Brasil enfrenta um "choque neoliberal" inspirado na ditadura de Pinochet
"Esse projeto neoliberal radical precisa da violência para ser implementado. O exemplo chileno é o mais emblemático"
Tiago Angelo, Brasil de Fato
Em entrevista concedida à imprensa internacional em novembro de 2017, o ainda pouco conhecido Paulo Guedes, cotado para chefiar o Ministério da Economia, já sinalizava qual seria sua política frente à pasta em uma eventual vitória de Jair Bolsonaro. “Os últimos trinta anos foram um desastre – corrompemos a democracia e estagnamos a economia […] Deveríamos ter feito o que os Chicago Boys defendiam”.
O apelido, originalmente jocoso, foi dado a um grupo de jovens responsáveis por formularem a política econômica da ditadura chilena de Augusto Pinochet (1973-1990) com base na ideologia de Milton Friedman, professor da Universidade de Chicago.
O regime de exceção tomou curso no país vizinho há exatos 46 anos, em 11 de setembro de 1973, quando o presidente Salvador Allende foi assassinado.
Com Pinochet no poder, o ideário neoliberal dos Chicago Boys não foi apenas defendido, mas rigorosamente implementado. As medidas reverteram uma série de iniciativas sociais colocadas em prática pelos governos de Eduardo Frei Montalva (1964-1970) e Allende (1970-1973), e suas consequências são sentidas ainda hoje.
“Esse projeto neoliberal radical precisa da violência para ser implementado. O exemplo chileno é o mais emblemático”, afirma Joana Salém, doutoranda em história econômica pela Universidade de São Paulo (USP).
Em entrevista ao Brasil de Fato, a pesquisadora disse que o Brasil, sob a tutela de Guedes, já passa por um processo de “choque neoliberal” fortemente inspirado no modelo implementado no Chile durante a ditadura Pinochet. “É muito importante entender que o projeto do atual ministro da Economia [do Brasil], que colocou muitos de seus asseclas na estrutura do Estado para desconstruir a nossa Constituição, [tem como] modelo o Chile”.
Confira a entrevista na íntegra:
O Chile, durante o governo de Salvador Allende, passou por uma experiência inédita com a tentativa de transição ao socialismo fora da luta armada. Em linhas gerais, como poderíamos definir a política econômica de Allende?
Joana Salém: Desde a Aliança para o Progresso, formada em 1961, os EUA tinham uma agenda de reformas para a América Latina que tinha em vista evitar novas Revoluções Cubanas.
Eles avaliavam que as contradições do capitalismo latino-americano eram tão agudas que era preciso atenuar algumas delas a partir de um conjunto de reformas financiadas pelos próprios EUA. Ou seja, com tutelas e critérios próprios do capitalismo para evitar revoluções socialistas.
O governo anterior ao de Allende [Unidade Popular] é um governo da Democracia Cristã, do presidente Eduardo Frei. Ele foi um dos presidentes que mais recebeu financiamento externo dos EUA na história. Esse financiamento foi utilizado para a realização de reformas agrárias, educacionais, tributárias. Houve um aumento dos salários, uma relativa redistribuição de renda e algumas modernizações econômicas e sociais.
A ideia de que esse período de reformas frearia um processo mais radicalizado, no entanto, foi equivocada. No caso chileno, aconteceu exatamente o contrário. As mudanças proporcionadas pelo governo Frei aceleraram uma demanda de mudanças mais radicais, estruturais, profundas na sociedade. Essa vontade se manifestou nas eleições de 1970, quando Allende foi eleito com um programa explicitamente transitório para o socialismo.
O governo Allende expropriou 6 milhões de hectares em três anos. Isso representa a maior quantidade de terras expropriadas dentro da lei na história de um país. Ou seja, muitas reformas agrárias que expropriaram essa mesma quantidade de terras ocorreram por fora da lei, de uma maneira disruptiva. E muitas reformas agrárias que ocorreram dentro da lei não foram tão massivas quanto essa.
