"Sou convidado para ministrar conferências pelo mundo todo, tenho encontros com governos das mais variadas orientações políticas, presidentes, ministros, prefeitos, governadores, converso com empresários, tive vários encontros com o Papa Francisco, e sempre fui tratado com respeito. Mas uma situação dessas, sendo censurado antes de iniciar um debate, ainda mais em minha cidade, nunca aconteceu comigo"
Por Célio Turino*, via Facebook
Hoje eu fui censurado em um antigo Ponto de Cultura. Inacreditável, metade das participantes eram apoiadoras de Bolsonaro e não queriam a minha presença, mesmo tendo o convite partido deles.
Há mais de uma década, quando eu estava como secretário da Cidadania Cultural, no extinto MinC, conheci o trabalho delas, as incentivei a tornarem-se Ponto de Cultura, receberam recursos que permitiram que estruturassem o trabalho. Foi a única vez que receberam verba federal. Nunca, jamais perguntamos qual era a orientação política delas ou lhes foi pedido qualquer tipo de apoio, além de retribuírem à comunidade o apoio federal que recebiam. Sempre demos tratamento republicano, respeitoso, como todos os outros 3.500 Pontos de Cultura que chegaram a receber apoio enquanto eu estive como secretário.
Os anos passaram e fui acompanhando o trabalho à distância. Quando perguntado dei boas referências, nada além disso, nada demais, nada diferente do que fiz e faço em relação a tantos Pontos de Cultura espalhados pelo Brasil, e também pela América Latina. A questão de algumas semanas fui convidado a participar de um debate neste local, aceitei e fui graciosamente, sem nada cobrar, dirigindo meu próprio veículo. Ir a Campinas sempre é bom, minha cidade natal, em que vivem meus pais e nasceram minhas filhas. Qual minha surpresa, quando ontem ligam para mim, pedindo para que eu não falasse do Bolsonaro ou de política no debate. Respondi que o convite partiu deles e que sempre que vou a um debate sobre cultura, falo sobre cultura. E cultura envolve ética, estética, ecologia, afetos, arte…; era disso que eu falaria, como acontece em centenas de conferências que realizo pelo Brasil e pelo mundo. Nos últimos anos, mais pelo mundo que pelo Brasil, até por isso, fiquei feliz em ir a uma atividade em “minha” Cidade.
Quando cheguei o ambiente era de constrangimento. Muito poucas pessoas presentes e novamente a recomendação para que não falasse de “política”. Como se eu tivesse ido para lá com intuito específico de falar sobre esse estrupício que ocupa a cadeira da presidência – rs. Eu fui para falar de arte, de cultura, de ideias e filosofia, mais especificamente sobre o lúdico e as brincadeiras infantis, tema que estudo há anos e tenho livro sobre o assunto. Que horror! Estava sendo censurado por um Ponto de Cultura, antes mesmo do debate começar.
Eu disse que preferia desmarcar e ir embora. Afinal, “quando se entra em uma sala e há dez nazistas, ou você se retira imediatamente, ou haverá onze nazistas na sala”, e eu não queria estar presente numa sala daquelas. Antes de me retirar, porém, criei uma história infantil e disse para a coordenadora que havia preparado para o debate. Comecei a contar para ela, já na porta de saída:
“Era uma vez, em um reino não tão distante, um homem que queria ser rei, e uma gente que o via como rei. Queriam tanto que ele fosse rei, que esqueceram-se de todas as regras básicas de convivência e civilidade. Tinham muito ódio e amargura no coração. E assim desejavam construir o seu reino, com ódio e amargura. Detestando todos os que pensavam e agiam de forma diferente, censurando e perseguindo pessoas.
Queriam um reino, não para construir, mas para destruir, queimar, matar. Até o sinal da cruz, que faziam antes, em homenagem ao antigo Deus que havia sido morto sob tortura, havia sido substituído por um sinal de arma com a mão.
Nesse lugar, que eles queriam transformar em reinado, havia uma floresta exuberante. A detestavam, assim como detestavam os habitantes da floresta, indígenas, caboclos, as onças, os papagaios e periquitos, também detestavam os macacos e as araras. Consideravam as árvores coisa inútil, a ser derrubada para dar lugar a pasto, plantações e garimpos. Para agilizar seu intento, foram amordaçando as pessoas responsáveis pela conservação da floresta, perseguiam cientistas, ambientalistas. E bradavam: a floresta é nossa, faremos dela o que quisermos! Agora o reino é nosso!
E puseram fogo na floresta. Até criaram um dia em homenagem ao homem que queria ser rei, o dia do fogo! E a floresta ardia em chamas. E os bichos da floresta eram todos queimados, junto com as árvores. Macaquinhos saiam pulando com os pelos em brasa, um tamanduá abria os braços em desespero, já com os olhos cegados pelo fogo, araras, periquitos e jandaias, voavam com as penas queimando.
Mas lá, naquele lugar tão idílico, havia um Ponto de Cultura que se dizia ECO, que construía brinquedos e se fazia de bondoso, mas, que no fundo, por omissão, cumplicidade ou apoio, fazia coro aos que urravam: Queima! Taca fogo! Mata!”
É isso que significa a normalização dos absurdos que estamos vivendo no Brasil, por mais gentis que pareçam ser as senhoras que nos recebam. Terminei de contar a história e fui embora.
Mas, ao dar um passo, virei-me e contei outra história que veio à minha cabeça. Foi uma forma de finalizar minha participação na porta daquele Ponto (até porque foi na porta que me disseram que não queriam minha presença por eu haver trabalhado com o ex-presidente Lula). Já que elas gostam tanto de crianças, escolhi a história do herói do Mito delas. Contei assim:
“Era uma vez, um herói. O herói do herói delas. O nome dele era Ustra e ele combatia perigosos comunistas. Vivia nos porões, a defender “cidadãos de bem”. Certa vez ele buscou duas criancinhas, uma menina e um menino, ela com cinco anos e ele com três. Levou-os para passear no porão e a assistirem os pais serem torturados.”
Como ele é o herói do Mito das senhoras, e as senhoras, como cidadãs de bem, defendem a ecologia e as crianças, resolvi contar essa pequena história e sugeri: contem para a próxima turma de crianças que receberem aqui. Se quiserem posso dar mais alguns detalhes da sessão de tortura, também de como esse “herói” gostava de introduzir camundongos na vagina das moças que torturava.
E fui embora, para não mais voltar.
Na volta, de Campinas para São Paulo, na estrada, fiquei pensando se seria o caso de registrar esse infeliz momento. Eu sou convidado para ministrar conferências pelo mundo todo, tenho encontros com governos das mais variadas orientações políticas, presidentes de repúblicas, ministros, prefeitos, governadores, converso com empresários, tive vários encontros com o Papa Francisco, e sempre fui tratado com respeito, assim como tratei e continuarei tratando a todos com o mesmo respeito. Mas uma situação dessas, sendo censurado antes de iniciar um debate, ainda mais em minha cidade, nunca aconteceu comigo!
Por isso resolvi compartilhar esse momento que vivenciei no dia de hoje. E de como respondi à gentil senhora. Tempos duros, Mas vamos resistir!
Finalizando, para quem se sente fraquejando, infeliz por assistir tanta infelicidade, deprimido por conviver com tanta estupidez, aturdido em meio a tantos absurdos, tanto cinismo, tanta mentira, deixo a lembrança mais que necessária para os dias atuais: a vida nos pede coragem!
E, lembre-mo-nos por trás de gentilezas aparentes, escondem-se as piores vilanias.
*Célio Turino é escritor e historiador
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