A defesa da Constituição Federal tem se mostrado o que de mais progressista possa ser formulado na atual conjuntura, e talvez seja o consenso mínimo necessário num momento de retrocesso no processo civilizatório.
Lucas Coradini*, Pragmatismo Político
No dia primeiro de janeiro de 2019, diante de 513 deputados federais e 81 senadores, naquele ato simbolizando a sociedade brasileira, o presidente Jair Bolsonaro proferiu o juramento constitucional comprometendo-se a “manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil“. Era o seu ato de posse na presidência da república, e o rito cumpria o previsto no Art. 78 da Constituição que jurava defender. Contudo, sete meses foram suficientes para romper esse juramento, e toda a agenda política de Bolsonaro demonstra que estamos diante de um governo anticonstitucional.
Batizada Constituição Cidadã, a carta magna de 1988 ofereceu ao povo brasileiro a mais ampla gama de direitos individuais e coletivos, e o mais completo conjunto de direitos sociais da nossa história. Além de um marco na transição do regime autoritário da ditadura militar para o Estado democrático de Direito, a promulgação da Constituição refletiu um amplo acordo de conciliação, no qual o Estado passaria a olhar para as desigualdades históricas e buscar superar os abismos sobre os quais se assentavam as relações econômicas, políticas e sociais. O novo pacto social brasileiro representava, assim, um “compromisso com a nação“. Uma nação pobre e desigual.
Essa concepção se traduz na tutela dos direitos sociais, nos princípios da proteção das minorias, no estabelecimento da igualdade étnica, na instituição da proteção social e uma série de dispositivos que objetivam, ao fim, a erradicação da pobreza e a construção de uma sociedade mais justa. O bolsonarismo tem se mostrado a antítese a tudo isso. Todos os decretos, projetos de leis e reformas apresentadas até o momento colidem frontalmente com os fundamentos constitucionais.
É importante reconhecer que o pacto social de 1988 foi o oxigênio para três décadas de alternância entre a democracia liberal e a social-democracia, com governos pendendo ora à centro-direita, ora à centro-esquerda, que de alguma forma produziram avanços frente aos problemas estruturais do país. Esse foi o inédito viável da conciliação dos interesses das elites com os interesses do conjunto da sociedade, durante o qual o Estado demonstrou alguma capacidade de promover ganhos para os dois lados – apesar de, não raras vezes, os interesses oligárquicos prevalecerem sobre os populares.
A mobilidade social possibilitada à parte da população mais pobre a partir das políticas públicas implementadas nas últimas décadas, e a consequente ampliação dos extratos sociais médios, alimentou as expectativas quanto à consolidação de um estado de bem-estar social. Essa expectativa, contudo, não se concretizou. Ao mesmo tempo, políticas compensatórias como o sistema de cotas nas universidades trouxeram à luz conflitos historicamente presentes na estrutura social brasileira – e por muito tempo velados – gerando reações das classes dominantes que, até então, possuíam acesso privilegiado à educação superior e exclusividade sobre determinados bens materiais e imateriais que garantiam distinção social.
A frustração das camadas em processo de mobilidade com a descontinuidade das políticas de bem-estar social, somada ao acirramento das tensões da classe média, que não se via representada na agenda governamental, iniciou um processo de ruptura no tecido social brasileiro. Essa ruptura se traduziu na polarização do debate político e no descontentamento mútuo com os rumos da política nacional, observado desde os grandes movimentos de rua ocorridos em 2013. Paralelamente, uma grande campanha midiática colocava a corrupção como centro de todos os problemas do país, num contexto de revelações trazidas a público pela operação Lava a Jato. Foi nesse ambiente que se agravou uma crise política no Brasil, fazendo insurgir novos movimentos com visões de Estado destoantes daquelas cristalizadas na Constituição de 1988, de matizes políticas que variavam do neoliberalismo à extrema direita fascista.
Esse período pode ser descrito como o “início do fim” de um ciclo social-democrático, e foi marcado pela crise do centro político. Percebe-se o desgaste de partidos tradicionais como o PT e o PSDB, que nos últimos pleitos eleitorais reduziram seus quadros nas prefeituras, estados e casas legislativas. Ao mesmo tempo, o “pêndulo” da democracia se desloca para o polo onde encontra uma incipiente extrema direita, ainda com identidade disforme, mas disposta a disputar o jogo político e a se capitalizar com a crise de representatividade dos partidos tradicionais.