Ao mesmo tempo tinha os EUA, que financiaram o processo reformista anterior do Chile e que acreditavam que a pior coisa que poderia acontecer seria uma via chilena ao socialismo, porque isso retirava dos EUA a crítica à guerrilha. Ou seja, se é possível construir o socialismo por dentro da lei, de uma forma pacífica, a crítica da violência revolucionária propagada pelos EUA perdia força. Para os EUA, derrubar e destruir o exemplo chileno era muito importante
O comando central do Exército traiu Allende, entre eles Pinochet, que naquele momento era comandante-em-chefe das Forças Armadas, e praticou aquele ato de violência extrema e inaceitável que foi o bombardeio do Palácio de La Moneda no dia 11 de setembro, ainda mais para um país que se considerava legalista e a democracia mais estável da América Latina.
Após a queda de Allende, o país adotou uma postura inversa, passando por um “tratamento de choque” neoliberal. Em que consistiam essas medidas aplicadas pelo governo militar em consonância com os novos economistas do regime?
O projeto neoliberal chileno foi pioneiro, no sentido de adotar a ideologia de Milton Friedman, um economista, professor da Universidade de Chicago, que tinha escrito uma série de livros sobre liberdade econômica nos anos 1940 e 1950. Ele vai trabalhar no governo Pinochet. Fazem uma parceria e, então, a ditadura acaba sendo a pioneira na implementação de certas políticas neoliberais radicais.
Entre 1973 e 1978, são tomadas algumas medidas, mas o projeto se consolida, inclusive do ponto de vista constitucional, em 1980. As principais reformas, que até hoje caracterizam a sociedade chilena, são feitas em 1979 por José Piñera, irmão do atual presidente, Sebastián Piñera. Além disso, a Constituição de 1980 consolida o conceito de Estado Subsidiário.
Podemos dizer que o projeto por trás da Constituição chilena de 1980 e da brasileira de 1988 tem alguns pontos de oposição. No Chile, subsidia o setor privado para que ele garanta, de acordo com as necessidades do mercado, os serviços que a sociedade necessita: educação, saúde, aposentadoria, alimentação, etc.
Isso gerou um sistema de financiamento privado da educação, um sistema de previdência 100% privatizado e um de trabalho desregulamentado, com poucas garantias, além de um regime de trabalho informal predominante, como é atualmente.
A ditadura gerava um baixíssimo poder de negociação da sociedade em relação ao poder autoritário do Estado. Mas esse baixo poder de negociação se perpetuou na democracia, porque existe uma série de restrições aos sindicatos e ao direito de greve, por exemplo.
Em um contexto de ditadura, como era a ditadura Pinochet, e de terrorismo de Estado, de medo, de intimidação, de perseguição, censura, era difícil oferecer resistência. Ou seja, o neoliberalismo radical precisa de um governo autoritário, ditatorial, terrorista, intimidatório, para funcionar. As medidas neoliberais radicais são muito impopulares. E em uma sociedade relativamente democrática, a população oferece resistência. A opinião pública gera uma mudança de comportamento dos parlamentares, gera pressões.
Em um governo autoritário que não se preocupa com a opinião pública, ou que não está interessado em absorver nenhum tipo de demanda popular, essas medidas são mais possíveis do que em um governo que pretende relativamente receber essas demandas.
Em essência, o Estado subsidiário é isso. Atua como fiador do mercado, e nunca como atuante ativo nas políticas públicas em defesa de um tipo de direito social ou de um tipo de modelo de sociedade. E esse projeto neoliberal radical precisa da violência para ser implementado. O exemplo chileno é o mais emblemático.
Ainda hoje, décadas após o fim da ditadura, o país não conseguiu romper com a estrutura de Estado criada durante os anos de Pinochet. Qual resultado do neoliberalismo chileno podemos observar hoje e por que é tão difícil romper com esse formato de Estado?
Uma metodologia pode ser a de olhar os movimentos sociais mais importantes do Chile hoje e entender quais são as lutas travadas em relação aos efeitos mais perversos do neoliberalismo radical. Eu destacaria a questão educacional, a luta dos estudantes – que alteraram os rumos da história chilena recente.
Alguns desses estudantes se tornaram representativos ao ponto de serem eleitos deputados e defendem a gratuidade na educação pública, o financiamento público da educação pública e o fim do lucro das escolas privadas.
Existe toda uma mistura, uma confusão entre público e privado que é resultado do neoliberalismo radical, para que essas fronteiras não estejam mesmo claras. Tudo opera na ótica da empresa e do negócio, inclusive as universidades e escolas públicas. É um efeito muito perverso desse neoliberalismo.
