brutal guerra civil, iniciada no século anterior, diversas famílias se digladiavam com o objetivo de ampliar seus poderes e estabelecer o controle absoluto da região. Essa época ficou conhecida como Era dos Sengoku (Estados em guerra), e foi responsável pela morte de milhares de japoneses.
Foi durante esse agitado período que ocorreu o primeiro contato com ocidentais. Um navio chinês, com três portugueses a bordo, aportou no Japão. Na bagagem, os marítimos carregavam armas de fogo – rapidamente adotadas pelos senhores de terra japoneses. O contato entre Portugal e Japão ampliou-se significativamente, e os lusitanos passaram a difundir língua, religião, hábitos e formas de organização social europeias em terras nipônicas. Além disso, transportavam africanos escravizados e introduziram o comércio escravagista. Entre os escravizados estava um africano chamado Yasuke, considerado o primeiro samurai negro da história japonesa.
Nascido entre 1555 e 1566, na atual região de Moçambique, Yasuke recebeu pouca atenção dos estudiosos, por isso, passagens significativas de sua trajetória ainda estariam por ser descobertas. Em meados do século XVI, Yasuke chegou ao Japão acompanhando de seu senhor, o jesuíta Alessandro Valignano, missionário responsável por introduzir o catolicismo no Oriente.
A disputa por território entre os senhores de terra prosseguia, tornando a região bastante instável e perigosa para os religiosos. Preocupados com a segurança da missão catequética, os jesuítas utilizavam a experiência militar que Yasuke havia aprendido na África e delegaram a ele a responsabilidade de cuidar do grupo. O africano aprendeu a falar japonês, passou a detectar riscos para os missionários, formou alianças com senhores de guerra locais, treinou milicianos e adquiriu novas técnicas militares, incluindo artes marciais japonesas e habilidade com espadas.
Ao passar pelas vilas japonesas, Yasuke destacava-se por suas habilidades como guerreiro: sua estatura vistosa (estimava-se que media quase 2,0m), sua força física e pela sua pele preta, característica jamais vista no Japão até então. Conta-se, que a excentricidade de Yasuke fazia com que dezenas de pessoas se aglomerassem nas cercanias do aldeamento onde vivia para vê-lo trabalhando. Estupefatos ante o corpo reluzente do negro, faziam fila para cumprimentá-lo e receber um sorriso.
A fama de Yasuke correu as ilhas do país e despertou a atenção de um poderoso daimyô, chamado Oda Nobunaga, que fez questão de conhecer o negro e as habilidades do famoso estrangeiro. Impressionado com a força do escravizado, arrematou o africano dos jesuítas e o transformou em escudeiro de sua guarda pessoal. Oda Nobunaga foi um dos responsáveis por unificar as províncias japonesas, auxiliou os jesuítas a construírem a primeira Igreja Católica em Quioto (antiga capital do Japão) e ficou conhecido pela crueza com que assassinava aqueles que ameaçavam seus objetivos.
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Após anos de convivência e serviços prestados, Nobunaga concedeu o título de samurai à YasuKe, honraria bastante desejada e facultada para poucos japoneses. Frequentemente, o título era atribuído por laços sanguíneos ou por herança, requisitos que Yasuke não atendia e, ainda assim, foi condecorado.
Os trabalhos de Yasuke fizeram dele braço direito do daimyô, condição que lhe garantiu moradia individual e jantares rotineiros com Nobunaga – algo raro na relação entre daimyôs e samurais. Além disso, Yasuke foi plenamente incorporado à cultura japonesa, gozando de diversos privilégios restritos aos nipônicos.
Yasuke era o mais valioso dos samurais e membro de honra da guarda de Nobunaga. Segundo estudiosos, o negro foi escolhido para ser o portador da espada do daimyô, o que representava a confiança máxima do senhor em seu samurai. Até hoje, conforme relataram os pesquisadores Thomas Lockley e Geoffrey Girard, no livro African Samurai: The True Story of Yasuke, a Legendary Black Warrior in Feudal Japan (Hanover Square Press, 2019), não foram encontrados registros históricos de outros samurais que alcançaram tamanho prestígio.
Foram poucas as campanhas militares que Oda Nobunaga vivenciou junto com o agora samurai africano. Em 1581, os guerreiros do daimyô, orientados por Yasuke, invadiram a montanhosa província de Iga, reduto ninja que abrigava mais de 60.000 soldados. Após horas de combate, os guerreiros de Nobunaga venceram o confronto e conquistaram a região. Outra campanha, porém menos exitosa, ocorreu no ano seguinte, em junho de 1582. Traído por um dos seus samurais, o general Mitsuhide Akechi, Nobunaga iniciou uma batalha sangrenta para vingar a traição. Conhecida como a Batalha de Honno-ji, o episódio ceifou a vida de centenas de pessoas e culminou com a derrota das tropas de Nobunaga.
Reconhecendo o revés, o daimyô resolveu dar cabo a própria vida para salvaguardar a honra, conforme versava a tradição do seppuku. Antes de morrer, Nobunaga orientou Yasuke a levar sua espada e sua cabeça decapitada para o filho, pois assim o crânio do chefe não cairia nas mãos de outra pessoa.
Por ora, não há notícias do que ocorreu com Yasuke após a morte de Nobunaga. Alguns pesquisadores alegam que ele foi preso pelo inimigo, mas libertado tempo depois por não ser japonês. Sem paradeiro, vagou por anos a fio pelas ilhas nipônicas como ronin – um samurai sem mestre – até sua morte. Outros especulam que Yasuke poderia ter retomado seu papel de guarda nos aldeamentos jesuítas, ou mesmo ter embarcado em algum navio como marinheiro ou pirata nos mares orientais.
Sabendo ou não o paradeiro do samurai negro, é fundamental que histórias como as suas sejam resgatadas do esquecimento e sejam difundidas e valorizadas. Retirar do anonimato personagens como Yasuke contribui para percepção de que as culturas não são estanques e impenetráveis, pelo contrário, são resultados de construções coletivas e volúveis, feitas no caldeamento das ações de diferentes pessoas. Nenhum grupo ou indivíduo detêm exclusividade sobre determinados costumes ou tradições, todos esses passíveis de afetação pelas errantes, potentes e transformadoras relações humanas.
*Luis Gustavo Reis é professor e editor de livros didáticos