Assim emerge o bolsonarismo, valendo-se da crise de representatividade da classe política, do antipetismo insuflado pela Lava a Jato, e do eco que o pensamento radical de seu líder promovia em grupos de extrema direita. Somente o PSL, que possuía um único deputado federal e nenhuma expressão na política brasileira, passou a ocupar 52 cadeiras no Congresso Nacional, servindo-se apenas da popularidade do seu candidato presidencial. Na esteira dessa projeção são alçados ao parlamento quadros improváveis do cenário político, oriundos do submundo do pensamento liberal e conservador.
Para além do apelo populista que esse movimento exerceu sobre parte da sociedade, Bolsonaro foi viabilizado como presidente, sobretudo, quando compreendeu a quais interesses deveria se alinhar para chegar ao poder, sinalização realizada ainda no período eleitoral, quando terceirizou o programa econômico a um representante do sistema financeiro, o agora ministro Paulo Guedes. Dessa forma o país foi afiançado às forças do capitalismo financeiro, que operam a nível global com o capital a juros, o rentismo e a especulação nas bolsas de valores. Esse modelo impõe de forma sistêmica a subordinação do Estado, através do seu orçamento, aos desígnios da exclusiva valorização do capital.
O país assumiu, assim, uma agenda econômica focada na imposição do superávit primário para sustentar o sistema da dívida pública e na abertura de mercado para o capital financeiro, o que demandou uma série de reformas de Estado. É o que se percebe na proposta para o sistema previdenciário, com a transição do regime contributivo e solidário para o regime de capitalização, ou na tentativa de desestruturação da educação pública através do projeto “Future-se”, que diminui a participação do Estado no orçamento das instituições, lançando-as à sorte dos fundos de investimento privados.
É preciso deixar claro que, ao assumir essa agenda, Bolsonaro coloca em risco as mais importantes conquistas sociais das últimas décadas e entra em rota de colisão com a Constituição Federal de 1988. Nenhuma ação do presidente demonstra apreço às garantias fundamentais nela estabelecidas, de construir uma sociedade livre, justa e solidária. Nenhuma prática até o momento, nem de longe, contribui para erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais. E menos ainda para superar os preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Pelo contrário, estes últimos princípios constitucionais são diuturnamente ofendidos pela agenda ideológica nas pastas da educação e dos direitos humanos.
As reformas encomendadas pelo mercado ao governo Bolsonaro colocam em risco todo sistema de proteção social a muito custo conquistado pela Constituição Federal, e em nada colaboram para a melhoria das condições de vida da classe trabalhadora. E a população mais pobre é justamente quem sofrerá – e já sofre – as consequências imediatas dessas medidas, pois nesse modelo econômico em que o capital é altamente valorizado, o trabalho, por sua vez, torna-se altamente desvalorizado. É o que fica evidente com a flexibilização e a retirada de direitos trabalhistas, como a ampliação do regime de trabalho intermitente, das terceirizações, e com a “pejotização”, que alargam as fileiras de trabalhadores sem vínculo formal com as empresas e em situação de desemprego. A fragilização dos dispositivos de proteção aos trabalhadores representa, ao cabo, mais uma incongruência com o estabelecido em nossa Constituição.
Diante destes flagrantes retrocessos, é imperioso estabelecer um consenso mínimo entre diferentes forças políticas para frear a destruição do Estado brasileiro e a polarização política que tem criado esse permanente clima de crise institucional. Nessa coalização de defesa cabem todos os setores da sociedade que preservam algum apreço pela democracia, pelo Estado de Direito e, objetivamente, pelo preconizado em nossa Constituição. Um esforço necessário para recuperar o centro político, e que não deve ficar restrito, portanto, aos partidos e movimentos de esquerda. Ao contrário, uma frente ampliada em defesa da Constituição deve ir além dos grupos de oposição, avançar para os setores da centro-direita do Congresso Nacional e buscar o apoio possível no poder judiciário e nas instituições. É o mínimo que se pode fazer diante de um governo anticonstitucional.
A defesa da Constituição representa, no curto prazo, um plano de contingência, em parte já alavancado pela derrubada de medidas provisórias e decretos presidenciais, seja no parlamento, seja no judiciário. Para além de uma estratégia essencialmente obstrutiva, deve constituir-se como um pacto pela preservação da ordem jurídica e do papel constitucional do Estado. Há, contudo, outras medidas posteriores, de médio e longo prazo, que são essenciais para a reorganização das forças progressistas e para viabilizar a oferta de um novo projeto político ao país, em alternativa ao que está em curso pela extrema direita.