Ao mesmo tempo, o sistema de previdência. Existem inúmeros dados que mostram como o pensionado chileno é extremamente mal remunerado, pior remunerado que o aposentado brasileiro. Existem dados que revelam que algumas pessoas alcançam uma aposentadoria equivalente a 15% de um salário mínimo. Existe uma média dos aposentados chilenos que mostram que cerca de 60 ou 70% dos aposentados ganham menos de um salário mínimo. Muito menos.
A direita chilena, consciente de que era possível ampliar a socialização da economia dentro da lei, criou uma nova legislação, uma nova estrutura institucional que tornava praticamente impossível realizar direitos sociais a partir da lei. Além disso, existe outro problema que é a Concertación [coligação de partidos de centro, centro-esquerda e esquerda que governou o Chile de 1990 a 2010].
Esses partidos, que foram responsáveis pela redemocratização do país, também foram cúmplices e pactuaram com o modelo constitucional, econômico e social do neoliberalismo chileno. Aprofundaram alguns desses setores do neoliberalismo.
Isso é fruto da conivência com esses setores de centro – ou centro-esquerda –, com o que foi o modelo econômico e social da ditadura. Isso também leva a essas perpetuações. Por isso, os movimentos sociais chilenos contemporâneos são tão importantes nessas lutas contra o neoliberalismo. Os partidos tradicionais de centro e centro-esquerda são absolutamente coniventes com o modelo da ditadura.
O Brasil, sob a tutela de Paulo Guedes, um dos “Chicago Boys”, como ministro da Economia, corre o risco de passar por um processo parecido ao que ocorreu no Chile?
Já são “Chicago Olds”. Acho que já estamos sofrendo [as consequências de um modelo neoliberal]. Em vários sentidos. Por um lado, há uma desconstrução da nossa Constituição de 1988. Não é preciso realizar uma nova Constituição para destruir a de 1988. É possível apenas descaracterizá-la a partir de diversas medidas relacionadas com a privatização dos direitos sociais.
A reforma da Previdência, recém aprovada na Câmara e agora tramitando no Senado, é um aspecto do choque neoliberal. Ao mesmo tempo, a capitalização, que é o que existe no Chile, não passou. Mas isso não significa que o governo atual não vá querer colocar a capitalização em algum outro projeto: reforma tributária, trabalhista, a tal da carteira verde e amarela.
É preciso ficar de olho, porque o projeto estratégico do Paulo Guedes é o Chile. Então é muito importante olhar para o Chile hoje e entender que o projeto do atual ministro da Economia, que colocou muitos de seus asseclas na estrutura do Estado para desconstruir a nossa Constituição, o modelo é o Chile.
Ao mesmo tempo, esse Dia do Fogo, o desmatamento da Amazônia, o processo de repressão aos movimentos sociais do campo e da cidade é também um processo relacionado ao neoliberalismo. O neoliberalismo radical precisa da violência.
E quando um presidente ou seus ministros autorizam a violência – para não dizer que praticam a violência –, ela vai sendo feita de uma maneira aparentemente autônoma nas bases da sociedade, pelas classes proprietárias e pelas classes mais gananciosas do capitalismo brasileiro, a partir de uma lógica que é de apropriação privada de recursos coletivos, seja da educação, da saúde da terra ou do trabalho.
Ao mesmo tempo, acho importante registrar que esse choque neoliberal não é propriamente um raio em céu azul. O processo neoliberal brasileiro começou no governo Collor, se aprofundou no governo FHC e ganhou uma nova cara no governo Lula. Mas ele está aí há 30 anos.
Se a gente acredita que o neoliberalismo começou agora com o governo Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes, a gente está caindo na narrativa do Paulo Guedes, que diz que tudo que aconteceu nos últimos 30 anos é de esquerda e que agora chegou o primeiro governo de direita. Não é assim.
É importante registrar que se trata de uma mudança de intensidade, não exatamente de sentido do processo histórico brasileiro. Porque a desindustrialização já existe desde os anos 1980, a priorização de uma economia extrativista também já existe desde os anos 1990 e é preciso perceber alguma continuidade. Se não a gente cai no mito invertido do Paulo Guedes.
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