Mulheres violadas

Por mais bruxas

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Os contos de fadas trazem consigo algumas morais e ensinamentos. Mas também ajudam a perpetuar a imagem da mulher subserviente. Trazem também as bruxas fazendo maldades sérias, é verdade.

Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político

Minha pequena, de três anos, está na fase de simular, “fazer de conta”, que é outra pessoa ou uma personagem.

Esses dias ela fazia um ruído pretensamente ameaçador enquanto dizia que era uma bruxa. Fiquei satisfeito. Gosto das bruxas.

Elas, as bruxas, ficaram populares na Idade Média. As pessoas que se contrapunham aos status quo eram taxadas de bruxas. Geralmente as mulheres. Aliás, considero que nossa misoginia é uma herança medieval. Naquela época, as mulheres eram consideradas um mal necessário. Serviam tão somente para os afazeres domésticos ou afins. O sexo era pragmático e burocrático. Insonso como uma repartição pública (o Poder Judiciário não entra no exemplo, pois, com orçamento próprio oriundo do duodécimo, tem pomposos prédios e paga auxílio-moradia). O prazer feminino era pecaminoso. O masculino, naturalmente obrigatório, devia ser sucedido dum sentimento de culpa.

As mulheres que ousavam sequer pensar em transpor essas imposições eram acusadas de serem a encarnação do próprio demônio a tentar os homens, ou de bruxas que, com seus feitiços, iriam estragar os pré-estabelecidos sociais.

Lendo os contos infantis clássicos, chego a me irritar com as princesas. Eu as acho patéticas. Deve ser porque patéticos são os regimes monárquicos, em que o poder não perpassa pela legitimação popular e sim pela sorte de descendência. Mas as princesas ou futuras princesas (já que esperam um príncipe) dos contos não questionam a sociedade e nem mesmo a sua realidade. Aceitam tudo com uma resiliência absurda.

A Cinderela passava o dia limpando a imensa casa, por ordem de sua madrasta e de suas irmãs emprestadas. Mas ora, por que não esfregava a cara delas com uma escova dura e cheia de sabão? Ou molhava a escada para elas caírem?

A Branca de Neve também sofreu com uma madrasta (repararam que só as madrastas, as mulheres, eram ruins com suas enteadas?). A maldosa era aconselhada por um espelho, representante da vaidade. Ora, por que Branca de Neve não quebrou o bendito espelho e, junto, a vaidade da mulher?

A Rapunzel passava o dia numa torre, alisando seu imenso cabelo. Ao final do dia, tinha que jogar suas madeixas para que sua mãe adotiva/”roubativa” subisse. Ora, podia ela amarrar seu cabelo no pé da cama e fazer o caminho inverso, descer. Lá embaixo, cortava-o e já inaugurava, naquela época, o estilo Chanel, rompendo com os padrões de beleza e se libertando da prisão e da chatice que era pentear os longos cabelos.

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Mas a pior é a Bela Adormecida. Ela tava dormindo. Dormir e comer são as melhores coisas que existem. Daí vem um príncipe e, por se julgar superior, já que príncipe, lhe beija sem autorização. Se sou ela, lhe dou dois belos bofetões, fazendo ele dormir: um por ter me acordado. Outro pela ousadia do beijo. É no mínimo assédio. Não se beija uma mulher sem o seu consentimento.

Os contos de fadas trazem consigo algumas morais e ensinamentos. Mas também ajudam a perpetuar a imagem da mulher subserviente. Trazem também as bruxas fazendo maldades sérias, é verdade. Mas também é verdade que elas pelo menos ousaram questionar os padrões sociais, machistas e elitistas da época.

Já que não sou rei, minha filha não será princesa de fato. E, pelo visto e pra minha alegria, nem de brincadeira.

Prefere ser bruxa. E já tem a mania de questionar as regras sociais e da sua educação.

Espelho, espelho meu, existe um pai mais orgulhoso do que eu?

*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha” e 1º Secretário do Simpo”

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