A primeira delas consiste em consolidar definitivamente o entendimento sobre a ruptura democrática ocorrida desde o impeachment de Dilma Roussef, e denunciar a falta de legitimidade de um governo que foi viabilizado pelo uso político – e criminoso – dos aparelhos de Estado, como tem sido demonstrado pelo material jornalístico do The Intercept. Ao mesmo tempo, deve-se investir nas investigações sobre o uso indiscriminado de propaganda eleitoral financiada de forma não oficial e a propagação automatizada de fake-news, uma espécie de fraude que tem crescido e influenciado resultados eleitorais em nível mundial, através de empresas de comunicação estratégica como a Cambridge Analytica. Há aqui elementos tangíveis de crimes eleitorais que podem resultar na cassação da chapa Bolsonaro-Mourão.
Um segundo movimento estratégico é o de explorar as contradições do atual governo, que apresenta severas dificuldades em estabelecer uma base governista coesa ao aglutinar grupos de matizes antagônicos, reunindo extremos do pensamento liberal e conservador. A agenda de “costumes” é incongruente com o pensamento liberal, o que torna esdrúxulo, por exemplo, que a bancada evangélica esteja associada à armamentista – por mais que a coerência não seja atributo inalienável na política real. Da mesma forma, é ilógico o papel ao qual o segmento militar tem se prestado na composição do governo, com absoluta complacência diante de uma agenda antinacionalista que produzirá sérios prejuízos à soberania nacional, inertes à dilaceração de recursos naturais estratégicos e à entrega de estatais ao capital internacional. Nenhuma medida governamental, até o momento, tem se refletido na recuperação da economia ou na melhoria da qualidade de vida da população, e isso deve ficar cada vez mais evidente à opinião pública. Ademais, a fábrica de polêmicas e factoides, as descomposturas diárias do presidente, as reações autoritárias ao pensamento divergente, as interferências familiares e a desqualificação dos quadros governamentais – começando pelos ministérios – ultrapassam todos os limites do aceitável para um ambiente republicano, o que tem agravado o clima de instabilidade institucional no país, que cada vez mais passa a ser alvo de críticas, nacional e internacionalmente, fazendo o governo mergulhar num ritmo acelerado de desgaste.
O terceiro desafio, e talvez o mais importante, é o de restabelecer uma agenda política pró-constituição e em sintonia com os anseios da classe trabalhadora. Esse tem sido um objetivo complexo diante da crise de representatividade de partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais tradicionais. As esquerdas, historicamente defensoras da democracia participativa, têm demonstrado perplexidade em compreender o fenômeno de crescimento da extrema-direita, a insurgência do pensamento conservador em segmentos expressivos da população e a consequente aderência ao discurso autoritário do bolsonarismo. O que fazer quando as camadas populares defendem pautas que atentam contra seus próprios interesses? É preciso de alguma forma recuperar o vínculo com a classe trabalhadora, reorganizar espaços públicos de discussão, explorar a afinidade com as classes artística, acadêmica e com as mídias independentes – dimensões importantes da elaboração discursiva e da conscientização social – e resgatar movimentos de base que disputem a conformação do pensamento das classes populares, inclusive eclesiásticos.
Por fim, é preciso superar algumas cisões no campo progressista. Muito tem se falado na urgência de uma frente ampla, mas são evidentes os limites dessa conjugação nos cenários eleitorais. É sabido que não há estratégia de esquerda que possa prescindir da colaboração do Partido dos Trabalhadores, por toda importância que possui na história da política nacional, mas é preciso de sua parte alguma concessão no papel “hegemonista” que tem exercido nas tentativas de coligações. Mais do que isso, é necessário apostar na renovação programática dos partidos e de suas lideranças, permitindo o protagonismo de novos atores que estreitem os vínculos dos partidos com os movimentos sociais de base.
Por outro lado, também as candidaturas de demarcação ideológica devem rever suas estratégias e abrir margem para composições. Há escolhas pragmáticas a serem tomadas no curto prazo, desde as eleições municipais, e bases comuns devem ser firmadas em nome da sobrevivência de um projeto de Estado com um mínimo de soberania e proteção social. A defesa da Constituição Federal tem se mostrado o que de mais progressista possa ser formulado na atual conjuntura, e talvez seja o consenso mínimo necessário num momento de retrocesso no processo civilizatório.
*Lucas Coradini é mestre em Sociologia e doutor em Ciência Política.
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