Até quando o embate político no Brasil será guiado pela questão moral?
por Anderson Pires*
Em pleno sete de setembro, dia que simboliza a independência do Brasil, pude, à distância, constatar a situação em que nos encontramos, inclusive aos olhos de outros países. Aqui em Portugal, onde estou a passar alguns dias, tive a oportunidade de participar da Festa do Avante – uma grande confraternização da esquerda europeia, promovida pelo Partido Comunista Português, com a participação de muitos países de diversas partes do mundo.
O ambiente libertário, onde pessoas de diversas idades podem conviver em meio a representações artísticas e políticas, foi revelador para perceber o momento que passa o Brasil e avaliar como a esquerda e setores progressistas seguem um discurso de cunho moral, que se distancia do que deveria ser princípio.
Nesse festival, permiti-me fazer ilações sobre o que aconteceria em um semelhante evento no Brasil. É suposto pensar, a partir de referências conhecidas, que haveria entre nós uma série de manifestações identitárias, as quais, provavelmente, enveredariam por dimensões particulares, como se tais interesses fossem muito maiores que as discussões políticas sobre democracia, modelo econômico e assuntos que tratam dos princípios formadores de uma sociedade mais justa. Diferentemente, aqui, não vi nada parecido. Não sei se por estar em um continente com muito mais respeito às questões de gênero, orientação sexual, religião, etnia, raça, língua e nacionalidade, ou se porque, no Brasil, embarcamos no debate moral como forma de mascarar questões centrais e, ao contrário, criar pequenos ambientes de aparente mudança da realidade.
Certa vez, li em um texto de Mia Couto, que “a ideia de mudar as palavras muda a realidade” e mais na frente ele arrematava, com a seguinte conclusão: “estamos reproduzindo um discurso que privilegia o superficial e que sugere que, mudando a cobertura, o bolo passa a ser comestível”. Essas citações faziam referência a um episódio, em que um colega seu foi atacado de maneira bastante agressiva por uma plateia em Nova York, por ter usado a expressão “mercado negro”, quando falava de questões relevantes para uma sociedade mais igual. Naquele evento, que a esquerda e progressistas participavam, chegaram a sugerir um pequeno dicionário de palavras proibidas, a exemplo de negro, cego, surdo, gordo, magro etc.
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É obvio que ninguém vai minimizar o preconceito de qualquer ordem no debate sobre o mundo que defendemos. Mas me causou surpresa quando do lado de cá do mundo, as formas de manifestação se diferenciam e o pior de tudo, a percepção sobre a realidade que vivemos é distinta e mais grave. Por que digo isso? No meu passeio pelo Festival, encontrei um cantinho que se intitulava Espaço da Paz, surpreendentemente destinado a prestar solidariedade à Palestina, à Venezuela e ao Brasil. Isso mesmo. Na visão de quem organizou aquele espaço, somos hoje equiparados a zonas de conflitos e, tal como os outros dois, estamos sob o perigo real de quebra da democracia.
Nesse mesmo dia, setores progressistas do Brasil estavam focados na discussão em torno da censura promovida pelo Prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, que mandou apreender revistas em quadrinho na Bienal do Livro, por conterem a cena de um beijo gay. De fato, essa não é uma cena trivial a que a população em geral assista sem reagir, mas não deixa de ser algo que está inserido no contexto do debate moral, o mesmo que arrastou o Brasil para essa situação de fragilidade democrática em que vivemos. O afinco imprimido a esse embate foi tamanho, que com certeza mobilizou mais gente que a discussão sobre a reforma da previdência e todos os ataques que os trabalhadores vêm sofrendo, sejam eles gays ou não.
O debate moral para o qual a esquerda brasileira foi arrastada, juntamente com boa parte da imprensa, possibilitou que alguém sem qualquer condição de debater princípios para uma nação democrática se tornasse presidente e, junto com ele, toda uma legião de mercadores da moralidade passaram a ter papel dominante no país. Leia-se Edir Macedo, Sílvio Santos, Véio da Havan, Olavo de Carvalho e um tanto de outros ilustres.
Essa pauta além de tratar apenas da cobertura do bolo, leva o debate para o campo em que Bolsonaro surfou e conseguiu conquistar a presidência, sem tratar de qualquer tema de relevância para a condução de um país. Enquanto se debatia a existência ou não do kit gay e questões ligadas a gênero e religiosidade, o debate democrático se enfraquecia em torno de uma pauta moral, que favorecia aos fascistas e ainda colocava à margem pontos que poderiam ser convergentes entre trabalhadores, sejam eles de esquerda, direita, heteros, homos, negros, brancos ou índios.
Passados oito meses do governo Bolsonaro, não conseguimos sair dessa armadilha. O debate identitário continua predominando sobre as discussões que afetam a todos de forma indistinta e esse equívoco acaba por fortalecer a legião de seguidores que ainda dá sustentação aos absurdos produzidos contra os mais pobres, contra a educação e contra toda e qualquer política de cunho social que ainda exista no Brasil.
É inadmissível que o preconceito seja propagado em nosso país. O fundamental é que as mudanças sejam de conteúdo, para que o bolo seja comestível. Não é aceitável que a esquerda e setores progressistas continuem a ser guiados pela pauta conservadora, quando em paralelo uma agenda ultraliberal é implantada de forma devastadora, sem que isso gere mobilização por parte dos setores atingidos, com idêntica dimensão vista nesse caso de censura.
Quem dera que o mesmo nível de revolta provocado por um beijo gay, fosse visto por conta dos efeitos da reforma da previdência. Enquanto a mamadeira de piroca demandar mais energia que o embate ao modelo econômico que vem sendo implantado no Brasil, teremos uma divisão moral que só favorece a quem se sustenta dela. Alheios ao debate identitário, os liberais avançam e fomentam o modelo de país que melhor lhes servirá.
Anderson Pires é jornalista formado pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), publicitário e cozinheiro.
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